Nesta quarta (16) foi comemorado o Dia Mundial da Alimentação e de Luta pela Soberania Alimentar. A data é marcada por intensos debates sobre como criar alternativas ao projeto devastador liderado pelo agronegócio e impulsionado pelo rentismo.
O Brasil enfrenta uma das mais severas secas de sua história. No final de setembro de 2024, 58% do território nacional estava em situação de seca, e dentro dessa área, uma parcela significativa sofre com uma escassez hídrica severa. Esta é considerada a maior seca em 73 anos no Pantanal, e a mais grave em 40 anos na Amazônia. Além de prejudicar a biodiversidade, a crise hídrica afeta drasticamente o equilíbrio dos ecossistemas e amplia o risco de incêndios florestais, agravando ainda mais a vulnerabilidade ambiental do país.
Os impactos cada vez mais intensos e devastadores de eventos climáticos extremos, têm evidenciado a urgência de práticas que não só aumentem a resiliência dos ecossistemas, mas que também promovam uma adaptação a longo prazo, tanto ambiental quanto social, nas regiões afetadas. Nesse cenário, fica cada vez mais evidente a conexão entre as práticas do agronegócio e a intensificação dos eventos climáticos extremos, especialmente considerando os impactos deste setor sobre o desmatamento, as alterações no uso do solo para a expansão da fronteira agrícola, o emprego de hidrocarbonetos na síntese de fertilizantes, e a contaminação ambiental gerada pela aplicação indiscriminada de agrotóxicos e pelo acúmulo de resíduos derivados desses processos.
A expansão agrícola intensiva, especialmente nas áreas de monocultura de soja e milho, está ligada ao desmatamento, à degradação dos solos e à redução da vegetação nativa, que são barreiras naturais contra enchentes, intensificando a vulnerabilidade do território a chuvas intensas, levando ao escoamento excessivo de água e ao aumento das inundações.
As queimadas de florestas e áreas de pastagem, além de serem crimes ambientais, são alimentadas por longas estiagens. Em setembro de 2024, o Brasil registrou 7.322 focos de incêndio, representando 71,9% das queimadas na América do Sul. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que, ao longo do ano, o país contabilizou mais de 80 mil focos de queimadas, um aumento de 30% em relação à média histórica.
A expansão das fronteiras agrícolas, que destrói biomas como a Amazônia, Cerrado e Pantanal, é um dos principais fatores que agravam a crise. A falta de controle ambiental e práticas criminosas de alguns setores do agronegócio intensificam a devastação, e se beneficiam da devastação de terras para a criação de pastagens e cultivo de monoculturas. As queimadas, agora mais frequentes e intensas, têm provocado crises ambientais e de saúde pública, com impactos diretos no regime de chuvas.
O governo federal reconhece a necessidade de recursos não apenas para mitigar desastres já em curso, mas também para prevenir eventos futuros. Há um apelo por uma gestão de risco mais eficaz, que inclua a preparação para desastres relacionados às mudanças climáticas.
A ministra Marina da Silva destacou que, atualmente, existem 1.942 municípios vulneráveis a essas mudanças, de acordo com dados históricos. Portanto, além de lidar com as emergências em curso, é essencial investir em políticas públicas de prevenção e adaptação de médio e longo prazo como parte de um esforço contínuo para mitigar os impactos futuros das crises ambientais.
Entre os grupos mais vulneráveis às mudanças climáticas estão as (os) agricultoras(es) familiares, povos e comunidades tradicionais. Ao mesmo tempo, são esses mesmos grupos que têm demonstrado maior capacidade de adaptação, implementando práticas herdadas de seus antepassados e desenvolvidas em diálogo com outras famílias, técnicos e pesquisadores a partir de uma abordagem agroecológica. Neste contexto, a agroecologia se destaca como uma abordagem transformadora, capaz de enfrentar a insegurança alimentar e as mudanças climáticas.
