“Durante todo o período neoliberal, de 1993 a 2022, foram feitas uma série de cortes nas áreas da saúde, educação, emprego, laboral e agrária. Conquistas extintas que o governo de Petro e Francia Márquez se propõe a recuperar”, afirma Fabio Arias Giraldo, presidente da Central Unitária de Trabalhadores da Colômbia, condenando a “privatização do patrimônio público” e a “apropriação dos recursos do Estado pela oligarquia”. Em entrevista exclusiva, o sindicalista destaca a expressiva valorização do salário mínimo – de 9,54% contra uma inflação de 5,2% -, destaca os avanços das reformas trabalhista e previdenciária, ambas progressistas “apesar das limitações impostas pela oposição no Congresso”, defende os Acordos de Paz e a democratização dos meios de comunicação. “Trump e os Estados Unidos vão tentar respaldar os seus amigos da extrema direita, o uribismo, que quer voltar em 2026. Neste momento, disputamos demonstrando que o governo não fez tudo o que queríamos, mas estamos avançando”, assinala Fabio, que destaca o papel do Brasil e de Lula na consolidação da unidade latino-americana e caribenha.
Por Leonardo Wexell Severo – Bogotá, Colômbia
Qual a sua avaliação do processo de reformas sociais em curso na Colômbia?
A Central Unitária de Trabalhadores (CUT) vem acompanhando o governo nacional em todo o processo das reformas sociais de mudança, assim as temos chamado. Reformas sociais que têm sido escritas no sentido de recuperar direitos.
Durante todo o período neoliberal, de 1993 a 2022, foram feitas uma série de reformulações estruturais de retirada de direitos e garantias de muitos cidadãos e trabalhadores nas áreas da saúde, educação, emprego, laborais e agrária. Conquistas extintas que este governo se propõe a recuperar.
Com a reforma da saúde propôs retirar a gestão do setor privado, que roubou seu dinheiro e reduziu seu orçamento, em vez de atender as necessidades da população. O confronto é porque enquanto uma casta quer continuar manipulando recursos que são do Estado, nós buscamos que passem a ser controlados pelo setor público.
A reforma previdenciária pretende inicialmente assegurar garantias mínimas a quem nunca contribuiu, proporcionando uma renda básica a todas as pessoas maiores de 60 anos, caso sejam mulheres, e 65 anos, no caso dos homens. A isso chamamos Renda Solidária. Adicionalmente, a reforma retira recursos desviados pelo setor privado, fortalecendo as cotizações obrigatórias das aposentadorias para o setor público. Isso quer dizer que o Estado passa a ter recursos próprios, recolhidos dos trabalhadores, em matéria de contribuições previdenciárias obrigatórias. Essa iniciativa obviamente irritou o setor privado e setores políticos que sempre se beneficiaram desta privatização da saúde e das aposentadorias.
Quando começou essa privatização, que chamamos de roubatização?
Esse assalto começou em abril de 1993, com a chamada lei 100, que é a essência neoliberal de manipular os recursos da saúde, das pensões e aposentadorias para os fundos privados. O governo pretende é recuperar esse dinheiro, como era antes, e fazer com que seja controlado pelo setor público.
Em que pé está a reforma trabalhista?
A legislação trabalhista estava alicerçada basicamente sob a base neoliberal, rebatido pelos fatos e pela teoria de que os custos laborais seriam reduzidos, gerando emprego e reduzindo a informalidade. Evidentemente, nada disso ocorreu: os custos foram reduzidos, mas o desemprego nunca baixou e nem aumentou a formalização.
Este governo quer recuperar vários dos direitos tomados, fundamentalmente a estabilidade no emprego, eliminar a terceirização, garantir carteira assinada no setor rural, onde a informalidade é maior, que chamamos ilegalidade, e adicionalmente recuperar o pagamento extra das jornadas noturna – em 35 % – e da dominical e festiva – em 25%. Medidas, é importante ressaltar, reduzidas ou retiradas por meio de várias leis durante as mais de três décadas de neoliberalismo.
Outra reforma importante é do Sistema Geral de Participações, que são recursos que destina o Estado para direitos fundamentais como a educação, a saúde, a água potável e o saneamento básico. Desde 2001 esses recursos foram cortados e se busca agora recuperá-los porque são serviços que ficaram totalmente sobrecarregados pela falta de investimento, uma vez que o Estado ficou de mãos atadas frente à redução de verbas. Do que se trata agora é de recuperá-los.
E a situação da reforma agrária?
O tema da jurisdição agrária é um compromisso do Acordo de Paz das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) assinado com o governo em 2016, que não havia sido cumprido, e que Petro quer cumprir. Digamos que estes cinco pontos são os que colocamos ênfase, há mais, mas estes são os essenciais.
Há temas como o relativo à garantia do protesto social, que não avançou. Neste governo democrático não tivemos problemas em relação a isso, mas seria importante termos assegurado como um direito.
