Por José Reinaldo Carvalho (*)
Há 22 anos, num dia como hoje, 27 de maio, faleceu o camarada João Amazonas, o mais destacado dirigente, político, ideólogo e organizador do Partido Comunista do Brasil, desde os finais dos anos 1950, quando, ao lado de outros proeminentes líderes do Partido como Maurício Grabois e Pedro Pomar, iniciou a luta contra a direção revisionista. Já no início dos anos 1940, precisamente em 1943 na Conferência da Mantiqueira, Amazonas passou a desempenhar um papel significativo no Partido, num momento extremamente difícil sob a dura repressão policial-militar desencadeada contra os comunistas pelo regime do Estado Novo. O Partido tinha sido praticamente dado como extinto por Filinto Muller, o chefe dos torturadores e sicários da época.
Desde então, Amazonas participou do núcleo marxista-leninista em formação no Partido, já em luta contra tendências oportunistas e liquidacionistas. Tornou-se um conhecido dirigente político e de massas ao se ligar ao movimento sindical e ser eleito deputado à Assembleia Constituinte de 1946. Com a proscrição do Partido em 1947, a cassação dos mandatos parlamentares em 1948 e a decretação da prisão dos seus dirigentes pelo governo do general Eurico Dutra, Amazonas e demais dirigentes comunistas passaram a viver na clandestinidade, condição que se agravou a partir do golpe militar de 1964 e se estendeu por quase 40 anos. Durante a vigência da ditadura militar, dirigiu o Partido, deu diretrizes táticas, estratégicas e organizativas para a luta política de massas e a luta armada no Araguaia e promoveu a formação teórica e ideológica dos militantes e quadros em bases marxistas-leninistas, sempre advertindo contra o revisionismo, o dogmatismo e o ecletismo.
Desse período deixou um importante legado consubstanciado nos documentos da 6ª e 7ª conferências nacionais, respectivamente em 1966 e 1978-79, na fundamentação das três bandeiras de luta contra a ditadura – pela revogação dos atos e leis de exceção, pela anistia ampla, geral e irrestrita e pela convocação de uma Assembléia Constituinte livremente eleita. Formulou teses importantes da tática partidária em documento intitulado “Conquistar a Liberdade Política, Alcançar a Democracia Popular”.
No começo dos anos 1980, ainda sob a clandestinidade imposta pela ditadura, João Amazonas emergiu como importante liderança no cenário político nacional, comandando a campanha pela legalização do Partido, participando da direção das Diretas Já, conduzindo as primeiras batalhas eleitorais do Partido no final da ditadura, ainda no interior do antigo MDB, e posteriormente, já com a legenda do Partido legalizada, pela eleição da bancada na Assembleia Constituinte (1986).
Após a redemocratização do Brasil na década de 1980, João Amazonas emergiu como uma figura respeitada e prestigiada no cenário político nacional. Foi um dos articuladores da campanha presidencial de Tancredo Neves na última eleição indireta pelo Colégio Eleitoral (1985). Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte (1987 e 1988), tornou-se um interlocutor indispensável das principais lideranças da oposição democrática e popular. Com as Teses sobre a Constituinte e sua presença assídua em Brasília, orientou cada voto da bancada comunista, combateu o reacionarismo das instituições, o militarismo, as estruturas arcaicas das classes dominantes retrógradas. No momento da aprovação do texto final da Constituição (1988), orientou o voto SIM da bancada, com todas as ressalvas que foram apresentadas no discurso do líder da bancada Haroldo Lima. Ainda que democrática, a Constituição Cidadã, como foi denominada, não correspondia inteiramente às aspirações do povo brasileiro. Até hoje temos um sistema democrático, uma soberania nacional e direitos sociais insuficientes.
No período seguinte, João Amazonas opôs-se tenazmente ao neoliberalismo dos governos Collor e Fernando Henrique.
