Como Ficar no Iraque por 1.000 Anos . – Por Frida Berrigan

Com o mandato da ONU, já renovado em 2007 com a indicação de que seria a última prorrogação, o governo de George W Bush pretende, antes de terminar o mandato, fazer um acordo com o governo-fantoche do Iraque para prolongar a sua invasão enquanto o desejar…

Frida Berrigan* – 21.10.08

Poucos americanos terão alguma vez ouvido falar de SOFA até ao início deste ano, quando a Internet veio com uma revelação que muitos observadores da política externa americana desde há muito previam. Apesar de repetidas afirmações em contrário, os funcionários americanos pressionavam o governo iraquiano para aceitar uma presença militar dos americanos indefinida, incluindo o número escandaloso de 58 bases americanas na turfa iraquiana.

A palavra SOFA, abreviatura de “Status of Forces Agreement” (Acordo de Situação das Forças), passou de repente a fazer parte dos noticiários. Os dois países discutiam acaloradamente sobre este e outro pacto semelhante chamado Acordo de Enquadramento Estratégico. Os dois pactos têm sido baralhados e confundidos tanto pelos especialistas em política externa como pelos críticos. O SOFA fornece a base legal para a presença e para as operações das forças militares americanas. O Enquadramento, embora não vinculativo, é mais um acordo abrangente que envolve todos os aspectos das relações bilaterais entre o Iraque e os Estados Unidos, incluindo o controle das bases, a comunicação entre as forças de segurança do Iraque e dos EUA e a maior de todas as questões: por quanto tempo? Em rascunhos do Enquadramento, os negociadores referiram-se a “horizontes temporais” para a retirada de tropas. Semântica viciada, certo? Não é preciso ser naturalista para saber que o horizonte nunca se aproxima do observador.

Estes acordos são necessários para substituir o mandato do Conselho de Segurança da ONU de 2003, válido até ao fim do ano, o qual autorizou a presença militar multinacional no Iraque. Criado sem participação iraquiana significativa, diz em essência que o Iraque é soberano, que a ocupação militar é uma parceria temporária com as forças iraquianas, que serão efetuadas eleições e iniciada uma transição democrática, e que a força militar “multinacional” irá “tomar todas as medidas necessárias para contribuir para a manutenção da segurança e estabilidade no Iraque.” Uma extensão do mandato foi vigorosamente contrariada em 2007 pelo inexperiente parlamento iraquiano, o qual apelou diretamente (e futilmente) ao Conselho de Segurança depois de o Primeiro-Ministro Nouri al-Maliki ter requerido a extensão sem a aprovação do parlamento.

As negociações em curso são a última oportunidade do governo Bush para reanimar o seu estafado legado no Médio Oriente. Embora o mandato da ONU tecnicamente pudesse ser prorrogado, o Iraque indicara previamente que a prorrogação de 2007 seria a última. Requerer outra faria o governo iraquiano surgir como fraco e demonstraria que não é ele quem manda e, portanto confessaria ao mundo que a política de Bush no Iraque falhou.

Porém, o que o governo Bush pretende não é um “Status of Forces Agreement” normal. Nota o Serviço de Investigação do Congresso que este “pode ser único no conjunto dos outros SOFA’s concluídos pelos Estados Unidos, no sentido em que inclui uma autorização do governo anfitrião… para que as forças dos EUA se envolvam em operações militares.”

De acordo com os críticos da política americana no Iraque, trata-se de uma distinção crucial. Com efeito, os negociadores americanos estavam a utilizar o processo SOFA, que não necessita de aprovação pelo Congresso, tentando calmamente oficializar um tratado de defesa mútua sem ratificação pelo Senado, conforme exigido pela Constituição dos EUA. De acordo com o que o coronel reformado do exército e perito militar Douglas MacGregor disse num subcomitê do Congresso em Fevereiro, o governo não devia “pretender que um importante compromisso militar dos EUA, interno e externo ao Iraque, seja questão para resolver no âmbito de um SOFA.”

A luta do governo para debater o futuro das tropas americanas no Iraque pelo menos se mostrou esclarecedora. Talvez pela primeira vez, o público americano ficou na fila da frente para assistir ao modo como o seu governo negocia o império.

Em resumo, o SOFA estabelece as regras básicas. Onde que quer que os militares dos EUA vão, negociam um Acordo de Situação das Forças e outros semelhantes que estabelecem os direitos e responsabilidades dos EUA e do anfitrião e especificam a jurisdição criminal e civil perante a qual o pessoal americano deve responder. De acordo com o Serviço de Investigação do Congresso, no fim da Guerra-Fria, os Estados Unidos tinham SOFA’s com cerca de 40 países. Hoje, têm mais de 100 desses acordos, incluindo pelo menos 10 classificados.