Em resposta a esses desafios, redes de base e instituições de desenvolvimento têm promovido e sustentado a agroecologia como um modelo viável para enfrentar a crise gerada pelo modelo agrícola industrializado, ao mesmo tempo em que respeitam a heterogeneidade socioecológica das regiões. Em busca de inspiração nessas experiências, e buscando traçar um panorama da agroecologia no estado do Rio de Janeiro, a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) realizou, entre julho e outubro de 2023, um mapeamento de experiências por meio da plataforma Agroecologia em Rede. O objetivo foi identificar e qualificar as estratégias adotadas por agricultoras(es), movimentos sociais, pesquisadoras(es) e redes em todas as regiões do estado do Rio de Janeiro. Foram mapeadas 260 experiências, agrupadas em algumas categorias: “produção de alimentos” (180 experiências), Em seguida, a categoria “comércio, feiras e outras formas de venda de produtos”, (124 experiências). Destacam-se também o “beneficiamento” (81 experiências) e as iniciativas relacionadas à “construção do conhecimento” (77 experiências).
O mapeamento revelou estratégias inovadoras desenvolvidas em um período marcado pela crise de insegurança alimentar, agravada pela pandemia e pelo desmonte de políticas públicas federais voltadas à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Dentre as iniciativas, 42 foram dedicadas ao acesso a alimentos, como a distribuição de marmitas e cestas, cozinhas comunitárias, merenda escolar e produção em hortas para autoconsumo. As experiências evidenciaram a adaptação de algumas experiências ao contexto sanitário, com o uso de novas tecnologias de vendas digitais para comercializar cestas de alimentos agroecológicos.
É importante destacar a retomada das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional no governo Lula desde 2023. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Fome Zero revelou que 13 milhões de pessoas deixaram de passar fome entre 2022 e 2023. O governo lançou iniciativas como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que tem como objetivo mobilizar recursos globais para combater a fome, e o Programa de Cozinhas Solidárias, que busca apoiar a oferta de refeições em comunidades vulneráveis, promovendo cursos de capacitação e abastecendo essas cozinhas com alimentos adquiridos por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Além disso, o Programa Cesta Básica Saudável visa incentivar o consumo de alimentos in natura e saudáveis. No entanto, essas iniciativas não abordam adequadamente a necessidade de enfrentar as mudanças climáticas, que representam um dos principais desafios enfrentados pelos agricultores, e não reconhecem o valor da agroecologia na abordagem conjunta do combate à fome e às mudanças climáticas.
As experiências mapeadas pela AARJ destacam as mudanças climáticas como um dos principais desafios enfrentados pelas comunidades, evidenciando o desenvolvimento de práticas locais para mitigar seus impactos. Entre essas práticas, a implementação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) se destaca como uma estratégia eficaz. A diversificação de culturas e a promoção da biodiversidade nos sistemas agroecológicos aumentam a resiliência dos agroecossistemas a eventos climáticos adversos, como secas, inundações e variações extremas de temperatura. Uma maior biodiversidade contribui para a criação de ecossistemas mais equilibrados, que são menos vulneráveis a pragas e doenças, além de facilitar a adaptação a condições climáticas variáveis.
Além disso, diversas tecnologias sociais, como sistemas de captação de água e métodos de redução de resíduos, foram mencionadas como ferramentas cruciais para enfrentar esses desafios. A agroecologia também valoriza o conhecimento tradicional e as práticas locais, oferecendo soluções adaptadas ao contexto específico de cada comunidade. Essa abordagem fortalece a autonomia dos pequenos agricultores e promove justiça social ao fornecer alternativas sustentáveis e economicamente viáveis, especialmente em regiões onde o agronegócio tem contribuído para a degradação ambiental e o deslocamento de comunidades rurais.
É fundamental evidenciar essas estratégias como parte do combate à fome e às mudanças climáticas. Essas experiências demonstram que a agroecologia é um caminho promissor para incentivar a valorização de sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis.
