Por Luiz Carlos Antero*
Num longo período superior a quatro anos de terror, superação e desespero, muitos de nós, nos multiplicando entre muitos grupos e inúmeros esforços nas demais frentes do mundo real, na conquista do voto corpo a corpo, nos grupos de trabalho de planos de governo ou comunicação, etc., batalhamos para não obscurecer o sentido da luta, ressignificando todos, enfim, o sopro renovador desta batalha — concluída há poucos dias e que, por simbolismo da luta antinazifascista, foi “a mãe de todas as campanhas”, definida pela magnitude dos desafios e provações.
Em todos os casos, sobre os encantos da vitória conquistada, fomos assediados pela tentação de – em meio à explosão de euforia, entusiásticas e incontidas comemorações – sentenciarmos o fim do ódio e a definitiva aclamação e vitória da esperança sobre a melancolia, desalento e prostração. Em especial quando alguém nos perguntou, sob o ânimo e desejo da superação de uma terrível noite de maus presságios e trevas: “acabou o pesadelo?”
Ou quando a rede Globo, extraindo ilações da fala de Lula na memorável noite de comemoração da vitória, no encontro com a incalculável multidão que ocupou a avenida Paulista, ao deduzir que o mais destacado lider popular da nossa História havia decretado o fim dos “dois Brasis” – um feito que na prática transcenderia em materialidade a ousadia dos intelectuais “construtores do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), passando por Gilberto Freyre, (Casa Grande e Senzala), a Florestan Fernandes e Caio Prado Junior, (da “Revolução Brasileira”) e tantas outras magníficas obras.
Logo ele, um retirante nordestino, com toda a sua atávica e umbilical ligação intestina com as mazelas da fome, viria sinalizar e decretar os estertores da apartação colonial no intervalo abissal entre a casa grande e a senzala, que avultou socialmente por suas mãos e braços de migrante, nas preliminares do fenômeno da conversão dos aeroportos em rodoviárias, e das universidades em navios negreiros emancipados nos portos libertários da educação e da cultura, entre outros fenômenos dos quais se orgulha à posteridade, na crista e no âmago das múltiplas políticas e obras compensatórias dos seus governos inovadores.
Logo ele, o “nove dedos”, que expôs, no mesmo discurso da avenida Paulista, as humilhações (“me destruíram espalhando mentiras a meu respeito”) sofridas no calvário imposto pelo farsesco rábula chicaneiro das moralmente comprometidas elites coloniais, Sérgio Moro et caterva. Unir e reconstruir o país governando para 215 milhões não será uma missão ingênua, simplesmente retórica, decretando que nosso passado mais conservador deixa de existir pela via da pacificação do espírito redivivo na argamassa do conservadorismo cimentado desde o berço colonial na aversão que Lula descreveu ao deplorar sua destruição – somente resgatada no amor de Janja e na intransigente luta contra a miséria e a fome.
Mas, como os fatos desses dias têm nos mostrado, longe de esgotar esta missão, nosso protagonismo popular inicia agora “a maior das campanhas nacionais”, após contribuir para a vigorosa e vitoriosa grande campanha eleitoral que seguramente foi a mais significativa de nossa História. Então, diríamos agora: “nem cogitemos de nos dispersarmos, de largarmos nossas mãos, pois o que vem por aí exige que estejamos muito mais que juntos, mas unidos pela construção de um Brasil efetivamente libertário e emancipador”.
Dependerá da nossa persistência e habilidade a manutenção dessa ampla frente única, sem a qual não seremos exitosos nesta edificação de um ambiente seguro, antifascista e antinazista para as futuras gerações. Somente uma arrancada política com essa consistência será eficaz na vitoriosa resistência e reconstrução prometida por Lula, o mesmo que conheceu o lawfare na própria pele e sofreu em profundidade as lacerações produzidas pela perversidade inumana da extrema-direita nazifascista.
O mentecapto encena o plano B. O que estamos agora presenciando, nas estradas e diante dos quartéis, é uma narrativa suficiente, tão bizarra e previsível quanto a deplorável personalidade de seu inspirador, líder e mito das cavernas. Ao silenciar e sair de cena, Bolsonaro expôs a patética configuração de seu plano B enquanto alternativa à derrota das urnas. Afinal, “retornar nos braços do povo”, ou do seu prosaico contingente de insurretos, ao longo da História mundial foi o sonho de inúmeros mentecaptos em seus devaneios de poder absoluto.
Caminhoneiros em piquete, queimando pneus, seriam somente a senha e o estopim do levante de sua multidão de bravateiros habituados às micaretas dominicais – a implorar pela intervenção militar com o genocida à frente, num caricato golpe castrense que espantaria o mundo e enterraria de vez o falsificado emblema de forças armadas paladinas da paz e do patriotismo de araque. Estamos agora vivendo o arremedo de arreganho nazifascista que pretenderia cumprir o desígnio de coveiro da democracia brasileira, fomentado por um baderneiro profissional.
Entretanto, longe de nada significar, é o prenúncio da grande e prolongada queda de braços no prenúncio do confronto que se mostrou em plenitude no extraordinário epílogo de 30 de outubro de 2022, e serviu para consagrar a força do campo democrático ao sinalizar para a necessidade de substanciais avanços na luta que se inicia rumo ao encontro do pleno e prospectivo sentido histórico e estrutural, em todas as diversificadas dimensões que apontam para a superação das carcomidas raízes coloniais.
Pela amostragem surreal até aqui recolhida, em pelo menos três dias, os tempos que se avizinham representam o recrudescimento das batalhas que precederam o golpe de 2016. Nosso povo, que não merece a cizânia e as trevas do obscurantismo, terá diante de si uma dura e prolongada jornada de lutas contra o ódio, a intolerância e a prepotência pavimentados pela cultura colonial – descendente do nazifascismo e irmã gêmea do pesadelo, que não acabou.
*Luiz Carlos Antero é sociologo, jornalista e escritor