Assim são chamados no Benin os herdeiros de antigos escravos brasileiros que, livres, retornaram à África. Com festas, sobrenomes e fé importados da Bahia, eles moldaram uma nova identidade para superar o estigma do passado.
O culto a um santo católico é um dos traços marcantes dos “brasileiros” que habitam a faixa costeira do Benin, do Togo e da Nigéria. Os agudás, como são conhecidos – a palavra deriva de “ajuda”, nome português da cidade de Uidá, movimentado entreposto negreiro da África Ocidental no passado -, integram famílias que descendem de escravos e de comerciantes baianos lá estabelecidos no auge do tráfico humano entre os dois continentes. Possuem sobrenomes como Souza, Silva, Medeiros, Almeida, Aguiar, Campos, entre outros, dançam a “burrinha”, uma versão arcaica do bumba meu boi, e se reúnem nas festas ao redor de uma feijoadá ou de um kousidou. Não raro, os agudás mais velhos se saúdam com um singelo “Bom dia, como passou?”, e a resposta não demora: “Bem, brigado”.
“O português chegou a ser língua franca no Benin na época da implantação da administração colonial francesa”, observa o antropólogo Milton Guran, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, em seu livro Agudás, os Brasileiros do Benin. A escola da Missão Católica de Lyon, que se estabeleceu em Uidá em 1862, ensinava em português aos filhos dos retornados, que levaram para a África negra aspectos da cultura ocidental, como técnicas de arquitetura e engenharia (a alvenaria), festas religiosas, hábitos alimentares (a mandioca, o doce de coco), organização familiar patriarcal e uso de sobrenomes. “A presença brasileira foi tão marcante nesse trecho da costa africana entre os séculos 18 e 19 que poderíamos falar de uma colonização informal”, analisa Guran. “É exemplo único de implantação de uma cultura brasileira – no caso, a baiana – fora de nossas fronteiras.” Para os governantes do reino do Daomé (antigo nome do Benin), o comércio de cativos era um projeto econômico oficial, de desenvolvimento comercial e fortalecimento de um Estado.
Esse ambiente foi favorável à chegada de brasileiros dispostos a trabalhar como negreiros, entre os quais o lendário Francisco Félix de Souza. Filho de índia com português, Souza nasceu na Bahia, em 1754, e desembarcou no Daomé, acredita-se, em 1788. Escrivão e contador do Forte São João Batista de Ajuda, em Uidá, logo tornou-se mercador influente – dependia dele a entrada ao reino de produtos como pólvora, fusis, cachaça – e galgou a aura de mito nos relatos de viagem da época, alardeado por manter 2 mil escravos em seus barracões, ser pai de 80 filhos homens (não houve contabilidade de filhas) e gozar de sua fortuna em festins cercados das mais belas mulheres e de vinhos, iguarias e roupas finas importadas de Paris, Londres e Havana.
A trajetória de Souza ganhou ares de folhetim quando ele foi preso pela petulância de cobrar uma dívida do rei Adandozan (como castigo, consta que o rei ordenou que o prisioneiro fosse mergulhado várias vezes ao dia em um tonel de índigo para que sua pele ficasse escura). Nesse ínterim, porém, o baiano fez um pacto de sangue com o príncipe Gakpé, que cobiçava o trono. O irmão caçula do rei ajudou na fuga do brasileiro em troca de seu apoio em um golpe que, por fim, destituiu Adandozan. Souza entrou para a nobreza: foi consagrado vice-rei de Uidá. Ganhou um título honorário inédito, o de Chachá, e o direito de monopolizar o tráfico de escravos no Daomé.
O mercador deixou uma dinastia no país. Em outubro de 1995, Mitô Honoré Feliciano de Souza foi entronizado como Chachá VIII, em uma cerimônia em Singbomey, a ancestral residência da família em Uidá onde Francisco Félix está enterrado. O sobrenome Souza ainda significa poder social no Benin. “O Chachá arbitra os conflitos que não implicam em crime de sangue e disputa de propriedade. Além disso, ele tem certo peso eleitoral e é a referência maior de uma identidade cultural, os agudás”, diz Milton Guran.
O etnólogo francês Pierre Verger, radicado no Brasil de 1946 até sua morte, em 1996, aos 94 anos, foi pioneiro na documentação dos agudás. Nos anos 1950, disposto a estudar o fluxo e o refluxo de escravos entre os dois continentes, Verger iniciou-se em ritos ancestrais e fotografou pessoas e eventos que expressavam uma ligação cultural viva e recíproca entre a África e o Brasil. Em 1951, suas imagens do Benin ilustraram uma série de reportagens na revista O Cruzeiro, com textos assinados pelo sociólogo Gilberto Freyre. Freyre destacou o fato de a Irmandade do Senhor do Bonfim vestir a faixa verde e amarela. “Os agudás se conservam sociologicamente católicos e brasileiros[…], à sombra do culto da família e da casa organizada em torno da mulher e da monogamia”, escreveu. “A Bahia conseguiu conservar seu estandarte através de homens que se estabeleceram na África livres e, às vezes, ricos.”
Brasileiros do além-mar, os agudás da costa africana são pessoas de identidade peculiar, forjada na experiência de dor e separação da escravatura.Mas que conservaram a alegria por uma razão que, hoje, parece elementar. “Acontece que são baianos”, resumiu Gilberto Freyre.
Fonte: A Famaliá