Tarifaço de Trump é o atestado de óbito da ordem mundial criada em Bretton Woods

“As tarifas são para tornar os Estados Unidos ricos novamente e tornar os Estados Unidos grandes novamente”. Esta foi a promessa do presidente da maior potência capitalista do planeta, Donald Trump, ao anunciar seu controvertido tarifaço no último 2 de abril, que chamou de “Dia da Libertação”.

As medidas protecionistas começaram a vigorar no dia seguinte ao anúncio e afetam dezenas de países.

Sobretaxado em 10%, o Brasil é um dos países em que o tarifaço anunciado foi mais ameno, mas nem por isto o país deixará de sofrer, direta e indiretamente, os efeitos negativos da política unilateral do chefe da Casa Branca.

Alvo é a China

A China não será o único país prejudicado, mas é de longe o principal alvo de Trump, o que não é de estranhar visto que conter a ascensão da grande potência asiática segue sendo a principal obsessão dos imperialistas em Washington.

Na quarta-feira (9), o chefe da Casa Branca anunciou novo aumento do percentual da tarifa que será cobrada da China, desta vez para 125%. Ao mesmo tempo, diante dos impactos negativos nos EUA, recuou em relação aos demais países, anunciando a redução da taxação para 10% por 90 dias enquanto negocia com autoridades desses países.

A China, que já havia anunciado tarifas de 85% sobre importações dos EUA, disse que está preparada para a guerra comercial e não poupou críticas à iniciativa considerada arrogante e unilateral do governo estadunidense.

Um erro atrás do outro

“A decisão dos EUA de aumentar as tarifas sobre a China é um erro atrás do outro. Ela infringe seriamente os direitos e interesses legítimos da China, prejudica seriamente o sistema de comércio multilateral baseado em regras e tem um impacto severo na estabilidade da ordem econômica global. É um exemplo típico de unilateralismo, protecionismo e intimidação econômica”, afirmou, em nota, o Ministério de Finanças chinês.

A União Europeia, por sua vez, aprovou taxas de até 25% sobre € 21 bilhões (US$23,200 bilhões) em mercadorias provenientes dos Estados Unidos. O Canadá também anunciou que vai retaliar na mesma proporção. Diante do recuo de Trump, europeus e canadenses devem reconsiderar a dimensão da resposta.

A escalada de agressões contra a China levou o Ministério da Cultura e Turismo do país a recomendar que chineses reavaliem viagens para o continente americano. ”Recentemente, devido à deterioração das relações econômicas e comerciais entre China e EUA e à situação de segurança interna nos Estados Unidos, o Ministério da Cultura e Turismo lembra aos turistas chineses que avaliem completamente os riscos de viajar para os Estados Unidos e viajem com cautela”, alerta o comunicado da instituição.

Decadência não será revertida

O propósito declarado por Donald Trump é o de reverter o processo histórico de decadência dos EUA, cuja principal causa é o déficit crônico da balança comercial do país, uma medida precisa do parasitismo econômico que embala a sociedade americana e teve por consequência inevitável a desindustrialização e o deslocamento do capital produtivo para a Ásia.

O rombo na conta de mercadorias deve cair, mas o protecionismo não vai reverter o declínio do malfadado império americano, pois este já alcançou um ponto de não retorno.

Os fatos indicam, por outro lado, que o tarifaço está adicionando novas fontes de perturbações para a economia global, agravando seu já precário estado de saúde, e pode conduzir o mundo à depressão.

Pânico nas bolsas

O pânico que tomou conta dos mercados de capitais desde o suposto “Dia da Libertação” é um sinal eloquente do que pode vir pela frente.

Os EUA também sofrerão prejuízos, pois além de afetar empresas estrangeiras as novas tarifas prejudicam também firmas locais e consumidores norte-americanos.

Somente na terça-feira (8) as ações de empresas estadunidenses encolheram mais US$ 852 bilhões. A perda acumulada nos mercados de capitais desde a posse de Donald Trump, em 20 de janeiro, já alcança US$ 10,8 trilhões desde 20 de janeiro,  segundo estimativas da consultoria Elos Ayta.

O preço do petróleo e de outras commodities também recuou, sinalizando desconfiança com os rumos da produção global.