Em meio a essa luta, foi um dos primeiros, ao lado de Lula e Miguel Arraes (mais tarde Brizola se incorporou), a perceber a necessidade de criar um núcleo democrático-popular no esforço de unidade das forças progressistas a fim de abrir caminho na luta por soluções de fundo para a crise estrutural e à encruzilhada histórica do Brasil. Empenhou-se na criação da Frente Brasil Popular (PT, PSB, PCdoB) e participou vigorosamente da campanha eleitoral de Lula à Presidência da República em 1989. O mesmo se repetiu nas campanhas de 1994 e 1998. Em 2002, pouco antes de morrer, orientou o PCdoB a apoiar Lula na campanha que estava por começar se tornaria enfim vitoriosa no dia 27 de outubro.
Da sua trajetória de destacado líder comunista, vale mencionar alguns aspectos essenciais do patrimônio político-ideológico que legou e reavivar as razões pelas quais ele é referido em documentos oficiais como “ideólogo” do PCdoB. Afinal, João Amazonas não é apenas um retrato na parede nem uma efígie.
Ao participar ao lado de Maurício Grabois e Pedro Pomar da reorganização do Partido após a ruptura com a maioria oportunista de direita e revisionista então liderada por Luís Carlos Prestes, legou-nos João Amazonas um partido revolucionário, com nítida identidade comunista e base teórica marxista-leninista. Compunha o quadro da luta interna que o Partido viveu no final da década de 1950 até 1962 a cisão do movimento comunista internacional. Internamente, os fatores determinantes que antagonizaram os marxistas-leninistas e os revisionistas foram as concepções diferentes sobre a estratégia, a tática e a natureza, o caráter do Partido. Havia uma contradição entre a linha oportunista de direita proposta pela Declaração de Março de 1958, adotada pela maioria do Comitê Central e pelo 5º Congresso do PCB (1960), e a linha revolucionária que fundamentou o Manifesto-Programa de 1962. Quanto à concepção sobre Partido, a maioria do Comitê Central enveredou pelo caminho do caos orgânico e do liquidacionismo.
Assim, podemos dizer que a principal herança legada por Amazonas foi um Partido Comunista dotado de uma linha política revolucionária.
Nunca é demais esta lembrança, porquanto a luta ideológica é permanente e os desafios são recorrentes. Nos últimos anos, alguns dirigentes desertaram do Partido por razões circunstanciais distintas, ligadas a projetos carreiristas e motivações de fundo oportunista de direita e liquidacionista. Uns, propondo uma deriva “nacionalista”, alegando que a luta de classes “divide o Brasil”. Outros, de cariz social-democrata e social-cristão, substituindo a luta de classes pelo “bem comum”, renegando a identidade comunista, a independência política e ideológica e propondo a liquidação orgânica, com a dissolução do Partido nas fileiras do partido dos “socialistas”. Outras formas de demissionismo se expressam por meio de formulações próprias dos modismos identitários sexistas e etnicistas, que deformam as reivindicações ligadas aos direitos humanos e civis, também sobrepondo-as à luta de classes.
A linha política revolucionária e a identidade comunista do Partido que nos legou Amazonas consubstanciam-se no mais importante documento que o PCdoB publicou nos últimos 30 anos: o Programa Socialista, preliminarmente aprovado na 8ª Conferência Nacional (1995) e adotado pelo 9º Congresso (1997). Muitas vezes incompreendido e submetido a críticas desqualificadoras, sob o eufemismo de que tem “lacunas”, como se fosse uma abordagem desligada das necessidades da luta pelo socialismo na atualidade. Quanto idealismo se contém em tal crítica, como se pudesse haver documentos totalizantes, absolutos, tão fechados e isentos de lacunas! Conhecemos assim um argumento eivado de dogmatismo e iliteracia.
Não se pode pretender apagar com uma crítica leviana os grandes méritos do Programa Socialista escrito por João Amazonas. No texto estão desenvolvidas as teses adotadas no 8º Congresso (1992), de que não há modelo único do socialismo e de que a evolução objetiva da situação mundial e brasileira tornavam anacrônica a tese das duas etapas da revolução. Apesar da contrarrevolução ocorrida na URSS e demais países socialistas do Leste europeu, a luta pelo socialismo estava, como está, na ordem do dia.
