Se o governo quiser sair do patamar de crescimento do PIB em torno de zero, que reduza drasticamente, enquanto durar a política antirrecessiva, o superávit primário, até que seja extinto esse conceito em nossas contas públicas. O caminho mais rápido para isso seria o de restaurar a capacidade de financiamento dos estados e dos municípios pela extinção de sua dívida junto ao poder central.
Um economista do IPEA que se comporta como porta-voz do mercado misturou má contabilidade pública com críticas subjetivas à política fiscal para apontar um mascaramento do orçamento governamental que comprometeria a credibilidade do Brasil no exterior. Como esse tipo de crítica ao governo por epígonos neoliberais não passaria despercebida, houve excepcional cobertura midiática – O Globo, Jornal Nacional, Estadão –, menos pelo valor intrínseco das críticas mas pela oportunidade que os opositores do governo viram em manipular mais essa marionete incrustrada no ventre do próprio Estado.
O ministro da Fazenda e o secretário do Tesouro deram explicações detalhadas sobre as contas públicas de 2012 e os expedientes legítimos para fechar a conta do superávit primário. Não vou me deter nisso, portanto. Mas vou me deter numa coisa bem mais importante, e simples: em lugar de perseguir metas de superávit primário do orçamento consolidado, resquício de condicionalidade imposta pelo FMI nas operações de empréstimo ao Brasil desde os anos 1980, o governo deveria ater-se exclusivamente a monitorar o déficit nominal, o único que, do ponto de vista macroeconômico, tem relação com inflação.
Superávit primário – balanço entre despesas e receitas públicas, fora juros – foi uma invenção nas tratativas com o Fundo para que se garantisse o pagamento da contrapartida em dinheiro interno da dívida externa. É uma esquisitice semântica, pois onde se fala “fora juros” deveria dizer-se explicitamente “para pagamento dos juros” da dívida pública.
Quando o governo Fernando Henrique quebrou (os ideólogos do mercado se esqueceram disso) realmente não havia alternativa para o empréstimo de US$ 30 bilhões a não ser aceitando as condicionalidades do Fundo. Agora isso acabou. Somos credores.
Deveríamos, pois, voltar ao leito normal da boa macroeconomia que estabelece relações entre grandezas significativas para efeito de controle da inflação. Em primeiro lugar, orçamento consolidado (juntando União, estados, municípios, Previdência) é uma extravagância. Não somos um Estado unitário, somos uma federação. Cada ente federativo tem seu orçamento e, fora a União, que emite moeda através do Banco Central, estados e municípios têm que viver com suas receitas já que não podem mais obter recursos junto ao setor privado através de endividamento (lembram-se que os bancos públicos estaduais, que garantiam a dívida dos estados, foram privatizados ou absorvidos pela União no governo FHC?)
O orçamento relevante para o controle da inflação é o orçamento nominal da União (inflação se calcula com preços nominais) já que, na hipótese de endividar-se excessivamente ou forçar o Banco Central a ampliar a base monetária, o governo pressionaria a demanda, em especial numa economia aquecida. Contudo, nosso caso é justamente o oposto. Estamos em recessão. Numa situação assim (mísero crescimento do PIB de 1% em 2012), o orçamento nominal pode e deve ter déficit para responder ao que tecnicamente se chama de política anticíclica.
Claro, o déficit nominal aumenta a dívida. Hoje, porém, temos a dívida pública líquida entre as mais baixas do mundo justamente por terem sido feitos, durante anos, elevados superávit primários. Não precisávamos ter feito tanto, sobretudo a partir do segundo governo Lula, quando a dívida com o FMI foi paga. Mas estávamos crescendo, precisávamos de menos déficit. Agora, se a dívida foi paga, é hora de nos livrarmos de suas condicionalidades. Contudo, o governo optou por trocar a supervisão do Fundo por um ente abstrato impertinente, vocalizado por parte da grande mídia, e que tem assento dentro de suas próprias hostes – antes, Palocci, Meirelles e companhia; agora, um “técnico” do IPEA!
Que não haja dúvida: se o governo quiser sair do patamar ridículo de crescimento do PIB em torno de zero, que reduza drasticamente, enquanto durar a política antirrecessiva, o superávit primário, até que seja extinto esse conceito em nossas contas públicas. O caminho mais rápido para isso seria o de restaurar a capacidade de financiamento dos estados e dos municípios pela extinção de sua dívida junto ao poder central. Essa dívida, consolidada nos anos 1990, já foi paga várias vezes. É como aconteceu com a dívida externa brasileira nos anos 1980: ela só pôde ser administrada quando recaiu sobre ela um rebate de até 40% no governo Itamar mediante sua renegociação em termos “não convencionais”.
A forma mais inteligente de fazer isso seria condicionar a redução drástica ou a eliminação da dívida estadual a um programa de investimento em setores prioritários, sem discriminar o custeio onde isso fosse essencial (saúde e educação). Isso tudo teria forte oposição dos vigilantes do mercado, mas já é tempo de o governo deixar de capitular a suas pressões e chantagens. Com US$ 360 bilhões em caixa (reservas) e dívida pública líquida de 35% do PIB, a única coisa que falta ao Brasil para a rápida retomada do crescimento é capacidade de executar. De financiar, ele tem com sobra (R$ 200 bilhões de restos a pagar em 2012), podendo inclusive ampliar essa capacidade financeira com endividamento nominal sob total responsabilidade fiscal – assim como a responsável dona de casa que compra uma lavadora a crédito!
J. Carlos de Assis é economista e professor de Economia internacional da UEPB. Artigo originalmente publicado pela Agência Carta Maior.