As principais escalas de abrangência das experiências mapeadas são de âmbito municipal e intermunicipal, evidenciando a predominância de uma diversidade de iniciativas “locais” que se conectam com o território. Essa diversidade ressalta a riqueza das práticas agroecológicas, que podem estabelecer vínculos para além de seus municípios, através da participação em redes e articulações regionais. No entanto, as dificuldades e demandas identificadas nesse mapeamento ressaltam a urgência de projetos e políticas públicas que integrem a construção de conhecimento—como assessoria técnica, capacitação e suporte à gestão—com o atendimento às necessidades materiais dessas iniciativas. Também indicam que é fundamental garantir o acesso a insumos essenciais, equipamentos e tecnologias sociais, além de oferecer suporte logístico para a comercialização dos produtos agrícolas. Um exemplo concreto dessa dinâmica é a agricultura urbana, que enfrenta desafios específicos, como a dificuldade de acesso a insumos básicos, como sementes, e os entraves para obter financiamento público e acesso à terra em áreas urbanas. Embora a promulgação da Lei Nº 14.935, que institui a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, tenha sido um passo positivo em julho deste ano, sua implementação ainda enfrenta desafios significativos. A integração da agricultura urbana ao planejamento urbano tem sido insuficiente, resultando em conflitos com o uso do solo e na falta de espaço adequado para o cultivo.
O mapeamento tem promovido um processo de reflexão e articulação, contribuindo para a construção da carta política elaborada pela AARJ, que foi apresentada às candidatas e candidatos nas eleições municipais. Como resultado dos diálogos com candidaturas, movimentos sociais e a sociedade civil, foi firmado um compromisso com o fortalecimento dos sujeitos e práticas agroecológicas no Estado do Rio de Janeiro, coletando 72 assinaturas de candidatos em 26 municípios, sendo 13 para a prefeitura e 59 para a vereança.
No contexto federal, em 13 de setembro, organizações e movimentos sociais ligados à agroecologia enviaram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, repudiando o veto do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) ao Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). Essa decisão inviabilizou o avanço do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), cujo lançamento já foi adiado quatro vezes. O documento foi divulgado por integrantes da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que demandam uma posição clara do Governo Federal sobre a redução de agrotóxicos e a implementação do plano.
Na carta, os movimentos ressaltam a urgência de fortalecer políticas públicas voltadas à agroecologia, visando à proteção da saúde das famílias brasileiras e da biodiversidade. A reunião ocorrida no dia 17 de setembro entre Lula, ministros e representantes dos outros Poderes discutiu a temática, evidenciando a crescente pressão social em torno do assunto. Em um vídeo divulgado, o presidente expressou abertura ao diálogo para encontrar soluções que possam alterar o atual cenário, embora tenha destacado a forte pressão exercida por empresários do setor de agrotóxicos no Congresso. A mobilização continua a ganhar força, com o movimento agroecológico buscando ampliar a conscientização da sociedade sobre a importância do Pronara.
A agroecologia deve ser reconhecida como uma estratégia fundamental no combate às mudanças climáticas, ressaltando os esforços das redes e movimentos para mapear e compreender experiências de inovação social que representam tanto estratégias de resiliência quanto de combate à fome. Esse enfoque é particularmente relevante no contexto da COP 30, onde serão debatidos as falhas que contribuíram para a crise atual e o papel do Brasil na diplomacia ambiental, incluindo a promessa do governo de criar uma autoridade climática.
É politicamente crucial reunir e analisar as contribuições da agroecologia para que ela seja reconhecida como parte essencial de um plano de adaptação e mitigação das mudanças climáticas. Essa análise pode orientar os tomadores de decisão a adotarem políticas mais eficazes, enfrentando os desafios climáticos e garantindo a sustentabilidade dos sistemas alimentares no país.
Acesse o relatório do mapeamento.
Informações: Sintaema e Outras palavras.