Por: Marcos Rehder Batista.
A construção de uma rede integrada continental de parlamentares comprometidos com projetos ambientais, sob a âncora de uma comissão das Nações Unidas (a CEPAL), representa algo simplesmente novo
Pode-se dizer que a multiplicidade de temas e instituições que abriram o primeiro dia do Pavilhão Brasil na COP28 retrata bem a intensidade com que o projeto de Economia Verde mobiliza Estado e sociedade em nosso país, um indício otimista de que o negacionismo ambiental está se tornando uma página virada. Evidentemente, estamos falando de Sustentabilidade como um todo, nos termos da Agenda 2030, envolvendo desenvolvimento ambiental, social e econômico (a chamada Sustentabilidade Tripartite). Nesta sexta, 1 de dezembro de 2023, tivemos mesas coordenadas por ministérios (Meio Ambiente e Mudança do Clima, MCTI, Saúde e Fazenda), entidades de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, Tribunais de Contas, Frente Nacional dos Prefeitos. Pela terceira edição consecutiva das COP’s aconteceu o encontro do Observatório Parlamentar de Mudanças Climáticas e Transição Justa (OPCC), um grupo de parlamentares da América Latina e Caribe, articulado a partir da atuação do Senador Jaques Wagner (PT-BA) na Comissão de Meio Ambiente do Senado, e desde o começo contando com apoio técnico da CEPAL, onde o observatório ganhou vida.
A construção de uma rede integrada continental de parlamentares comprometidos com projetos ambientais, sob a âncora de uma comissão das Nações Unidas (a CEPAL), representa algo simplesmente novo nesta agenda, tradicionalmente protagonizada por entidades da sociedade civil e representantes do poder executivo: uma coisa é termos parlamentares que apoiam projetos do executivo; outra coisa é termos parlamentares que apoiam e participam de entidades da sociedade civil e centros de pesquisa; uma outra coisa, substancialmente diferente, é eles estarem articulados entre si, em dimensão regional, dentro de uma arena institucional própria (a OPCC). Quando o legislativo assume um protagonismo independente, temos a garantia de seja lá qual for o governo, haverá lideranças nas esferas de poder articuladas para garantir estabilidade e continuidade, como foi o caso, por exemplo, do Fórum da Geração Ecológica, embrião da OPCC, articulado por Wagner no Senado em meados de 2021, em pleno governo Jair Bolsonaro (mais detalhes na próxima seção).
Considerando que é no parlamento em que se vê a mais plena representatividade da heterogeneidade da sociedade, este tipo de medida fortalece em muito sua legitimidade e sua capacidade de construção, por isso esta articulação é de suma importância para que não aconteçam mais retrocessos (e para viabilizar avanços urgentes). Sendo assim, este texto objetiva traçar um histórico da origem do OPCC a partir do Fórum da Geração Ecológica, para em seguida sintetizar os pontos mais incisivos do evento da última sexta-feira. Por fim, trarei algumas palavras sobre a importância deste “Observatório”.
A articulação sustentável do legislativo: uma garantia em tempos de crise
A despeito da recente eleição do anarcocapitalista Javier Milei na Argentina, a derrota de Donald Trump em 2020 deu um fôlego extra para as forças políticas comprometidas com uma concepção mais abrangente de democracia, que abarcasse as dimensões políticas, civis e sociais. Apesar de animador, aquele momento político ainda era marcado pelas mais criativas (ou, alucinadas) formas de negacionismo, sobretudo aqui no Brasil. Por este motivo foi algo bastante incomum uma liderança de esquerda não apenas ter conseguido assumir a presidência da Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado – no apogeu da influência dos setores mais arcaicos de nossas atividades rurais, que se opunham à tendência lucrativa de sustentabilidade ambiental no agronegócio -, como expandir esta comissão para além muros do congresso. Aprovado na CMA em junho de 2021, o Fórum da Geração Ecológica articulado por Jaques Wagner concentrou senadores comprometidos em dialogar com um grupo de mais de 40 representantes da sociedade civil, entre lideranças ambientalistas, do agronegócio, direitos humanos, setores empresariais urbanos e pesquisadores, em uma parceria técnica com a CEPAL.
Ao longo de um ano este grupo gerou mais de 30 projetos de lei, a maioria de autoria coletiva, promoveu debates sobre transição energética, pagamento de serviços ambientais e agricultura sustentável, somando um total de 51 reuniões no período de 1 ano. Havia uma clara orientação para o chamado “Green New Deal”, com um objetivo final para a elabora de uma Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável, e os projetos discutidos se dividiam em 5 grupos de trabalho temáticos: Bioeconomia; Cidades Sustentáveis; Economia Circular e Indústria; Energia e Proteção e Restauração e Uso da Terra.