“O Brasil encontra-se em profunda crise de natureza estrutural. Fracassaram os projetos políticos e econômicos das classes dominantes. O país enfrenta graves problemas. Milhões de brasileiros vivem o drama da fome, do desemprego crônico, da falta de assistência e de moradia decente. A soberania nacional degrada-se com a política de submissão e de venda do patrimônio público aos monopolistas e aos banqueiros internacionais.
Prementemente, o Brasil necessita de novo Projeto Nacional, expressando o interesse da maioria da nação, orientado para a construção de uma nova sociedade, de liberdade, progresso e justiça social.
O Partido Comunista do Brasil, PCdoB, que defende o socialismo científico, apresenta aos trabalhadores e ao povo um programa de transformações radicais, possível de ser realizado com sucesso, capaz de promover o bem-estar da população e o desenvolvimento progressista da nação.
Indicando esse caminho, o PCdoB reafirma suas convicções inabaláveis na superioridade do sistema socialista sobre o capitalismo decadente. Embora temporariamente derrotado na ex-União Soviética e no Leste europeu, o socialismo vive e continua sendo a esperança dos explorados e oprimidos, de todos os que almejam a liberdade e o progresso social. A experiência vem demonstrando que onde o socialismo é eliminado, voltam a aparecer, com o capitalismo, os terríveis males da velha sociedade — desemprego, fome, injustiças sociais, drogas, insegurança geral. Ao mesmo tempo em que ocupam a cena os políticos reacionários e fascistas, juntamente com especuladores, ladrões do dinheiro público, os que somente se interessam pelos lucros de toda a espécie.
O socialismo é o futuro radioso dos povos. Triunfará inevitavelmente com a luta decidida dos trabalhadores e das massas populares sob a liderança do Partido Comunista”, afirma-se na Apresentação do Programa.
Em outro trecho, ao abordar o caminho para alcançar o socialismo, lê-se: “O Programa socialista do Partido Comunista do Brasil é uma grande bandeira de combate em prol da transformação radical da sociedade brasileira em crise permanente, a proposta correta para eliminar a dependência do país aos monopolistas estrangeiros e acabar com o domínio das forças reacionárias sobre a nação, o meio eficaz de liquidar as injustiças sociais, terminar com a fome e a miséria que crescem aceleradamente no polo oposto ao do enriquecimento fácil de uma minoria de privilegiados e corruptos”.
Segundo a visão de Amazonas, que então era adotada por todo o coletivo partidário, “a conquista do socialismo é um caminho de árdua disputa com as classes retrógradas que dominam o país. São forças poderosas que não cederão facilmente as posições que detêm. A máquina do Estado está em suas mãos. Utilizarão o engodo e as promessas jamais cumpridas, o monopólio da mídia, recorrerão ao arbítrio, apelarão para o fascismo, não vacilarão em juntar-se aos intervencionistas estrangeiros a fim de tentar conter e esmagar o movimento progressista. Todos os que almejam uma pátria livre e soberana, que desejam avanços contínuos nos terrenos político, econômico, social e cultural terão de enfrentar decidida e persistentemente as forças inimigas”. Esta formulação enfatiza que o Partido Comunista, os trabalhadores, suas aspirações como as de todo o povo brasileiro, são inconciliáveis com as classes dominantes. O socialismo não resultará da conciliação de classes.
