Em meados do século XIX a grande maioria dos negros de Salvador, escravos ou libertos, africanos ou crioulos, trabalhavam no serviço de ganho urbano. Eram eles que garantiam a locomoção de mercadorias de todos os portes por toda a cidade. “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”, escreveu, em 1858, o viajante alemão Robert Avé-Lallemant ao chegar em Salvador. Porém, na primeira manhã de julho de 1857, as ruas amanheceram vazias, nenhum negro saiu para transportar mercadoria, muito pelo contrário, eles decidiram cruzar os braços em repúdio a uma nova lei criada pela câmara municipal que valia a partir daquela data.
A lei criada em março de 1857 atingia principalmente os carregadores, fossem esses de gente ou de cargas, no entanto o edital era bem abrangente, segundo as suas cláusulas estariam inclusos no decreto “os mais que fazem profissão habitual de ganhar”.
A postura estabelecia que todos os ganhadores deveriam, a partir daquela data, adquirir uma licença concedida somente pela câmara municipal, concessão essa que custaria 2 mil réis, além de uma taxa adicional de 3 mil réis por uma chapa de metal contendo o número de inscrição, este objeto seria de uso obrigatório sempre que o trabalho de ganho estivesse sendo exercido. A iniciativa visava especialmente controlar mais eficientemente as atividades dos negros no espaço público da cidade, essa era uma preocupação das autoridades baianas especialmente pelo número de negros, já que eram extrema maioria, cerca de 70% da população e mais especificamente pelo histórico de revoltas ocorridas anteriormente.
No entanto, disciplinar as atividades dos negros na cidade não era fácil, os escravos urbanos necessitavam de uma autonomia de locomoção para ganharem o suficiente para seus senhores e para si, autonomia essa que foi construída ao longo de séculos. Em muitos casos estes escravos nem mesmo viviam com seus senhores, encontrava – se com ele uma vez na semana para pagar-lhe o valor previamente estabelecido, pagamento este que também podia ser diário, o que sobrasse era normalmente guardado para a compra da alforria futuramente. É bom lembrar que a atividade de ganhador também era exercida por libertos, embora estes não a exercessem com orgulho, carregador era atividade de cativo, e este sentimento de vergonha existia apesar da aglutinação étnica que caracterizava os grupos de ganhadores.
Essas identidades étnicas comuns propiciaram o surgimento de solidas redes solidariedade, e mesmo havendo hegemonia quantitativa de algumas etnias, as trocas culturais não deixaram de existir, mesmo porque os fatores étnicos não eram os únicos que os aproximavam, havia o compartilhamento de uma mesma atividade, a convergência de alguns signos culturais como idioma ou religião, a condição comum de cativo em solo estrangeiro, e especialmente a desumana travessia do atlântico a bordo do mesmo navio, que os tornavam quase membros de uma mesma família.
Em 2 de julho de 1857, o Jornal da Bahia noticiava que no dia anterior a cidade amanhecera deserta de ganhadores e carregadores e o principal motivo dessa atitude era a obrigatoriedade ditada pela lei de carregarem chapas de metal no pescoço.
A greve negra de 1857 deixou evidente para toda a sociedade o quanto o funcionamento do comércio era dependente dos africanos. A associação comercial era contra a lei também, o seu presidente, sob pressão dos comerciantes, logo ordenou que a Câmara suspendesse a cobrança da matricula e fornecesse gratuitamente a chapa de identificação, o que gerou discórdias de diversas naturezas entre os vereadores, que mesmo a contragosto acabaram cedendo as exigências da associação, acirrando ainda mais as discórdias entre Câmara e Palácio Presidencial.
Com isso os grevistas já conseguiram uma vitória parcial sobre a lei, especificamente sobre a parte fiscal, no entanto, a parte mais incômoda, ou seja, as degradantes placas de metal, que diziam muito a um povo natural de uma terra onde a marcação do corpo tem uma imensa dimensão simbólica, que implica inclusive na posição social do individuo. A partir do terceiro dia de greve o movimento começou a perder força devido exclusivamente aos elementos cativos do movimento, pressionados por fatores econômicos, os senhores passaram a forçar seus escravos a retornarem às atividades. Esses escravos além da incômoda situação em que se encontravam, já que teoricamente estavam boicotando a greve, ainda eram ridicularizados pelos opositores da lei.
Na segunda-feira que marcava uma semana de duração da greve, os cantos amanhecerem repovoados pelos carregadores e muitas cargas já eram vistas sendo transportadas em várias direções, só que os ganhadores não carregavam nenhuma chapa de metal. A atitude se explicava pelo fato que a Câmara dos vereadores aboliu totalmente a taxa de matrícula, alem de tornar o processo de cadastramento dos africanos bem menos burocráticos, a vitória só não foi completa porque foi mantida a obrigatoriedade da chapa.
* Autor do livro Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo. Companhia das Letras, 2019.
Informações: CTB-BA.