Por Kátia Magalhães Arruda*
No Brasil, segundo dados oficiais apurados pelo IBGE, dos 12 milhões de desempregados, 6,5 milhões são mulheres, ou seja, a taxa de desocupação de mulheres é de 54,4% e mesmo as que já estão empregadas continuam a receber remuneração em média 20,5% inferior a dos homens.[1]
Conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 606 milhões de mulheres reconhecem que as atividades desenvolvidas no chamado “trabalho de cuidado” transformam-se em obstáculo na busca de vagas de emprego, seja no início de suas carreiras, seja no retorno após um período de afastamento, aqui abordado o trabalho de cuidado em sua expressão não remunerada [2], como as responsabilidades que recaem em decorrência do apoio familiar destinado a pais idosos, familiares com deficiência, assim como o período dedicado ao nascimento dos filhos, entre outras.
Já para os homens, a percepção desse problema só foi reconhecido para 41 milhões de homens, o que demonstra uma desigualdade muito superior à prevista nos enunciados jurídicos sobre condições iguais entre homens e mulheres, além de expressar as imbricações de gênero, classe e raça, como afirma a pesquisadora Helena Hirata(2022).[3]
Ademais, o estereótipo que atribui o cuidado da casa e da família como atuação predominantemente feminina, além de estimular a reprodução social desigual, possibilita a continuidade das atividades econômicas e relações de trabalho para seus maridos e companheiros, muitas vezes em detrimento de si mesmas, perpetuando relações de poder que aprofundam a desvalorização do trabalho feminino.
Toda essa pressão social é iniciada ainda quando as mulheres são meninas e fomenta pesada carga física, mental e contínua, criando uma das expressões mais cruéis do patriarcalismo e da cultura sexista, ao dissipar os limites entre a vida doméstica e o trabalho, ao mesmo tempo em que busca apagar efeitos econômicos, a despeito de especialistas afirmarem que o trabalho de cuidado pode ser economicamente mensurado em um valor equivalente a 11% do produto interno bruto (PIB), percentual superior à indústria e ao setor agropecuário, totalizando R$ 634,3 bilhões, segundo dados de 2015 [4].
É importante lembrar que o desemprego feminino foi agravado na pandemia da Covid-19, visto que várias mulheres precisaram atuar no cuidado de sua casa e de seus parentes, dificultando ainda mais o retorno ao mercado de trabalho assalariado, o que fez com que o debate sobre o valor econômico do trabalho de cuidado retornasse como preocupação da OIT, atualizando a polêmica sobre a invisibilidade econômica dessa atividade [5].
Os dados descritos contribuem para a análise sobre a importância da ratificação da convenção da Organização Internacional do Trabalho, por aprofundar a conexão e os efeitos causados pela sobrecarga das responsabilidades familiares nas relações de trabalho, além de introduzir exclusões e preconceitos que podem ser causados por uma desajustada divisão de trabalho familiar em desfavor (na maioria esmagadora das vezes) das trabalhadoras, fato ocorrido no interior do lar, mas que pode desequilibrar as condições de trabalho entre homens e mulheres.
A Convenção 156, embora pouco divulgada, trata da igualdade de oportunidades para trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares, podendo constituir-se em forte contribuição contra a discriminação de trabalhadoras mulheres que se ocupam também como cuidadoras (no caso, não remuneradas) de filhos, pais idosos ou pessoas com deficiência em suas famílias, e que muitas vezes, são obrigadas a sair de seu emprego ou enfrentar dificuldades para retornar ao trabalho ou ascender dentro dele.
Embora o texto da convenção trate de trabalhadoras e trabalhadores, a realidade mostra que, no Brasil, a grande maioria dos encargos familiares fica a cargo das mulheres trabalhadoras, daí porque trazer o tema à pauta de discussão permite a ampliação de políticas educacionais, culturais e antidiscriminatórias para essas pessoas que acabam por sofrer restrições em diversos momentos, que vão desde o ingresso na atividade econômica até sua participação e progressão nas carreiras escolhidas, o que gera soterramento de direitos e oportunidades.
O artigo 3 da Convenção 156 é explícito ao estabelecer como objetivo a ser alcançado “a efetiva igualdade de oportunidade e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores”, que passará a ser política nacional, melhorando as “condições das pessoas com encargos de família, que estão empregadas ou queiram empregar-se, de exercer o direito de fazê-lo sem estar sujeitas a discriminação e, na medida do possível, sem conflito entre seu emprego e seus encargos de família”, adotando o termo “discriminação” a partir do conceito já firmado na Convenção 111, da OIT, sobre a discriminação (emprego e profissão), de 1958.