Os pactos vão do tipo vago até ao altamente detalhado. Acordos com países como o Bangladesh e o Botswana para desembarques de curto prazo ficaram tão curtos como uma página, ao passo que o SOFA com a Alemanha é um suplemento de 200 páginas ao SOFA da NATO, tornando pequeno esse comparativamente delgado documento de 13 páginas, possuindo um catálogo de detalhes de entontecer que vai até onde e por quem deve o correio ser entregue.

Contando com as zonas de guerra do Iraque e do Azerbaijão, encontram-se distribuídos pelo mundo mais de meio milhão de soldados, marinheiros, fuzileiros, guardas nacionais e outros homens e mulheres fardados dos EUA. O que acontece quando algum deles faz qualquer coisa de ilegal é a questão mais geralmente tratada e um dos maiores pontos de discórdia na relação dos EUA com o país anfitrião. O Pentágono vê os SOFA’s como essenciais para proteger as tropas americanas do julgamento e condenação em tribunais estrangeiros, cuja idéia de justiça pode diferir substancialmente do sistema com o qual os americanos estão familiarizados. Por exemplo, no Japão, depois da investigação criminal e prisão, a polícia conduz muitas vezes demorados interrogatórios que levam a alegações de culpa, expressões de remorso e sentenças mais ligeiras. Não existem julgamentos com jurados no Japão e preparar uma defesa robusta ou agressiva é vista como indício de admissão de culpa.

Mesmo noutras democracias ocidentais, procedimentos legais normais parecerão estranhos até para um casual defensor da Lei e da Ordem. Em França, o juiz participa na investigação criminal (até ao ponto de ir à cena do crime com o acusado) e dirige as linhas do interrogatório durante o julgamento. Enquanto o procurador e o advogado de defesa são figuras-chave nos tribunais americanos, no sistema francês apenas desempenham um papel de apoio.

De qualquer modo, os acordos bilaterais favorecem quase sempre os Estados Unidos. Por exemplo, o SOFA entre os EUA e a Mongólia declara que “as ofensas criminais contra as leis da Mongólia cometidas por um membro das forças armadas dos EUA serão remetidas às autoridades americanas próprias, para investigação e decisão.” As autoridades mongóis podem requerer a dispensa da jurisdição americana, mas as autoridades dos EUA não precisam concordar. O pacto estabelece apenas que devem prestar “simpática consideração” por tais pedidos.

(O que pretendem os EUA da Mongólia, aliás? A localização! Durante os últimos sete anos, as tropas americanas têm conduzido o exercício do Pentágono “Khan Quest” ao lado das forças mongóis e de outras forças regionais, e convenientemente próximo dos vizinhos da Mongólia: a Rússia a norte e a China a sul. Este ano, os exercícios inicialmente programados para terem início pouco depois do encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim incluem soldados do Bangladesh, de Tonga, da Coréia do Sul, do Brunei, de Ceilão, da Indonésia e do Camboja.)

Ainda que o SOFA não seja explícito, as proteções legais estão lá, muitas vezes com uma simples frase como “ao pessoal dos EUA é concedido estatuto equivalente ao do pessoal técnico e administrativo da embaixada dos EUA.” Tradução: imunidade diplomática.

O Pentágono negocia também a imunidade do seu pessoal através do Ato de Proteção de Membros de Serviço Americano. Aprovado pelo Congresso em 2002, bane a assistência militar americana de todo o país que não tenha assinado o chamado acordo do Artigo 98, no qual o país promete não se queixar do pessoal dos EUA ao Tribunal Criminal Internacional (TPI). O ato teve impacto imediato: foram suspensas as ajudas militares e a assistência de formação a 35 países que falharam no cumprimento do prazo, e o TPI, estabelecido no ano anterior para perseguir crimes contra a humanidade, como genocídio e limpeza étnica, começou os seus trabalhos enfraquecido pela intrusão americana.

Estas proteções, boas para os tropas, podem levar a tensões com os aliados mais próximos da América. No Japão, onde os Estados Unidos têm mantido uma forte presença militar desde a 2ª Grande Guerra, o SOFA permitiu que soldados responsáveis por crimes indecentes contra civis continuassem em liberdade.