Destas cinco reformas, só avançamos em duas – Trabalhista e Previdenciária -, com outras três pendentes de serem aprovadas, ainda neste ano, antes de 20 de junho [por questões legais, pois depois disso seriam invalidadas].
Esta será a base do próximo debate eleitoral em 2026: saber se o governo foi capaz ou não de fazer as reformas que o país necessitava e se serviu ou não para algo.
E qual a posição da CUT?
A narrativa da extrema direita, que fez e faz o impossível para não aprovar as reformas, diz que este é um governo que não presta para nada. Nós estamos fazendo o contrário. Esta é a primeira vez na história da Colômbia em que há reformas progressistas. Sempre sobrou para os trabalhadores suportarem o duro peso de governos oligárquicos.
E como nos confrontar com quem tem o “monopólio da narrativa”?
Como diz o conto: com o que tenhamos. Não é muito, mas estamos na batalha. O presidente Gustavo Petro é um excelente comunicador social e graças a ele esses temas de trabalho, saúde, aposentadorias, dos direitos fundamentais e da questão rural foram postos na ordem do dia e passaram a ser discutidos no seio da população.
Por mais que os meios de comunicação recriminem, enganem e distorçam a informação, o fato certo e concreto é que hoje esses temas são discutidos pela sociedade. Com mentiras ou sem mentiras, são problemas que vieram à tona e que exigem solução, melhorando o nível político do debate, é isso o que se vê. Antes nos impunham a pauta e, quando víamos, já não tinha nada a ser feito, ninguém mais falava disso. Agora, felizmente, é diferente.
Mas apesar do rumo progressista a correlação de forças, particularmente no parlamento, cria uma situação bastante difícil para o governo.
Claro, demoramos dois anos para aprovar normas que nos períodos neoliberais demoravam dois meses, pela correlação de forças existente. No melhor dos casos, o governo tem uma correlação de forças desfavorável de 40 a 60, numa situação extraordinária. Nestes 60% está a maioria que sempre definirá. Claro, uma coisa é enfrentar uma maioria de 90 a 10, mas a partir dos nossos 40% temos feito muitos enfrentamentos e conseguido avançar, como em questões como o da recuperação dos direitos fundamentais ou da lei da aposentadoria.
Pela correlação de forças desfavorável, demoramos dois anos para aprovar normas que nos períodos neoliberais demoravam dois meses”
O debate que teremos agora é na Corte de Constituição, pois foram questionadas normas aprovadas, sob a alegação de suposta “violação constitucional”. Inclusive já foi anunciado ao país que o primeiro parecer será contrário ao aprovado, uma posição negativa à lei. Os magistrados já começam a expor uma posição conforme quem sempre governou: os grandes empresários e as castas oligárquicas colombianas.
Por pressão destes setores, a reforma da Previdência ficou limitada no setor público a apenas 2,3 salários mínimos?
Nossa luta é para que ficasse em ao menos quatro salários mínimos no setor público, mas a única forma que o governo conseguiu aprovar foi cedendo os demais pontos aos partidos da oligarquia, representantes dos fundos privados, para que baixasse o limite dos benefícios a 2,3 salários mínimos.
A medida afeta diretamente a setores da população que buscamos defender, mas que, em função do conjunto de avanços, tivemos de abdicar. O que nos cabe agora é melhorar a correlação de forças e avançar na próxima legislatura. Isso será numa outra oportunidade e caso a Corte se posicione em nosso favor.
Como está a política salarial do governo?
O aumento salarial foi muito positivo. Tivemos no ano passado uma inflação de 5,2% e um reajuste do salário mínimo de 9,54%, quase o dobro se temos em conta o auxílio transporte. Quem ganha até dois salários mínimos sempre recebe auxílio transporte, o que não ocorre para os que ganham mais. Se somarmos estas duas variáveis, para esta camada, tivemos 11% de aumento neste ano.
Isso representa 35% dos trabalhadores formalizados, que são três milhões e setecentos mil trabalhadores, e praticamente 52% dos aposentados e pensionistas, porque o aumento das aposentadorias também está vinculado ao reajuste do salário mínimo. Ninguém pode ganhar menos do mínimo. Outros 1,7 milhões de aposentados acabam se beneficiando, num total de cinco milhões de pessoas em termos absolutos.
Qual é o calcanhar de Aquiles das forças progressistas na disputa contra o retrocesso?
Nosso calcanhar de Aquiles é a correlação de forças, saber se é possível ganharmos a disputa da narrativa, no julgamento se este governo representou ou não um avanço. Está aberta a polêmica, fundamentalmente com a extrema direita que diz que nada foi feito. É claro que não se fez tudo o que gostaríamos, mas avançamos.
O rompimento dos Acordos de Paz na região de Catatumbo não fazem o jogo da direita? Como podem antigos grupos guerrilheiros que lutaram pela libertação nacional preferir negociar com o narcotráfico e a mineração ilegal do que com um governo progressista?
