O novo presidente dos Estados Unido, Donald Trump, está provocando uma admirável reviravolta no cenário geopolítico global.
A conversa telefônica que ele manteve por uma hora e meia com o presidente da Rússia, Vladmir Putin, na última quarta-feira (12), traduz uma mudança substantiva na política externa do decadente império que o atual governo promete reerguer com o sonho impossível de fazer a “América” (leia-se EUA) “Grande de Novo” (Make America Great Again).
Putin reabilitado
O líder russo, que o democrata Joe Biden e a mídia imperialista do chamado Ocidente trataram de demonizar e transformar num pária internacional, disseminando a russofobia e fortalecendo a aliança entre Rússia e China, foi subitamente reabilitado, num gesto que significou, noutra vertente, um pontapé no traseiro dos líderes imperialistas da velha e também decadente Europa.
“Concordamos em trabalhar juntos, muito próximos, incluindo visitar as nações um dos outro. Também concordamos em fazer com que nossas respectivas equipes iniciem negociações imediatamente, e começaremos ligando para o presidente Zelensky, da Ucrânia, para informá-lo da conversa, algo que farei agora mesmo”, comentou Trump na Truth Social.
“Ambos concordamos que queremos impedir que milhões de mortes ocorram na guerra Rússia/Ucrânia”, sublinhou o mandatário estadunidense, que reiterou o compromisso anunciado durante a campanha à Presidência de interceder pelo fim do conflito no leste europeu, que já resultou em centenas de milhares de mortes.
Zelensky desprezado e escanteado
Pete Hegseth, o novo secretário de Defesa, explicou que o plano de paz de Washington prevê que a Ucrânia não poderia retornar às suas fronteiras pré-2014 (antes da anexação da Crimeia à Rússia), que não poderia se juntar à OTAN e que as tropas dos EUA não fariam parte de nenhuma força de segurança para garantir a paz futura na região.
São propostas que vão ao encontro dos interesses geopolíticos de Moscou e prometem ser o caminho para a paz entre os dois países que outrora integraram juntos a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, destruída em 1991 por Boris Yeltsin no que o presidente Putin definiu como “a maior catástrofe geopolítica do século 20”.
De outro lado, o plano americano é notoriamente uma derrota da estratégia dos líderes europeus e da OTAN, uma aliança militarista cujo expansionismo provocou o conflito entre Rússia e Ucrânia e que agora tem a sua própria sobrevivência e sentido colocados em xeque.
Volodymyr Zelensky, que governa a Ucrânia como um ditador e negou-se a convocar eleições depois que seu mandato expirou em maio do ano passado, foi desprezado e escanteado pelo novo chefe da Casa Branca.
Europa numa sinuca de bico
O governo estadunidense anunciou um encontro bilateral entre representantes dos EUA e da Rússia na Arábia Saudita para esta terça-feira (18) com o objetivo de iniciar negociações para alcançar um acordo de cessar-fogo no leste europeu.
O porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, informou que o chanceler russo e o assessor presidencial Yuri Ushakov representarão Moscouu na reunião que será realizada em Riad.
Segundo o The Washington Post, da parte estadunidense devem participar o secretário de Estado, Marco Rubio, o assessor de Segurança Nacional do presidente, Mike Waltz, e o enviado especial para o Oriente Médio, Steve Witkoff.
O detalhe desconcertante aos olhos dos arrogantes líderes do Ocidente é que nem Zelensky nem a Europa foram convidados para a reunião, num claro sinal de que os termos da paz serão ditados pelas duas superpotências militares.
Desorientados, os líderes europeus convocaram uma reunião de emergência nesta segunda-feira (17) para debater os rumos do conflito, anunciando que desejam participar na mesa de negociações sobre um cessar fogo.
Mas, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse que não entende qual seria o papel da União Europeia (UE) na mesa de negociações sobre a crise ucraniana, já que a abordagem dela não mudou.
“A filosofia dos europeus não desapareceu. Não sei o que eles podem fazer na mesa de negociações”, declarou, sugerindo que os líderes europeus, embriagados pela russofobia, apresentarão “ideias insensatas sobre o congelamento do conflito”
Registre-se que as potências europeias vivem um processo histórico de decadência tão ou mais acentuado que os EUA, acumulando décadas de baixo crescimento e mergulhadas numa crise que provocou a ressureição do espírito nazi-fascista. A guerra é uma das causas da crise, conforme apontou o economista e professor Jeffrey Sachs.
A jogada do presidente estadunidense deixa o velho continente numa sinuca de bico e diante da exigência trumpista de ampliar consideravelmente (para 5% do PIB) os gastos militares, sacrificando o que ainda está de pé do seu outrora glorioso Estado de Bem Estar Social.
