A segunda caravana de brasileiros rumo ao Saara Ocidental acontece num momento em que cada vez mais a luta saaraui é escanteada no cenário internacional, mesmo após anos de conflito.
Organizada pela representação da Frente Polisário no Brasil, a segunda caravana de brasileiros rumo ao Saara Ocidental partirá para o continente africano no dia 15 de novembro. Em busca de tornar mais conhecida no Brasil a luta pela autodeterminação diante da ocupação marroquina – que perdura há, pelo menos, quatro décadas – a viagem, que durará duas semanas, terá como um dos destinos Tindouf, na Argélia, onde fica o maior campo de refugiados saarauis.
Formada em 1973, a Frente Polisário, acrônimo de Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Río de Oro, é há 51 anos a única representante do povo saaraui. “A Frente Polisário […] é reconhecida pelas Nações Unidas como representante legítima do povo saaraui e, recentemente, há um mês, o Tribunal Europeu de Justiça, que é a máxima instância do direito internacional europeu, também reconheceu a Frente Polisário”, afirmou Ahmed Mulay Ali Hamadi ao Em Defesa do Comunismo. Ahmed é embaixador da República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e representante da Frente Polisário no Brasil.
Após a luta contra os colonialistas espanhóis, ocupantes do território desde 1884 e que se recusavam a cumprir o processo de descolonização determinado pela ONU – o que implicava o registro de eleitores e a realização de um referendo sobre a independência –, a Frente Polisário liderou, em 1976, a fundação da República Árabe Saaraui Democrática (RASD). Esse marco fundamental na história da resistência saaraui foi, no entanto, precedido por intensas disputas internacionais sobre a soberania das terras entre Saguía el Hamra e o Río de Oro, o que afetou diretamente qualquer pretensão de autonomia da região.
Diante desse cenário, e procurando uma saída para a crise interna de seu país, marcada pela ebulição de movimentos separatistas e pelas ameaças golpistas por parte das forças armadas, o monarca Hassan II, que assumiu o trono do Marrocos em 1961 após a morte de seu pai, Mohammed V, projetou com bases ufanistas a expansão do reino, naquilo que viria a ser chamado de “Grande Marrocos”. O soberano da monarquia magrebina passou, então, a reivindicar o território do Saara Ocidental, apresentando a ocupação da região como uma causa pela unidade nacional, fundamentada na alegada intenção de expulsar as forças coloniais espanholas do continente africano.
Em 1975, em uma transmissão para todo o país, Hassan II convocou os marroquinos a marcharem em direção às fronteiras do Saara Ocidental, mobilizando cerca de 350 mil pessoas em uma ação de grande escala para reivindicar a soberania sobre o território, que ficou conhecida posteriormente como “Marcha Verde”.
“Precisamente neste mês de novembro, estamos a recordar aquela invasão civil-militar que o Rei de Marrocos liderou contra o nosso país. Para mobilizar essa intervenção, independentemente das declarações e resoluções do Conselho de Segurança, então, a Assembleia Geral precisava de apoio. E foi precisamente o Ministro Exterior americano, aquele que há anos recebeu o prêmio da paz, que deu a sua aprovação à marcha, e foi a França que também apoiou esta invasão.” aponta Ahmed.
A razão para Hassan II arquitetar a Marcha repousava na decisão da Corte Internacional de Haia, em outubro de 1975, que se pronunciou sobre a questão da soberania do Saara Ocidental, afirmando que nem Marrocos, nem Mauritânia tinham direito sobre o território, incumbindo à Espanha a responsabilidade pela descolonização.
Em um acordo secreto celebrado entre Espanha, Mauritânia e Marrocos, conhecido como Acordo Tripartido, no mesmo mês de outubro, o ditador espanhol Francisco Franco concordou em dividir com os dois países africanos a administração de sua colônia, o que abriu caminho para a ocupação, que se concretizou no mês seguinte.
Após a Marcha Verde e sucessivas ofensivas, a Frente Polisário iniciou a luta armada em duas frentes: contra as Forças Armadas Reais (FAR) marroquinas ao norte e contra o exército da Mauritânia ao sul. Causando humilhantes derrotas militares a este último, especialmente ao sabotar as exportações de ferro – a maior fonte de renda do país –, a Polisário firmou a paz com a Mauritânia após o presidente Moktar Ould Daddah ser deposto em golpe executado por seu próprio exército, em julho de 1978.
Voltando seus esforços para a luta contra as FAR, a Frente Polisário intensificou suas operações de guerrilha, criando pequenos postos avançados no vale do Saguia el-Hamra e nas montanhas de Zemmour. Esses postos serviam como bases para incursões rápidas, realizadas principalmente à noite, aproveitando a vulnerabilidade das forças marroquinas, que não estavam adaptadas ao terreno desértico.