Perto de 20.000 militares americanos, metade do total estacionado no Japão, está em Okinawa, uma ilha no extremo sul do Japão. Em 2003, saturado por anos e anos de silêncio e inação e pela série de crimes violentos contra mulheres de Okinawa, o governador local Keiichi Inamine apresentou ao Secretário da Defesa Donald Rumsfeld então em visita uma petição para uma revisão do SOFA que conferisse ao Japão um papel mais importante nos processos de incriminação.

Resistindo às sutilezas diplomáticas, Inamine convidou a imprensa para o encontro e apresentou estatísticas sobre os crimes contra os seus eleitores: 5.157 ofensas por soldados, pessoal de defesa civil e dependentes americanos durante um período de 30 anos, incluindo 533 assassínios e violações. De acordo com Chalmers Johnson, analista reformado da CIA e reconhecido especialista do Japão e China (ver “America’s Unwelcome Advances”), o governador de Okinawa acentuou que a situação continuava a piorar, com o número de crimes a aumentar todos os anos.

Não são apenas os soldados individualmente que escapam depois de violarem da lei, em larga medida o próprio Pentágono possui salvo-conduto. Com início no fim dos anos noventa, décadas de poluição militar levaram a Coréia do Sul a renegociar o seu SOFA com os Estados Unidos enquanto os dois países conduziam conversações para a devolução de algumas bases em poder dos EUA para os coreanos, incluindo a versão revista certos procedimentos para lidar com a devastação ambiental. Contudo, uma análise feita pelo grupo ambientalista Green Korea United concluiu que as novas regras são demasiado brandas e confusas para que possam ter qualquer utilidade. Por exemplo, segundo se refere, o SOFA corrigido estabelece procedimentos para o acesso coreano às bases americanas. Porém, quando em 2002 uma investigação coreana concluiu que uma fuga de óleo numa estação de metro provinha da base próxima de Yongsan, os investigadores militares dos EUA negaram e não deixaram os seus pares coreanos entrar na base para verificarem a reclamação.

Apesar das disputas periódicas entre a América e estes ou outros aliados anfitriões de bases importantes, incluindo a Itália e a França, os SOFA’s regendo as respectivas relações eram pelo menos editados para verificação pelos mais corajosos e perspicazes. Embora fracas, injustas e/ou resultantes de coerção, algumas cláusulas que permitem ao país hospedeiro processar o pessoal dos EUA foram pelo menos tentadas, testadas e aplicadas.

Não é este o caso em muitos cantos do globo. Os SOFA’s da América com os países do Médio-Oriente Kuwait, Oman, Qatar e Emirados Árabes Unidos, assim como com a Malásia, a Somália e o Quênia continuam todos eles classificados. A revelação do Serviço de Investigação do Congresso de que existem no mínimo 10 SOFA’s classificados significa que há pelos menos outros 3 tão secretos que nem sequer o nome dos países anfitriões é conhecido.

Através do Médio Oriente, os governos esforçam-se por manter oculta qualquer presença militar americana. Por exemplo, durante a preparação para a invasão do Iraque de 2003, milhares de forças de operações especiais dos EUA estavam estacionadas na Jordânia, cujo governo se opõe publicamente à guerra e gozava de ligações diplomáticas e econômicas íntimas com Saddam Hussein, mas, no entanto é suficientemente autocrático para supor que pode esconder dos seus cidadãos uma presença importante dos EUA.

A negociação de um SOFA pode ser ingrata para tais países, cujos governos ficam num caminho apertado, mas, para o mundo, para o ocidente e em particular para Washington, eles têm que surgir totalmente alinhados na guerra contra o terrorismo. Dependendo da respectiva importância estratégica para os EUA, podem ser fortemente compensados por tal colaboração. Em 2002, a Jordânia, que faz fronteira com o Iraque, aceitou 100 milhões de dólares de financiamento militar estrangeiro dos EUA, e no ano seguinte, depois de o rei Abdullah II ter aberto o reino às forças especiais dos EUA, a assistência saltou para 604 milhões, tendo desde então estabilizado em mais de 200 milhões de dólares por ano. Para lidar com os ressentimentos dos cidadãos quanto a qualquer presença militar americana, uma solução é simplesmente negá-la, o que é bastante mais fácil em sítios como a Jordânia, onde o governo limita severamente as liberdades de imprensa e de opinião pública.

A opção no Iraque foi não manter as negociações do SOFA discretas. As movimentações e conversações sobre o Enquadramento Estratégico foram cuidadosamente acompanhadas e bem publicitadas. Foi assim que os EUA pretenderam que fosse, pelo menos de início. Os negociadores americanos tentaram meter todo o tipo de questões contenciosas dentro do SOFA, tendo a mais prejudicial para os iraquianos sido a exigência (posteriormente retirada) de imunidade face à lei iraquiana não apenas para as tropas dos EUA, como também para os empreiteiros militares privados (a memória do pessoal da Blackwater eliminando 17 civis sob uma barragem de fogo no Outono passado pode bem ter endurecido a determinação dos negociadores iraquianos sobre este ponto).