Big techs

As perdas são lideradas pelas sete gigantes da tecnologia: Apple, Microsoft, Nvidia, Amazon, Alphabet (Google), Meta (Facebook) e Tesla. Juntas, elas perderam US$ 320 bilhões só na segunda-feira (7).

Ao longo deste ano, o valor de mercado dessas big techs recuou US$ 4,55 trilhões. Individualmente, o bilionário Elon Musk, considerado o homem mais rico do mundo, perdeu U$ 30 bilhões. Ele tem feito desesperados apelos ao presidente Trump, do qual tornou-se funcionário, para rever tal política.

Déficit colossal

A contração do comércio exterior é algo inevitável e afetará, em maior ou menor medida, praticamente todos os países que exportam para os Estados Unidos, que apesar do declínio, e também por conta dele, ainda têm o maior mercado consumidor do mundo.

No ano passado, o país liderou o ranking global das importações. Comprou dos outros países bens no valor de US$ 2,49 trilhões.

Parasitismo

Cabe ressalvar que o consumismo, neste caso, não é um sintoma de força. Revela-se efeito de uma enfermidade quando se considera que quase 40% do valor das importações estadunidenses corresponde ao déficit comercial, que em 2024 alcançou o extraordinário valor de US$ 918,4 bilhões.

São mercadorias que a sociedade estadunidense consome sem contrapartida na produção local, graças ao privilégio exorbitante de ter o dólar como moeda global. Os déficits acumulados anualmente de forma ininterrupta desde 1971 transformam-se em dívida externa.

Os EUA acumularam a maior dívida externa do mundo, que em 2024 totalizou US$ 27,6 trilhões. Os débitos estão denominados em dólar, mas nem por isto deixam de ter graves consequências para o país.

A arte de viver à custa alheia (no caso, do trabalho estrangeiro) tem um nome: parasitismo e esta é a fonte da decomposição dos impérios, conforme observou Lênin no seu célebre e clássico ensaio sobre o imperialismo.

Inflação

A eliminação do déficit colossal na troca de mercadorias não é possível sem uma redução drástica do consumo, a depreciação do dólar e o empobrecimento da população. As tarifas anunciadas pelo presidente estadunidense vão elevar consideravelmente os preços dos importados e deprimir o consumo.

Na opinião do embaixador Roberto Azevêdo, ex-diretor geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), “a inflação vai subir, a economia mundial pode desacelerar, você pode ter um reordenamento dos fluxos de comércio globais, as cadeias de suprimento podem mudar e, nesse contexto, vai ter impacto de todo jeito. E a maior parte dele será negativa”.

A China, que destina mais de 14% de suas exportações para o guloso mercado estadunidense, certamente sofrerá com as medidas, mas é mais do que improvável que essas revertam a marcha e o sentido do crescimento desigual do PIB que levou o próspero país asiático a superar os Estados Unidos como potência econômica.

Crise pode ser oportunidade

“Devemos transformar pressão em motivação e encarar a resposta ao impacto dos EUA como uma oportunidade estratégica para acelerar a construção de um novo padrão de desenvolvimento”, disse em editorial o jornal Diário do Povo, considerado o principal porta-voz do Partido Comunista da China (PCCh).

O presidente chinês, Xi Jinping, mencionou a resiliência do mercado chinês. “A economia chinesa é um oceano, não um pequeno lago. Tempestades podem virar um pequeno lago, mas não podem virar o oceano”.

O desafio dos comunistas chineses é fortalecer o mercado interno e ampliar a capacidade de consumo da sua grande população (1,4 bilhão) para neutralizar o impacto da queda das exportações e contornar a crise de superprodução. A valorização do trabalho e a ampliação dos direitos do povo e do bem estar social são meios para viabilizar um modelo de crescimento sustentado pelo mercado interno e menos dependente do comércio exterior.

Em sentido contrário aos propósitos dos governantes estadunidenses, o protecionismo radical e os novos rumos da política externa, especialmente em relação à Rússia, tendem a afastar aliados tradicionais dos EUA e favorecer a estratégia geopolítica de Pequim.

No final das contas, o tarifaço pode se revelar um atestado de óbito da ordem mundial criada em Bretton Woods.

Umberto Martins

 

 

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