Proposta de nova eleição fere a soberania do voto popular e a autodeterminação da Venezuela

Apesar das boas intenções proclamadas, a proposta agrava os problemas porque dá uma bandeira à extrema direita violenta do país

Por José Reinaldo Carvalho (*)

Nas últimas semanas intensificaram-se as movimentações nada democráticas nem respeitosas com os princípios da soberania do voto popular e a soberania nacional, por parte de alguns países, incluindo o Brasil, que se recusam a reconhecer a vitória legítima de Nicolás Maduro nas eleições venezuelanas. Sob o pretexto de promover o diálogo, a conciliação e a “transição democrática”, propõe-se a realização de nova eleição na Venezuela.

No dia 8 de agosto, em artigo que publiquei neste espaço, questionei: “O que seria uma ‘transição democrática’? Anular a eleição de 28 de julho e realizar outra em prazo a ser fixado? Dar posse a Edmundo González Urrutia, proclamado vencedor pelos EUA? Convencer Maduro à renúncia depois de legitimado pela terceira vez nas urnas e pela vontade soberana do povo? Entregar o poder a um tertius”?

Eis que a proposta apareceu agora, com toda a clareza, de autoria de ninguém menos que o assessor especial de política externa do presidente Lula, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores, mundialmente conhecido como o formulador da política externa altiva e ativa que vigorou no Brasil desde 2003, interrompida apenas com o golpe que destituiu a ex-presidente Dilma Rousseff e posteriormente com a instalação no poder do governo de extrema direita sob a presidência de Jair Bolsonaro. Formalmente, diz-se que as soluções para a crise criada pela extrema direita venezuelana deverá ser encontrada dentro do próprio país, mas a ideia de convocar nova eleição está eivada de intervencionismo e desrespeito à autodeterminação venezuelana, a tal ponto que sugere-se a supervisão internacional sob a tutela da organização mais servil e funcional aos ditames do imperialismo estadunidense – a Organização dos Estados Americanos.

A proposta do embaixador Amorim foi esposada pelo presidente Lula em entrevista que concedeu nesta quinta-feira (15) à Rádio T no Paraná. Disse que “Maduro sabe que está devendo uma explicação para o mundo” e reafirmou que “ainda” não reconheceu o resultado da eleição presidencial na Venezuela, deixando entrevisto que isto pode demorar até a posse, em janeiro de 2025. Fica o enigma se depois da posse do presidente Maduro, democrática e legitimamente reeleito, Lula reconhecerá o governo ou se congelará as relações com o país vizinho e até agora amigo. De pronto, segundo a Reuters, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse também na quinta-feira que apoia uma nova eleição na Venezuela.

A proposta é estapafúrdia. Sua formulação é vazada no falso conceito de que a eleição foi fraudada, e verbalizada em termos políticos e diplomáticos inteiramente inadequados, como um proconsulado dando ordens a uma província. Outrossim, não corresponde ao proclamado propósito de criar um clima de estabilidade no país vizinho. Ao contrário, enseja a instalação de ainda mais confrontações, porquanto dá ao polo derrotado mais um cavalo de batalha para enfrentar o governo bolivariano, fortalece as solertes manobras golpistas para entregar o poder à extrema direita fascista, a pior dentre todas as que atuam em nossa região. Ficou evidente que o Brasil não apenas põe em dúvida, mas contesta abertamente a legitimidade democrática da reeleição do presidente Nicolás Maduro e, independentemente das intenções, faz coro com as acusações da Casa Branca e da extrema direita derrotada ao sistema democrático da República Bolivariana.

É fundamental destacar que Nicolás Maduro foi eleito e diplomado conforme os preceitos legais estabelecidos pelo poder eleitoral nacional da Venezuela. Um Poder Constitucional. A legislação venezuelana é clara: não há espaço para o suposto segundo turno, muito menos para a realização de novas eleições impostas por pressões externas. Essa proposta é uma afronta à autodeterminação do povo venezuelano, um ataque direto à sua soberania, que deve ser respeitada por todas as nações que se dizem democráticas.

As ações contrárias ao reconhecimento da reeleição de Maduro atendem em primeiro lugar aos objetivos da direita venezuelana e coincidem com os interesses geopolíticos de potentados internacionais, como os EUA e a União Europeia. O que estamos presenciando é uma manobra orquestrada pelo imperialismo, que compôs o cantochão da fraude, repetido pela dupla Corina Machado – Edmundo Urrutia. Laboram em erro os que defendem a realização de uma nova eleição, pois mesmo que estejam bem intencionados, correm o risco de coonestar uma nova forma de golpe, alegando que seria a fórmula para promover a “transição democrática”. Todas as evidências demonstram o propósito do imperialismo de remover do poder as forças revolucionárias que há 25 anos conduzem a Venezuela no rumo do desenvolvimento soberano, da democracia participativa com protagonismo popular e do progresso social.

Nas condições concretas da polarização política na Venezuela, tal “transição” resultaria numa transferência de poder para a direita reacionária.

A proposta de realizar a “transição democrática” na Venezuela afigura-se como parte de uma estratégia dos mal chamados “golpes suaves”, que já devastaram outros países da América Latina, sempre com o mesmo objetivo: consolidar o domínio do imperialismo, apossar-se das riquezas nacionais e eliminar qualquer resistência popular ao neoliberalismo.

Essa tentativa de golpe travestida de defesa da democracia é uma ameaça não só para a Venezuela, mas para toda a América Latina. Alinhar-se a essa política danifica o nosso compromisso com os princípios de autodeterminação que o Brasil tem defendido. Pode representar também falta de vigilância em face de ameaças golpistas que hoje pairam sobre a Venezuela, mas a qualquer momento podem de novo se voltar contra o Brasil. Nunca se pode obscurecer a visão de que no gigante do Cruzeiro do Sul há uma classe dominante reacionária, uma extrema direita violenta, sempre à disposição para secundar aqui os planos de dominação do imperialismo.

É preciso resistir a essa nova forma de golpe, denunciar essa intervenção e apoiar a soberania do povo venezuelano. A América Latina deve se levantar contra esse ataque imperialista, defender seus direitos de decidir seu próprio destino, livre de interferências externas que só trazem destruição e submissão. E manifestar solidariedade ao povo venezuelano, cuja unidade, resistência e luta foram responsáveis pela vitória política de 28 de julho.

(*) Jornalista, editor do Resistência, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, coordenador do setor de Solidariedade e Paz. É presidente do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz

 

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