Nesse quadro, um dos principais alvos da guerrilha foram as instalações de extração de fosfato. Ao atacar as minas de Bou Craa e a correia de 100 quilômetros que transportava o minério até os portos de El Aiún, a Polisário conseguiu interromper completamente a atividade de exploração.
As pontuais vitórias da Polisário frente a um exército maior, moderno e que contava com apoio das maiores potências do Ocidente, levou Hassan II à erguer um muro de mais de 2 mil quilômetros de extensão, separando as zonas liberadas controladas pela Polisário do restante do território saaraui. Além disso, toda zona próxima dos muros foi completamente minada. Estima-se que, hoje, este seja pelo menos um dos dez territórios mais minados do mundo.
Após 15 anos de conflito, a Polisário e o reino marroquino assinaram um cessar fogo em 1991, acompanhado da instalação da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO), que estabeleceu como objetivo garantir a realização do referendo para legitimar a independência, além de monitorar a libertação dos presos políticos e reduzir os riscos na zona minada.
A década de 2000 foi particularmente infrutífera em relação à busca por uma resolução para o conflito. Enquanto a comunidade internacional permanecia dividida e inerte, milhares de saarauis continuaram a viver em condições precárias nos campos de refugiados, muitos separados de suas famílias e sem perspectiva de retorno à sua terra natal.
Salienta-se, porém, que as comunidades saarauis nos campos de refugiados floresceram sob diversos aspectos. Com grande parte dos homens compondo as fileiras da Polisário e a morte de muitos idosos e crianças, vítimas de doenças, as mulheres saarauis passaram a ocupar posições de destaque na organização política das localidades. Foram elas as responsáveis pela construção dos campos de refugiados em Tindouf. As cinco wilayas (cidades) que surgiram naquela região – Dajla, Aousserd, El Aiún, Boujdour e Smara – abrigam hoje cerca de 260 mil saarauis e levam o nome de cidades do Saara Ocidental. Além de desempenharem um papel crucial na conscientização sobre a luta pela libertação, as mulheres saarauis alteraram, ao longo dos anos, o quadro de costumes da comunidade, promovendo avanços significativos em termos de igualdade de gênero.
Entretanto, a luta pelo reconhecimento e pelo direito de autodeterminação continuou, com os saarauis ainda sofrendo com o exílio e a perpetuação das tensões nas zonas fronteiriças. Já em 2016, após anos de escaramuças e do endurecimento da vigilância nas zonas ocupadas, o Marrocos iniciou a construção de uma via asfaltada em Guerguerat, uma área a 380 km ao sul de Nouakchott, capital da Mauritânia. Guerguerat, situada na zona desmilitarizada que separa os territórios controlados pela Polisário e aqueles sob domínio marroquino, se tornou mais uma tentativa do Marrocos de consolidar sua ocupação.
Um protesto pacífico de saarauis, ocorrido em 2020, bloqueando a estrada, foi respondido com uma brutal operação militar do exército marroquino, que visava “restabelecer a livre circulação do tráfego civil e comercial”. O episódio marcou o fim do cessar-fogo e passou a ser utilizado pela monarquia marroquina como principal argumento para angariar apoio diplomático, acusando a Polisário de desestabilizar a região.
Com a perda de qualquer influência na resolução do conflito, a MINURSO se viu reduzida a um espantalho em meio à elevação das tensões. Recentemente, Marrocos tem estreitado seus laços com a ocupação colonialista israelense e busca ampliar sua cooperação militar com outros países, incluindo o Brasil.
Visando reduzir sua dependência de armamentos estrangeiros e começar a produzi-los em solo africano, o Marrocos assinou, em 2019, o Acordo-Quadro de Cooperação em Defesa com o governo brasileiro. O acordo prevê o compartilhamento de tecnologia militar, incluindo a possível produção de aeronaves como o Embraer C390 Millennium e o A-29 Super Tucano. Em 2022, os gastos militares da monarquia marroquina alcançaram cerca de 5 bilhões de dólares, o que representa aproximadamente 4% de seu PIB.
Nesse contexto, a caravana organizada pela Polisário não se limita a uma simples visita, mas busca alterar o cenário diplomático. Adotando uma postura de neutralidade, o governo brasileiro, ao longo das últimas décadas, se absteve de reconhecer a RASD, posicionando-se favorável a uma solução pacífica para o conflito.