Com esta narrativa a extrema direita historicamente nos venceu as eleições. Ganhou com Álvaro Uribe (2002-2010), quando as Farc cometeram uma série de atropelos políticos como o sequestro e a extorsão, extremamente criticáveis, e nos bateu novamente a extrema direita com Iván Duque (2018-2022) com todo o seu discurso contra a paz, já contrário aos Acordos. Este é uma ferramenta sempre muito bem aproveitada por eles e penso que às guerrilhas faltou levar em consideração a oportunidade política que se encontra aberta. E é algo que vai se converter num elemento contra um projeto político empenhado no entendimento. Penso que seria a oportunidade das guerrilhas darem credibilidade a um governo comprometido com o Acordo de Paz, que fortalece o diálogo e a democracia, chaves para qualquer sociedade que busca avançar.
Agora temos novamente o discurso da “segurança democrática”, dos “falsos positivos”, da execução de inocentes e a tudo o que presenciamos, especialmente com Uribe e com Duque.
Como vês o discurso de Trump e a ingerência estadunidense nas próximas disputas eleitorais?
Trump e os Estados Unidos vão tentar respaldar os seus amigos da extrema direita, o uribismo. Realmente o uribismo quer voltar, mas não é tão fácil para eles, pois há uma enorme luta sendo travada para 2026. Neste momento disputamos demonstrando que o governo não fez tudo o que queríamos, mas estamos avançando. Foram feitas muitas coisas importantes, sem que tenham sido feitas todas. Aos direitistas nos questionar a razão de não terem sido realizadas integralmente, apontaremos cada uma das sabotagens e barreiras erguidas, todas as mentiras e manipulações a que as pessoas foram submetidas.
Aprendemos a lição de que nos faltam mais deputados e senadores, pois sem uma maioria parlamentar até poderemos ter a presidência, mas o poder ficará submetido à oligarquia.
Nos próximos dias 21 e 22, em Chicoral, será construído um “Pacto pela Terra e pela vida” em defesa da reforma agrária. Enquanto os três últimos governos haviam distribuído 30 mil hectares, a administração de Petro e Francia Márquez já disponibilizou mais de um milhão de hectares. Qual o impacto desta política?
O tema central aí é que o governo não dispõe de recursos para comprar terras e nos Acordos de Paz foi assinado que seriam distribuídos três milhões de hectares. Uma das possibilidades é a expropriação, que esse governo não tem a correlação de forças para executar já que precisaria ser feita por via administrativa, teria de ser paga. Porque a expropriação sem indenização, infelizmente, foi retirada da Constituição política, existindo quando se comprovavam ações ilegais. A única expropriação existente é mediante o pagamento ao proprietário. Diante disso coube ao governo dizer: que terras me vendem? Diante disso foi feito todo tipo de cerco e boicote financeiro, até mesmo pela Corte Constitucional, que barrou a reforma tributária, retirando recursos do Estado para o importante investimento. É algo que logicamente vem comprometendo a execução deste compromisso.
Qual o papel da democratização da comunicação nesta batalha contra o retrocesso?
Foram feitos muitos esforços para unir a mídia alternativa, mas não se conseguiu uma coordenação plena, à altura da relevância do enfrentamento. Volto ao velho tema, pois o governo vem tendo sérios problemas de recursos e os meios alternativos reclamam de condições para poder se manter e desenvolver sua atividade, enquanto sobra dinheiro para os grandes conglomerados. A distribuição de recursos por parte do Ministério de Comunicação é muito pequena, absolutamente pequena.
O governo teve a oportunidade de encampar o Canal 1, um dos canais do Estado, entregue em concessão a uma empresa norte-americana, que o vendeu a uma multinacional espanhola, da Caracol Rádio, da rede Prisa. Naquele momento é o governo quem deveria ter dito que não haveria venda, e ele mesmo precisava ter assumido e redistribuído o canal entre os meios alternativos. Poderia ter feito isso, garantindo um financiamento importante. Mas não quis se envolver no embate porque o ministro de Tecnologias da Informação e Comunicações era uma pessoa vinculada a esses negócios, porque o governo não tem todos os ministérios à sua disposição. Há setores econômicos com influência no país com quem tem buscado garantir a governabilidade e isso tem custos, entre outros o que estou dizendo. Neste campo, não conseguiu fazer nada.
Uma mensagem ao Brasil.
Acreditamos que mais do que nunca é necessária a unidade latino-americana e caribenha. As declarações expansionistas e imperialistas de Trump e o fascismo que o tem incorporado nos obrigam a redobrar esforços para esta unidade. A negociação em separado por parte de qualquer país com os EUA e é um equívoco. Lula é um líder muito importante e deveria dedicar esforços neste sentido.
Reportagem da Agência ComunicaSul de Comunicação Colaborativa com o apoio do jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul Global, Barão de Itararé, Vermelho, Agência Sindical, Correio da Cidadania e gabinete do vereador Gilmar Lima Martins (Alegrete-RS)
Foto: Fabio Arias Giraldo, presidente da CUT/Colômbia (LWS/ComunicaSul)