Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:
Há um banho de sangue em curso no Peru.
Artigo de Maurício Angelo, de 10 de junho de 2021, me chamou a atenção, por capaz talvez de explicar melhor, a partir de interesses muito concretos da mineração, o golpe contra Pedro Castillo e a efervescente e trágica situação atual daquele país.
Castillo assumiu contra todas as grandes mineradoras e multinacionais, cujos interesses se viram em risco, depois de derrotar Keiko Fujimori, filha de um ditador condenado por violações em série de direitos humanos, várias acusações de corrupção nas costas, conhecido quando presidente por políticas largamente favoráveis às mineradoras.
Na eleição de 2021, as ações das grandes mineradoras sempre reagiam bem quando Keiko Fujimori se aproximava de Castillo nas pesquisas.
O grupo peruano Minsur, controlado pelo banco canadense Scotiabank, responsável pela contaminação de rios da terra indígena Waimiri-Atroari, dono da mineração Taboca, preparava expansão para triplicar a produção de cobre no Peru, e a chegada de Castillo ao poder atrapalhava tais planos. Para informação: a empresa é também a maior produtora de estanho do Brasil e uma das maiores do mundo.
O Peru é o segundo maior produtor de cobre do mundo, atrás apenas do Chile e produz também significativas quantidades de ouro, prata, estanho e zinco. As mineradoras gozam de polpudos privilégios fiscais e tributários no país. As poderosas Anglo-American, Nexa Resources e Glencore são algumas das mineradoras a atuar fortemente no Peru.
Castillo ganhou anunciando mudanças nas regras do jogo em relação às mineradoras. Não por acaso, moradores das regiões mineradoras votaram em massa a favor dele, com resultados registrados de 67% a 94% dos votos. Não esquecer: entre 2006 e julho de 2020, 683 trabalhadores morreram no trabalho para grandes e médias mineradoras no Peru. Mais: 64% dos conflitos socioambientais nos meses anteriores a junho de 2021 tinham a ver com a mineração.
Castillo não vinha com um programa tão radical. Pretendia renegociar contratos, rever impostos e benefícios fiscais, privilegiar o Estado e não empresas multinacionais e estatizar caso necessário, setores como a mineração. Longe de abandonar a mineração, Castillo prometia explorar “com responsabilidade”, a favor do Estado e do povo peruano, as riquezas minerais da nação. Isso bastava para impulsionar o golpe contra o presidente eleito. São as veias abertas da América Latina, marcadas pela cruel exploração das multinacionais, tão presente.
As notícias dão conta de cerca de 60 mortos entre os manifestantes contrários ao atual governo. Rapidamente, cumpre dar conta desse quadro, muito comum infelizmente nessa nossa América Latina.
Pedro Castillo, eleito presidente do Peru em 2021, sofreu um golpe no início de dezembro de 2022, depois de ter anunciado a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições. No lugar dele, assumiu Dina Boluarte, vice de Castillo.
A presidenta Dina Boluarte dobrou a aposta em janeiro e ampliou o estado de emergência por 30 dias na capital Lima e nas regiões andina de Puno e Cusco. Curioso constatar: produziu-se um tremendo alarido com a pretensão de Castillo de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, e houve inclusive a prisão dele.
A nova presidenta decretou o estado de emergência, e as coisas parecem correr no melhor dos mundos para maior parte de nossa mídia. Em menos de 40 dias de mandato, nos protestos contra o golpe, haviam morrido 45 manifestantes, incluindo seis menores de 15 e 17 anos.
Na segunda-feira, 9 de janeiro, a repressão às manifestações deixou pelo menos doze novos mortos a tiros na região serrana de Puno, epicentro das maiores mobilizações.
Em dezembro, foram 28 mortes, 22 das quais vítimas baleadas pela polícia e pelo Exército. Todas as pessoas mortas são das regiões mais abandonadas do Peru. Como parte desse massacre há 485 feridos.
