Ao abrir a reunião do Brics na cidade russa de Kazan, o presidente da Rússia, Vladmir Putin, expressou na quarta-feira (23) o objetivo de bloco geopolítico de criar uma nova “ordem mundial multipolar”, alternativa à ordem capitalista internacional hegemonizada pelos Estados Unidos.
“O processo de formação de uma ordem mundial multipolar está em curso, é um processo dinâmico e irreversível”, disse Putin na cerimônia de abertura oficial do encontro de cúpula.
A organização dos Brics está “fortalecendo sua autoridade nas questões internacionais”, completou, antes de pedir aos países membros que considerem como podem abordar os problemas mais prementes da agenda global, incluindo os “conflitos regionais graves”.
O Brics sai ainda mais amplo da sua XVI Cúpula, fortalecido pela incorporação de 13 novos países na condição de Estados parceiros, entre eles Cuba, Bolívia, Turquia e Indonésia.
Ao todo, 39 países participaram da reunião, inclusive a Venezuela, representada pelo presidente Nikolás Maduro, que em discurso defendeu a reforma do sistema financeiro e monetário internacional.
Desdolarização
O encontro, que entre outras coisas voltou a debater a instituição de uma moeda própria do grupo em substituição ao dólar nas transações econômicas internacionais, foi marcado pela consciência de que o Brics está pavimentando o caminho para a instalação da nova ordem global.
O presidente da China, Xi Jinping, ressaltou que a ascensão coletiva do Sul Global é a principal característica da transformação pela qual passa o mundo. “Os países do Sul Global marchando juntos em direção à modernização é monumental na história mundial e sem precedentes na civilização humana”, afirmou, acrescentando que esses países enfrentam ainda grandes desafios e que “o caminho para a prosperidade do Sul Global não será reto”.
O chanceler indiano, S. Jaishankar, por sua vez, destacou que o reequilíbrio político e cultural atingiu um ponto que já é possível contemplar a multipolaridade real.
“O próprio Brics é uma prova de quão profundamente a velha ordem está mudando”, disse o ministro indiano.
Já o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, falou sobre Gaza, Cuba, reforma da ONU e Ucrânia, enfatizando a política de duas caras dos EUA e a hipocrisia característica da diplomacia do chamado Ocidente.
“Os que se arrogam defensores dos direitos humanos fecham os olhos diante da maior atrocidade da história recente”, afirmou o chanceler brasileiro, numa alusão ao genocídio perpetrado pelos sionistas na Faixa de Gaza.
Críticas aos EUA
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, destacou que a transição para uma ordem mundial mais equitativa não é fácil e que é dificultada por “forças habituadas a pensar e agir na lógica da dominação sobre tudo”.
Putin citou as sanções econômicas unilaterais, o protecionismo econômico total, a manipulação da moeda e dos mercados financeiros, além da interferência em assuntos internos de outros países “sob o lema da preocupação com a democracia e os direitos humanos, e a luta contra as alterações climáticas”.
Sobre a guerra no Oriente Médio, o presidente russo destacou a necessidade de criar um Estado palestino independente que coexista pacificamente com Israel.
“A correção das injustiças históricas contra o povo palestiniano pode garantir a paz no Médio Oriente. Até que esta questão seja resolvida, o círculo vicioso de violência não será quebrado”, afirmou.
Comunidade de nações,
O secretário geral da ONU, António Guterres, também participou da Cúpula e elogiou os esforços para se construir um mundo fundado no multilateralismo, ou seja, em soluções coletivas para os problemas globais.
“Nenhum grupo e nenhum país pode agir sozinho ou isoladamente. Tem de ser uma comunidade de nações que trabalhem como uma família global para enfrentar os desafios globais”, afirmou, numa alusão velada ao unilateralismo dos EUA.
Ele reiterou o apelo pelo cessar fogo na Faixa de Gaza.
“Um cessar-fogo imediato e a imediata e incondicional libertação de todos os reféns, a entrega eficaz de ajuda humanitária sem obstáculos, e precisamos fazer progressos irreversíveis para acabar com a ocupação [de Israel] e estabelecer a solução de dois Estados”, completou.
Lula defende nova moeda
Impedido por recomendação médica de se deslocar para a Rússia, o presidente Lula participou por videoconferência da cúpula e destacou a necessidade de desdolarizar as relações comerciais e financeiras entre as nações.
“Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional. Essa discussão precisa ser enfrentada com seriedade, cautela e solidez técnica, mas não pode ser mais adiada”, afirmou Lula em discurso por videoconferência na cúpula.
Uma necessidade histórica
A Cúpula do Brics reflete a necessidade histórica de estabelecer os alicerces de uma nova ordem mundial, dado o esgotamento daquela proveniente dos acordos celebrados em Bretton Woods há 80 anos, que formalizaram a hegemonia global do dólar e dos Estados Unidos.
O mundo atual é bem diferente daquele vigente naquela época.
Décadas de desenvolvimento desigual, marcados pelo parasitismo e a decorrente desindustrialização dos EUA e do G7, transformaram substancialmente a geografia econômica, produzindo de um lado o declínio dos EUA e do chamado Ocidente e, de outro, a emergência de novas potências oriundas do antigo Terceiro Mundo, com destaque para ascensão da China.
Houve um nítido deslocamento do poder industrial – e por extensão geopolítico – do Ocidente para o Oriente, assim como do Norte para o Sul.
Daí provém a necessidade objetiva de transição para um novo arranjo econômico e político internacional.
A Cúpula de Kazan revela não só a crescente consciência desta necessidade como a vontade política de criar as condições para que a transição geopolítica ansiada hoje pela maioria das nações do globo, integrantes do Sul Global, se materialize.
No plano econômico, não só os EUA foram ultrapassados pela China como o Brics é hoje muito mais relevante do que o decadente G7.
A reunião mostrou, ainda, que a Rússia não ficou isolada como os EUA e as potências europeias desejavam.
A reorientação das relações econômicas para o Oriente e a África, e em especial para a China, fortaleceu a economia russa que, apesar das sanções inéditas impostas pelos EUA e UE, vem registrando um crescimento vigoroso e surpreendente.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a economia da Rússia cresça mais rápido que a de todos os países considerados desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos, neste ano.
A organização projeta um avanço de 3,2% do PIB russo em 2024, significativamente superior ao desempenho previsto para o Reino Unido, a França e a Alemanha.
Na esfera econômica a decadência relativa dos EUA, Japão e UE parece irreversível e não é remota a possibilidade de que as potências imperialistas apelem ao recurso militar na obsessão de evitar a decomposição da ordem acordada em Bretton Woods e preservar a qualquer custo a opressiva hegemonia sobre o Sul Global.
Umberto Martins, com informações da Agência Brasil e G1