Há pouco estudo no Brasil acerca dessa norma internacional, aprovada em 1981 e até hoje não ratificada no país[6] e que tem como pressuposto essencial a necessidade de estabelecer igualdade de oportunidades efetivas de acesso e permanência no mundo do trabalho, sem que as responsabilidades familiares constituam motivo extra de dificuldades ou sirvam de argumento jurídico ou social válido para o término da relação de trabalho.
Ainda segundo a OIT, a projeção é que até 2030, um número próximo de 2,3 bilhões de pessoas necessitará de cuidados especiais no mundo[7] e não há como negar que parte considerável dessa atividade será realizada por mulheres e de forma não remunerada, o que está a exigir a adoção de medidas adequadas para promover a informação fomentada no princípio da igualdade, compromisso que deverá ser assumido em várias esferas, tanto no aspecto jurídico quanto no econômico, sobretudo em sua correlação e transversalidade com o tema das políticas públicas[8].
Para tanto, o reconhecimento da atividade de cuidado e a ratificação da Convenção 156, que aborda essa temática- mesmo que sob a ótica da reinserção e redefinição de espaços no mercado formal de trabalho- terá a capacidade de abrir debates sobre as responsabilidades familiares de homens e mulheres e o próprio papel das empresas e do Estado, como prevê seu artigo 11 ao delimitar que “organizações de empregadores e trabalhadores terão o direito de participar, de uma maneira apropriada às condições e às práticas nacionais, da concepção e aplicação de medidas destinadas a fazer vigorar as disposições desta Convenção” [9].
Será importante, no processo de ratificação da Convenção 156, a indispensável amplificação de debates, audiências públicas e seminários para viabilizar a construção coletiva de novos pressupostos, inclusive para auxiliar na efetividade da previsão contida no artigo 7 da Convenção, quando trata da tomada de medidas compatíveis com a realidade nacional, no intuito de treinar e requalificar as pessoas que foram obrigadas a sair de seus empregos pelos encargos de família, auxiliando-as em seu retorno e permanência do mercado de trabalho.
A inclusão na agenda de debates do “trabalho de cuidado” e da Convenção 156 da OIT pode, ainda, alcançar grande repercussão social, com influência direta em indicativos de índices de desenvolvimento humano-IDH, uma vez que os maiores agentes desta economia são mulheres, pobres, pretas ou pardas, portanto, as mais excluídas dos processos de participação e ascensão social.
Acreditamos que o aprofundamento dessa questão pode implicar em grandes avanços na perspectiva da conquista de espaços de igualdade, de participação feminina e/ou de reconhecimento de direitos trabalhistas em seara até então não atingida historicamente.
[1] Dados divulgados em matéria g1.globo.com, intitulada “ mulheres são a maioria dos desempregados; 45,7% das que têm idade de trabalhar estão ocupadas”, in https://g1.globo.com. Acessado em 20 de setembro de 2022.
[2] A delimitação entre trabalho de cuidado nao remunerado é feita em face da existência do trabalho de cuidado remunerado, ou seja, atividades remuneradas que se vinculam ao tema do cuidado, a exemplo das empregadas domésticas, profissionais de enfermagem, babás, assistente de idoso, entre outras.
[3] Hirata, Helena. O Cuidado. São Paulo: Boitempo 2022.
[4] Ver em http://www.ihu.unisinos.br – Trabalho doméstico não remunerado vale 11% do PIB no Brasil. Acesso em 20/10/2022.Embora seja difícil aquilatar esse valor, os pesquisadores utilizam como referência a média de remuneração das empregadas domésticas. Na América Latina mais de 10 países já dimensionam o valor das atividades domésticas não-remuneradas no PIB. A média fica na casa dos 20%: 24,2% do PIB no México; 20,4% na Colômbia; 18,8% na Guatemala e 15,2% no Equador.
[5] MARÇAL, Katrine. O lado invisível da economia: Uma visão feminista. 1ªEd. São Paulo. Alaúde Editorial.2017.
[6] No dia 08/03/2023, o Presidente da República assinou mensagem de envio ao Congresso Nacional da ratificação da Convenção 156, da OIT.
[7] https://www.ilo.org/global/topics/care-economy/care-for-fow/lang–en/index.htm
[8] Um claro exemplo de políticas públicas vem do Uruguai, país com elevada população idosa e que implantou, em 2015, o Sistema Nacional Integrado de Cuidados, tendo como beneficiários os idosos, crianças ou pessoas com deficiência .
[9] Texto da Convenção 156, da OIT.
Kátia Magalhães Arruda é ministra do TST (Tribunal Superior do Trabalho), doutora em Políticas Públicas pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão, pós-doutoranda pela UnB (Universidade de Brasília), Coordenadora da Riupe (Rede Internacional Universitária de Pesquisa e Extensão) e professora do mestrado em Direito do UDF (Universidade do Distrito Federal).
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Ilustração: Sintetel-SP