Nas últimas horas, forças de segurança invadiram a Universidade de San Marcos, em Lima, e prenderam 205 pessoas, além de bloquear por tempo indeterminado a entrada na famosa cidadela inca de Machu Picchu e a Trilha Inca, o acesso ao recinto histórico. O país vive uma convulsão, devido à violência da repressão.
A Cruz Vermelha, a Anistia Internacional, os presidentes do México, Colômbia, Argentina, Cuba, Venezuela, Honduras e Bolívia uniram-se na condenação a esse banho de sangue e ao golpe, mas a presidenta faz ouvidos de mercador e a repressão prossegue.
O estado de emergência foi decretado por Boluarte em 14 de dezembro. Assim, restringiam-se os direitos constitucionais e permitia-se a intervenção da Polícia Nacional e das Forças Armadas.
Como há uma insatisfação profunda com a destituição de Castillo, houve e há manifestações por todo o país. Organizações sociais denunciam tortura, presença de atiradores, uso de armas não autorizadas, uma acentuada violação dos direitos humanos.
As mobilizações exigem a renúncia de Boluarte, uma Assembleia Constituinte, o fechamento do Congresso atual, a libertação de Pedro Castillo, o retorno dele à presidência e a realização de eleições gerais imediatas. O impressionante é assistir à continuidade das mobilizações populares, especialmente das populações indígenas, apesar da brutal repressão.
A classe dominante peruana não esperava essa irrupção, essa explosão de mobilizações populares diante do golpe contra Castillo. Da prisão, o ex-presidente continua a dizer o óbvio: a prisão dele é ilegal e arbitrária. Não tem intenção de pedir asilo. Desde 2016, o país teve seis presidentes, nenhum dos quais tendo cumprido mandato completo.
A América Latina e suas veias abertas
Houve gritaria quando Castillo quis dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Bastou ocorrer o golpe e tudo mudou. Como tudo foi feito segundo as novas modalidades de golpes pelo continente, então naturalizou-se a iniciativa.
Li vários textos no Brasil dizendo do absurdo da iniciativa de Castillo de tentar dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, e por mais tenha sido, admitamos, um equívoco, muito mais grave é o massacre em curso agora, sobre o qual há silêncio ensurdecedor.
As vozes neoliberais aparecem em alguns momentos como defensoras da democracia, como se golpes pudessem ser fiadores dos regimes democráticos, e tais vozes sabem da falsidade de tal argumento. Falaram nesse tom no caso do golpe peruano. E quando sobrevém o banho de sangue, silêncio. E o silêncio se estende às causas mais profundas, aos interesses econômicos envolvidos, ao papel das mineradoras, à ação do grande capital.
As forças democráticas, progressistas e de esquerda devem acompanhar com atenção a evolução da crise peruana, sobretudo insistir no sentido de dar um basta ao banho de sangue conduzido pelas classes dominantes daquele país e contribuir para encontrar caminhos democráticos para a solução dos problemas peruanos. Isso vale também para todos os governos democráticos, cujos esforços devem crescer para buscar saídas, excluindo-se a dos massacres, em curso.
*****
Referências
ANGELO, Maurício. “Vitória de Pedro Castillo no Peru pode mexer com a mineração em toda a América Latina”, Observatório da Mineração, 10/6/2021.
DOMINGUEZ, Francisco. “O golpe no Peru”. A Terra é Redonda, 19/12/2022.
DOMINGUEZ, Juan Manuel. A direita dá um banho de sangue no Peru. Brasil 247, 11/1/2023
GOVERNO do Peru amplia estado de emergência em Lima e Cusco. Ópera Mundi, 15/1/2023.
INCÊNDIO atinge prédio no Peru em meio a protestos contra presidente. UOL, 19/01/2023.
PERU no limite: Machu Picchu fechada e universidade atacada. Pátria Latina, 22/1/2023.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros.
Foto: Hudbay (mina de cobre)