“Estamos utilizando todos os meios que o direito internacional nos outorga para poder liberar a parte ocupada pelo Marrocos. Há uma guerra contínua contra o exército marroquino e ainda que esta luta esteja silenciada nos meios de comunicação ocidentais, porque os meios ocidentais só divulgam e publicam o que interessa ao Ocidente, como temos visto com muitas guerras, principalmente na Palestina, vamos avançando em nossa luta armada contra o exército marroquino”, afirma Ahmed.
“Com todas estas leis a favor do povo saaraui”, continua, “resoluções a favor do povo saaraui, o Marrocos, claro, agora apoiado pela França e Israel, os países que apoiam Marrocos, e os Estados Unidos por trás dos dois, ainda não aceita aplicação dessas sentenças jurídicas e destas resoluções internacionais.”
“Temos de pressionar Marrocos para que aja de forma correta, e como fazer isso? Existem apenas dois caminhos: um é a esfera diplomática, quanto maior o reconhecimento da República Saaraui por Estados de peso internacional como o Brasil, isso poderia ajudar a acabar com a guerra e a alcançar a paz. A outra via, infelizmente, nos conduz à luta armada e o povo saaraui já decidiu continuar a luta armada com armas humanas até que seja alcançada uma solução definitiva.”, diz o representante da Polisário.
Inflamando o cenário de luta contra a ocupação, o presidente francês, Emmanuel Macron, em recente visita ao Marrocos, afirmou que não medirá esforços para que a monarquia exerça seu direito sobre o território do Saara Ocidental. Ahmed, no entanto, aponta que as declarações não são novidades, haja vista o histórico apoio do país europeu à ocupação e o genocídio da população saaraui:
“Todos esses estão contra [o povo saarauí] desde o começo. Desde então e mais tarde na luta armada, os aviões Jaguar dos franceses, que apoiaram os invasores e atacaram o exército saaraui. Enfrentamos a aviação francesa nas décadas de 1970 e 1980. Ou seja, não há nada de novo, apenas foi dito, foi declarado.”, afirma Ahmed.
Acerca da caravana, a professora e tradutora de árabe, Isabella Marcelo, pondera que ela “tem o objetivo de divulgar a causa saaraui. Após conhecermos de perto a realidade nas mukhaimaat (“tendas”, se refere ao campo de refugiados) poderemos divulgar com mais propriedade, produzindo materiais, pesquisas, participando de eventos, palestras, publicações em geral etc.”
A viagem acontece num momento em que cada vez mais a luta da população saaraui é escanteada no cenário internacional, mesmo após anos de conflito. Para Isabella, “uma das maiores questões [para o escanteamento] seja por se localizar no continente africano e por ser um grupo majoritariamente muçulmano e de origem nômade, isso implica uma menor divulgação em geral, seja por falta de conhecimento, pelo apagamento na mídia tradicional, por conta de preconceitos ou dificuldade de acesso a materiais confiáveis.”
“Outro ponto”, continua, “é o fato de a ocupação partir de outro país árabe e africano, o que pode mascarar o fato de que essa ocupação atende também aos interesses de grandes imperialistas como a França, desde a exploração de recursos naturais até a questão migratória, já que a passagem do Marrocos para a Europa seria o caminho geograficamente mais fácil para quem migra a partir do norte do continente africano.”
Ao cenário de ofensiva da monarquia marroquina, apoiada pelos “democratas” franceses, soma-se o agudo tensionamento vivido na conjuntura internacional. A guerra entre Ucrânia e Rússia, além do genocídio cometido por Israel contra os palestinos, vem alterando alianças e prioridades ao redor do mundo.
Nesse contexto, a região do Sahel, composta majoritariamente por ex-colônias francesas e transformada em sua zona de influência, tornou-se um ponto de ebulição com os recentes golpes de estado não apenas em Níger, Mali e Burkina Faso, mas também em Guiné e Togo. A criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES), que se aproxima do Kremlin e do antigo Grupo Wagner, representou para a França uma séria derrota estratégica.
A mudança de ares, portanto, faz da parceria francesa com a monarquia marroquina a principal linha de ação diplomática no continente. Ignorando as Resoluções Internacionais e o direito de autodeterminação do povo saaraui, Macron e Mohammed VI, o atual monarca, continuam a política de ocupação e apagamento étnico no Saara Ocidental.
“O povo saaraui continua com sua luta armada porque sabe que só ela obrigará, seja quem for que estiver do lado do Marrocos, é o povo que vai obrigar que os seus objetivos sejam tidos em conta e respeitados, a sua dignidade seja respeitada, o seu direito à liberdade seja respeitado”, conclui Ahmed Mulay.
Informações: Em defesa do comunismo.