Realinhamento geopolítico
Donald Trump também declarou que gostaria de ver a Rússia de volta ao Grupo dos 7, o arcaico G7 que vem sendo desafiado pelo Brics, bloco cuja morte chegou a ser anunciada pelo bilionário republicano.
Parece clara a intenção de promover um realinhamento de forças no xadrez geopolítico, que seria configurada numa reaproximação entre Washington e Moscou, supostamente em detrimento do Brics, que Trump quer enfraquecer, e da China. Resta esperar o desdobramentos dos fatos.
Política externa menos belicosa
Ao mesmo tempo, é preciso ressaltar que a conduta do novo presidente é coerente com intenções anunciadas durante a campanha eleitoral, quando alertou que a política de Joe Biden e Kamala Harris, de envolvimento crescente na guerra em curso no leste europeu, estava abrindo as portas para uma Terceira Guerra Mundial, que seria uma guerra nuclear. Trump prometeu acabar com o conflito “em 24 horas” e manifestou ainda o desejo de apaziguar o Oriente Médio.
Convém lembrar que a política externa do primeiro governo Trump já havia sido bem mais pacífica do que a do seu antecessor, o democrata Barack Obama.
Trump não promoveu nenhuma guerra durante seu mandato, iniciou negociações de paz no Afeganistão e reduziu a participação dos EUA na guerra da Síria (outro país destruído pelo honrado Ocidente).
Obama, por seu turno, bombardeou e destruiu a Líbia, comemorou o cruel assassinato do presidente do país, Muammar Gaddafi, e se comprazia em elaborar, semanalmente, listas com o nome de supostos terroristas marcados para morrer pelos drones assassinos lançados pelos EUA, que provocaram a morte de milhares de civis inocentes no Oriente Médio.
Embora comportando-se como um temível homicida internacional, o líder do Partido Democrata foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 2009.
Corrida armamentista será interrompida?
O novo presidente dos EUA também anunciou a intenção de promover iniciativas para interromper a corrida armamentista e reduzir substancialmente os gastos militares, destacadamente os investimentos no desenvolvimento de armas nucleares.
“Em algum momento, quando as coisas se acalmarem, vou me encontrar com a China, com a Rússia. E vou dizer, não há razão para a América gastar quase um trilhão de dólares com o exército. Não há razão para a China gastar 400 bilhões”, disse Trump.
É provável que tenha percebido que o excesso de gastos em defesa contribui de forma relevante para o processo de declínio da hegemonia econômica dos EUA no mundo, que a esta altura da história já não pode ser revertido, apesar das bravatas de Trump. É uma orientação que vai na contramão dos interesses que movem o poderoso complexo industrial militar dos EUA, tão bem servido pelo governo anterior
Independente dos motivos que orientam a ação do novo presidente dos EUA (incluindo o interesse nas terras raras da Ucrânia), o cessar fogo ainda que precário na Faixa de Gaza e a perspectiva de paz no leste europeu são notícias positivas que contrastam com o sombrio rastro de sangue legado pela política externa de Joe Biden, Obama, Bush e outros ocupantes da Casa Branca.
O acordo entre israelenses e palestinos, ainda que frágil, mostra que por trás do genocídio em Gaza estavam os EUA, ou seja, o governo Biden, atuando em cumplicidade com Benjamin Netanyahu, O genocídio foi interrompido quando os EUA, ou melhor o governo Trump, decidiu que Israel deveria negociar um cessar fogo.
De igual forma, na Ucrânia estava e ainda está em curso uma guerra de procuração entre EUA e Rússia, com a participação especial da Europa e da Otan, o que ficará mais claro quando a paz for estabelecida a despeito dos interesses dos líderes europeus e de Zelensky.
Contradições
Tudo isto pode parecer paradoxal e encerrar contradições reais, uma vez que Donald Trump é um bilionário nacionalista de extrema direita que deu ao governo dos EUA a cara do que realmente é: uma plutocracia.
Mas, seu empenho pela paz é um fato incontestável e é nos fatos (e não nas ideologias e na propaganda) que devemos procurar e perceber a verdade. Os fatos são a residência oficial da verdade.
A reviravolta na política externa dos Estados Unidos terá novas e profundas repercussões na geopolítica global e no quadro de alianças entre as nações. Pode, quem sabe, tornar menos provável ou mais distante uma guerra internacional de maiores proporções envolvendo diretamente as superpotências militares.
Em contrapartida – além de eleger os imigrantes como bode expiatório da crise do decadente capitalismo americano, provocar Cuba e ameaçar o Panamá -, o governo Trump dobra as apostas no protecionismo e na guerra comercial que tem por alvo principal a China, mas afeta um conjunto bem mais amplo de países e tende a agravar a crise que ronda e perturba a ordem capitalista internacional acordada em 1944 na cidade de Bretton Woods, que oficializou a hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.
Umberto Martins
Foto: Mikhail Kimentyev/Sputnik/Kreml