Na esteia da parceria com a CEPAL este grupo se articulou com mandatos legislativos de outros países de sua área de abrangência (e até da Inglaterra), o que proporcionou um encontro de natureza parlamentar internacional na COP26, no final de 2021. Deste processo surgiu a OPCC, cuja Declaração Conjunta foi assinada durante a Conferência das Partes, em Glasgow, ganhando assim uma repercussão de âmbito mundial. Nesta declaração, assinada por 15 parlamentares de 12 países (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Curaçao, Guatemala, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Turcas e Caicos, Montserrat, Uruguai e brasileiros, Jaques Wagner e Rodrigo Agostinho), apenas 4 dos que assinaram não são presidentes de comissões (entre estes, um ministro); em outras palavras, eram lideranças que coordenam outras lideranças engajadas na agenda da sustentabilidade, compondo uma rede consistente e com alto potencial de expansão. Neste documento já está sinalizado como objetivo central a criação de uma plataforma que concentre informações sobre projetos de lei sobre sustentabilidade, permitindo um intercâmbio de experiências, declaradamente em consonância com o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú, de 2018.
Na COP seguinte foi assinada uma segunda Declaração Conjunta, que reafirma os pontos principais da primeira, defende o multilateralismo e os princípios democráticos e de qualidade de gestão pública presentes do Acordo de Escazú (efetividade, eficácia, legalidade, transparência, imparcialidade, confiabilidade e qualidade), além de anunciar uma plataforma de informações legislativas em estado experimental. Em 2023, o documento conjunto foi assinado em abril, reforçando a idéia de que nossa região é das menos responsáveis e das mais afetadas, e já apresenta os 4 eixos de trabalho amadurecidos ao longo dos 2 anos da OPCC: i) Conservação de Ecossistemas; ii) Marcos de Financiamento e Taxonomia Verde e Sustentável; iii) Pressupostos para a Sustentabilidade e; iv) Desenvolvimento Sustentável e Resiliente ao Clima e Industrialização Verde através de um Novo Modelo Econômico. Em setembro de 2023 a plataforma de informações legislativa dos agora mais de 20 países representados ficou pronta e foi lançada, e conta com mais de 30 lideranças legislativas, entre titulares, co-titulares e os 2 fundadores, Gladys Gonzales (Argentina) e o próprio Jaques Wagner.
O sentimento do atual estado das coisas, na COP28
Fechando o primeiro dia do Pavilhão Brasil na COP28, na última sexta-feira, o painel do Observatório Parlamentar de Mudanças Climáticas e Transição Justa, com a moderação do senador baiano e falas de Manoel Salazar-Xirinachs (Sec. Exec. Da CEPAL), da deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), Natálio Wheatley (primeiro-ministro das Ilhas Visrgens Britânicas), do deputado colombiano Ivan Carlos Lozada e do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP). Além de informações conferidas em documentos e nos sites oficiais do Senado brasileiro e da CEPAL, boa parte do que foi trazido aqui contou com a apresentação do moderador, cujos alguns detalhes foram aprofundados pelo Secretário Geral do órgão da ONU de planejamento econômico da América Latina e Caribe. Este último destacou que os países que estão sob sua área de abrangência são responsáveis apenas por 10% da Emissão dos Gases de Efeito Estufa, porém sua vulnerabilidade socioeconômica justifica ajuda dos outros 90% principais responsáveis pela atual emergência climática (pautado pela vulnerabilidade da característica do chamado Sul Global, conceito muito usado nas arenas de debate aqui citadas), além de ressaltar os comprovados ganhos econômicos de uma estrutura produtiva de baixo carbono.
No mesmo sentido foi a fala de Nilton Tatto, membro da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara brasileira e líder da Frente Parlamentar Ambientalista de nosso parlamento. O deputado reafirmou o compromisso de não regressão em relação aos marcos legais de proteção ambiental do Brasil, reforçando a necessidade de equilíbrio entre as sustentabilidades ambiental, social e econômica, dado o problema de desemprego e baixa renda frequentes na América Latina e Caribe. Neste problema das vulnerabilidades socioeconômicas, destaca a também preocupação em garantias econômicas e humanas para comunidades tradicionais, expandido a ideia de Sul Global em termos mundiais para a existências desta dicotomia Norte-Sul Globais dentro dos próprios países, expondo a necessidade do combate às desigualdades regionais internas dentro das nações que compõem a OPCC.