Em Abril, um rascunho do Enquadramento de Segurança marcado “reservado” e citando o ainda incompleto SOFA desencadeou uma tempestade de críticas públicas, das quais a menos importante não terá sido as dos legisladores iraquianos. Dizia o rascunho que a América trabalharia com as forças políticas e militares do Iraque “para lhes permitir proteger o Iraque e o seu povo e para prevenir agressões estrangeiras.” A máxima prioridade, dizia, era “combater a Al Qaeda” junto com outros “grupos terroristas e fora-da-lei.” Apesar desta aparentemente infindável tarefa, os autores da estrutura reafirmavam repetidamente a pretensão do governo americano (ver “What Permanent Iraq Presence?”) de que a presença dos EUA era temporária e “a pedido e convite do governo soberano do Iraque.”

O documento propunha também que as forças dos EUA pudessem “conduzir operações militares” e “deter indivíduos quando necessário por razões de segurança imperativas.” Esta autorização parecia problemática, dado que os EUA tinham detido preventivamente e mantido presos sem culpa formada dezenas de milhar de iraquianos, alguns por mais de um ano (mais de 19.000 estavam ainda sob custódia americana em Maio de 2007).

Em Junho, políticos iraquianos disseram a jornalistas ocidentais que a lista de exigências dos Estados Unidos para uma ocupação em longo prazo era ainda mais ambiciosa. Incluía 58 bases americanas (abaixo da anterior exigência de 200), controle do espaço aéreo iraquiano e imunidade legal para os soldados e empreiteiros civis. E, apesar das afirmações em contrário pelo secretário da defesa Robert Gates, as propostas americanas foram bastante mais longe do que outros pactos de segurança em longo prazo, no sentido em que nem limitam a dimensão da força dos EUA, nem os tipos de armas que pode colocar.

Em resposta a argumentos segundo os quais as propostas constituem efetivamente um tratado para a proteção do Iraque, a administração apenas acentuou que o Enquadramento Estratégico é um acordo não vinculativo. No Iraque, contudo, estas propostas uniram o dividido parlamento iraquiano de uma forma que poucas outras questões fizeram, com a formação de uma coligação multi-étnica e multipartidária para bloquear tanto o SOFA, como o Enquadramento Estratégico.

As futuras opções são limitadas e sem valor do ponto de vista da intenção da administração Bush em garantir o seu legado. Primeira opção: negociar um SOFA e um Enquadramento Estratégico que sejam aceitáveis tanto para os iraquianos, como para o Congresso dos EUA, garantindo assim uma justificação sólida para a continuação da ocupação americana. Segunda opção: prolongar o mandato do Conselho de Segurança e arriscar ridicularizar a “soberania” do Iraque e minar a noção de cooperação EUA-Iraque. Terceira opção: preparar conjuntamente um Memorando de Entendimento (MdE) que salvaguarde todos, até o próximo presidente se instalar no Gabinete Oval.

Em Agosto, os negociadores mostraram o jogo mais uma vez. O governo Bush parece pretender a primeira opção, atenuando algo a sua posição relativamente a reclamações-chave iraquianas. A redação final inclui a criação de um comitê EUA-Iraque que verificaria as operações de segurança dos EUA (incluindo a detenção de iraquianos) e detalharia as circunstâncias sob as quais (incluindo datas e quantidades) as forças de combate americanas começariam a sair. Contudo, os negociadores iraquianos e americanos reconheceram que o acordo é temporário, condicionado por melhoramentos visíveis na situação da segurança e sujeito a aprovação por um parlamento iraquiano ainda desconfiado.

Se esta rodada de negociações falhar, o caminho mais fácil para a Casa Branca parece ser a terceira opção. Basta dar a esse MdE um título sonante e recolher a Crawford,** deixando os pormenores irritantes e uma guerra em curso para o próximo inquilino resolver.

* Frida Berrigan é associada de programas sénior na New America Foundation’s Arms and Security Initiative [Iniciativa sobre Armas e Segurança da Fundação Nova América]

** Nome do rancho de George W. Bush [N.T.]

Tradução: Jorge Vasconcelos para o sítio português ODiario.info, adaptado para o português do Brasil pela redação do PortalCTB

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