Igualmente, a luta pelo socialismo no Brasil assume concretude estratégica e tática com o entrelaçamento das três vertentes da luta: a nacional, a democrática e a social. O caminho para alcançar o socialismo seria obstaculizado com a separação dessas três vertentes. Resvalaria para o economicismo, o democratismo liberal ou o nacionalismo burguês. Amazonas pontuou que na luta pelo socialismo têm “significado primordial a defesa da soberania e da independência nacional; a exigência de democratização ampla e profunda da vida do país; os reclamos da questão social em constante agravamento”. No texto do Programa Socialista explica-se que estes “são objetivos relacionados com a questão do poder, visando tirar o Brasil do atraso e da pobreza, garantir a liberdade para o povo, afirmar a identidade nacional”. E que “essa luta apresenta não apenas aspecto tático”, mas “perdurará por largo período e somente terminará com a vitória definitiva das forças progressistas”. Porque “as classes dominantes não têm alternativa e “insistirão até o fim na política entreguista, antinacional, persistirão na via antidemocrática e antissocial”. A não observância a esses princípios leva os comunistas a atuarem às cegas ou de acordo com os ventos que sopram conjunturalmente. Ora pretende-se que a receita mágica para enfrentar todos os problemas do país residiria na adoção de um plano de desenvolvimento nacional à moda das orientações dos setores “nacionalistas da burguesia”, incluindo os capitalistas monopolistas, setores da banca e a burguesia latifundiária, apelidada de “agro”. Ora advoga-se que a prioridade é a luta pela “democracia”, por meio de uma frente em que participariam até mesmo os maiorais da direita nacional. Projetada para além fronteiras, cogita-se mesmo a possibilidade de construir uma “frente democrática internacional” para combater a extrema-direita nos moldes das proposições da Casa Branca sob a liderança do Partido Democrata. Como, por óbvio, nada disso mobiliza o povo, surgem teorizações esdrúxulas sobre a nova forma-partido em que o método de luta por excelência é a participação em governos e a cooptação de lideranças burguesas para as fileiras do Partido e até mesmo cargos diretivos.
O Programa Socialista de 1997 é atual. Suas formulações servem de fundamento para a elaboração de plataformas políticas que contemplem as necessidades do desenvolvimento nacional, da democratização profunda do país e da realização de reformas sociais de caráter progressista. Desligadas da perspectiva socialista e da luta pelo poder político dos trabalhadores, as proposições programáticas imediatistas se perdem e podem até transformar-se no seu oposto. Igualmente, os instrumentos de luta – frentes políticas e sociais, mandatos eletivos e postos em governos – não substituem nem se opõem à construção de um partido comunista. Os dois pontos finais do Programa Socialista destacam: “Tarefa de primeiro plano para alcançar o socialismo é a construção de um forte Partido Comunista, ligado às massas, em particular à classe operária. A fim de cumprir sua missão histórica, o PCdoB precisa multiplicar sua força militante, ampliar sua influência política em todos os setores de atividade, aprofundar os conhecimentos teóricos, aprender da experiência positiva e negativa do socialismo na ex-URSS e em outros países. O Partido deve colocar-se à altura do Programa Socialista que apresenta aos trabalhadores e ao povo.
O socialismo científico não é uma perspectiva longínqua, inacessível. É uma exigência do desenvolvimento histórico. Sua realização vitoriosa depende da justa direção dos comunistas do Brasil e do mundo inteiro, resulta da luta tenaz e consciente das massas ansiosas de liberdade e justiça social”.
A crise do capitalismo, a decadência do sistema político burguês, o declínio da hegemonia única do imperialismo estadunidense, a multipolaridade mundial, os conflitos internacionais, a ameaça de guerra global, a intensificação da exploração dos trabalhadores e da espoliação das nações dependentes, os avanços do socialismo, com a nova era da construção do socialismo de peculiaridades chinesas, segundo a formulação atual do Partido Comunista da China, a resistência heroica de Cuba e da Venezuela, a manifestação das novas características da luta anti-imperialista nos países do Sul Global, a polarização política no Brasil, com a ofensiva da direita para impedir as reformas progressistas propostas pelo governo Lula demonstram que vivemos tempos de luta árdua, não de paz social e conciliação de classes, nem mesmo de distensão internacional ou afrouxamento das políticas imperialistas. Em tal contexto, é maior do que antes a vigência de um Programa Socialista, de luta democrática, popular, patriótica anti-imperialista e progressista, de esquerda, assim como o fortalecimento do Partido Comunista do Brasil, com sua identidade política e ideológica, consistência orgânica e enraizamento entre as amplas massas populares.
O legado de João Amazonas dá à atual geração de militantes e quadros comunistas a bússola para que desempenhem sua missão histórica.
(*) Jornalista, escritor, autor, entre outros livros, de Comunistas no Brasil, com Wevergton Brito. É membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do Partido Comunista do Brasil. Foi vice-presidente do Partido, por indicação de João Amazonas, de 2001 a 2006