Esta preocupação com os povos tradicionais foi o sentido da exposição de Célia Xakriabá, líder mineira da etnia Xakriabá, deputada federal pelo PSOL e líder da Comissão Permanente da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados. Ela reforçou que os quase 2 milhões de indígenas brasileiros são as principais garantias da preservação ambiental, consistindo em lideranças naturais para a “última geração capaz de barrar a crise climática”. Denunciou os últimos anos em que o racismo ambiental ganhou uma dimensão nunca vista, salientando que a bancada de seu partido protocolou neste ano um projeto de lei para a tipificação do crime de ecocídio. O genocídio contra as populações tradicionais também deu o tom na fala do deputado Ivan Carlos Lozada, que denunciou que seu país é recordista em assassinatos de lideres ambientalistas, 90% sendo de povos originais, e que as fronteiras agrícolas precisam ficar onde estão; também é absolutamente contra qualquer tipo de extração de combustíveis fósseis na região amazônica.
Natálio Wheatley, primeiro-ministro das Ilhas Virgens Britânicas, traz uma realidade diferente dos anteriores. A base econômica do país caribenho é o turismo e o setor de serviços, e por isso ele destaca que alguns estudos indicam que em caso de degradação do litoral acarretaria numa diminuição de 70% dos visitantes, além de atingir brutalmente a agricultura. Aliás, defende um modelo econômico local que dependa cada vez menos das atividades rurais. Sua gestão está focada na transição energética, dada a dependência externa de petróleo, e tem em mente um agressivo programa de implantação de placas fotovoltaicas. Destaca que nas Ilhas Virgens Britânicas não se apoia o turismo de massa, priorizando um padrão Premium, claramente menos agressivo social e ambientalmente e capaz de trazer retornos econômicos melhores.
Em síntese, pode-se dizer que os caminhos apontam para, como aponta Nilto Tatto, a agregação de valor do que as localidades possuem, tanto conhecimento e produtos tradicionais quanto no desenvolvimento tecnológico sustentável. Isso proporcionaria cadeias de valor mais inclusivas, com maior potencial de geração de renda e riquezas, com menor impacto ambiental. Pode-se dizer que dos 4 eixos indicados na Declaração Conjunta OPCC de 2023 temos os pontos fundamentais capazes de gerar um modelo econômico sustentável, uma Economia Verde com neoindustrialização adequado às demandas da América Latina e Caribe, por isso a importância de um destaque cada vez maior para as arenas de debate aqui citadas, e uma das intenções deste artigo é esta.
Que futuro tudo isso permite
Uma segunda intenção motivadora desta reflexão sobre a articulação entre membros dos legislativos destes países do Sul Global em nossa realidade americana é o cheiro de estabilidade democrática que uma articulação de membros de legislativo traz. Nada pode garantir com mais força que a resiliência do poder legislativo. Numa sociedade plural de condições e visões díspares, só nele todos podem alguém com microfone, voto e acesso às arenas de poder. As iniciativas de democracia direta possuem papel fundamental em capilarizar a vontade popular, mas não investem ninguém nem nenhum grupo minoritário de poder. A democracia representativa é indiscutivelmente um pilar, um radar fundamental da sociedade, e por isso as ditaduras estão sempre fadadas à estagnação e ao fracasso.
A instituição de uma ferramenta de intercâmbio interlegislativo é um terceiro ponte que eu gostaria de ressaltar. Ela estando vinculada à um coletivo de parlamentares em constante articulação dá vida ao portal, e dando protagonismo aos representantes dão protagonismo às pessoas. A sociedade consegue ver com clareza que toda política implementada pelos governos passam por algum congresso, onde são modificadas (verdade que tanto com aprimoramento ou regressões), e quando a ação dos membros do legislativo ganha projeção na esfera pública, mais responsáveis por sucessos e fracassos aparecem. No caso da OPCC, fica claro que ninguém ali se mobilizaria por pautas tão conflitivas sem desejo de melhorar as coisas e, por isso, são realmente merecedores de aplausos.
* Marcos Rehder Batista, sociólogo, pesquisador do NEA+ (Inst. de Economia) e CPTEn (Fac. de Eng. Elét. e da Comp.), na Unicamp, e do CEAPG (EAESP-FGV)