Em conversa com o Sul21, a magistrada analisou o cenário das relações trabalhistas em meio ao estado de calamidade e expressou preocupação com as denúncias de violações cometidas no período. Ela salienta que o trabalhador tem o direito de não sofrer represálias em razão de catástrofes ambientais. “A impossibilidade de comparecer ao trabalho e a impossibilidade de existir de forma plena durante e depois do que aconteceu aqui no Rio Grande do Sul não é uma escolha do trabalhador ou da trabalhadora”, diz.
Contudo, Valdete avalia que momentos de catástrofe e calamidades costumam ser utilizados para flexibilizar ainda mais as regras trabalhistas, o que já aconteceu durante a pandemia de covid-19. “Isso é histórico, é muito impressionante inclusive. Porque veja só, na pandemia, quando ainda não tinha vacina, a discussão que se fazia antes de falar em reduzir salário, era se seria possível despedir por justa causa empregado que porventura se negasse à vacinação, e não tinha vacina ainda. Eu dou esse exemplo para te dizer que, não só existe um uso oportunista, digamos, desses eventos, dessas situações de exceção para flexibilizar ainda mais o direito trabalhista, como também existe uma cultura que é completamente alinhada com o capital e contrária à proteção dos direitos trabalhistas. Quando o primeiro pensamento que você tinha que ter era como proteger essa pessoa da doença, inclusive garantir um trabalho decente, protegido, não, o pensamento era o contrário. Agora é a mesma coisa”, diz.
Ela destaca que o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) vem recebendo uma série de denúncias de violações trabalhistas cometidas durante o período de enfrentamento à calamidade. “Começou essa discussão porque muitos empregadores começaram a exigir que os trabalhadores retornassem, só que eram trabalhadores que estavam com suas casas embaixo da água, em alojamentos, hospedados em casa de parentes, não tinham condição de retornar. E aí a alegação dos empregadores é que não tem uma regra específica dizendo que essa, por exemplo, é uma causa de fato [para não comparecer ao trabalho]. Não tem porque é uma catástrofe mesmo e o ordenamento jurídico não prevê todas as situações”, diz Valdete.
Procurado pela reportagem, o MPT-RS não informou o número de denúncias que recebeu no período, mas informou que boa parte delas se refere a situações em que o trabalhador foi convocado para retornar ao trabalho, mas havia sido atingido diretamente pelas enchentes ou com impossibilidade de deslocamento. “Algumas dessas convocações, incluem ameaça de punições ou despedida, ou mesmo a submissão do empregado, de maneira injustificada, a situação de risco à sua integridade física”, diz nota divulgada pelo órgão.
As denúncias apresentadas serão investigadas pelo MPT caso a caso. Uma das possibilidades de enquadramento é como abuso de poder do empregador. O órgão informou ainda vem monitorando com atenção a situação e já expediu três recomendações enviadas tanto a administrações públicas quanto a federações representantes de empregadores e de empregados.
“A primeira recomenda que os municípios devem emitir gratuitamente aos trabalhadores atingidos pelas cheias o atestado de exposição a enchentes. A segunda indica aos empregadores que priorizem o diálogo social ao buscar alternativas de trabalho na emergência que preservem empregos e renda dos trabalhadores. A terceira estabelece orientações de saúde e segurança no ambiente de trabalho durante os trabalhos de limpeza e reconstrução”, diz a nota.
Valdete pondera que, na prática, os empregadores acabam promovendo demissões, mesmo que em casos não justificados, o que reforça a importância da Justiça do Trabalho. “Tem toda uma discussão sobre a extinção da Justiça do Trabalho e nesses momentos que a gente percebe que o único caminho que essas pessoas têm para tentar reverter, caso os empregadores pratiquem atos ilegais, é a Justiça do Trabalho, que é muito mais ágil do que os outros ramos do Poder Judiciário e que tem condição, por exemplo, com uma tutela de urgência, de evitar que o trabalhador passe muito tempo sem conteúdo de trabalho e, por consequência, sem salário. Essas pessoas já perderam tudo, não podem perder também o salário”, diz.
Apoio à manutenção do emprego
Nesta quinta-feira (6), em visita ao Estado, o presidente Lula assinou uma Medida Provisória que cria um auxílio de R$ 1.412,00, a ser pago em duas parcelas, para apoiar a manutenção de empregos em empresas atingidas pelas cheias. O programa tem como público-alvo 434 mil trabalhadores formais, sendo 326 mil celetistas, 40 mil domésticos, 36 mil estagiários, 27 mil pescadores artesanais e 3,5 mil catadores. A estimativa de impacto financeiro é de R$ 1,2 bilhão.
O programa deve pagar diretamente o salário aos beneficiados e, como contrapartida, as empresas deverão manter os empregos por mais dois meses, totalizando uma estabilidade de quatro meses. “Nós vamos oferecer duas parcelas de um salário mínimo a todos os trabalhadores formais do estado do Rio Grande do Sul que foram atingidos na mancha [de inundação]. Não são todos os CNPJs dos municípios em calamidade ou emergência, mas os atingidos pela mancha”, explicou o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho.
Para a juíza, a proposta é insuficiente. “Além de ser muito pouco, dois salários e uma garantia de emprego de só dois meses, ainda é só para os trabalhadores formais. Quem não tem vínculo reconhecido, quem não tem carteira assinada, fica desamparado”, diz.
Por outro lado, Valdete expressa maior preocupação com uma outra modalidade que já estava disponível para os empregadores, tendo sido criada justamente durante a pandemia de covid-19, o chamado layoff calamidade.
As empresas atingidas no Estado podem acessar o layoff calamidade e o layoff convencional, que são mecanismos de preservação de empregos criados durante a pandemia de covid-19 e já utilizados por empresas gaúchas após as inundações que atingiram o Vale do Taquari em setembro de 2023. No layoff, as empresas podem reduzir salário e jornada de trabalho ou suspender temporariamente contratos de trabalho, mas sem demitirem os trabalhadores de forma permanente. Esses mecanismos podem ser utilizados mesmo por empresas que não estão na mancha de áreas atingidas diretamente, mas foram afetadas de alguma forma em suas capacidades.
“A lei 14.437, de 2022, veio para permitir a flexibilização de direitos. Quer dizer, postergar pagamento de férias, reduzir salário com redução de jornada. Dar férias para a pessoa enquanto ela está enfrentando a calamidade. Mas ninguém flui férias, você está tendo que limpar uma casa que foi inundada. Então, não há uma preocupação com proteção do direito trabalhista e isso é lamentável. Mas o mais lamentável é que, assim, isso foi algo muito claro durante o governo anterior, teria que ser diferente agora porque o governo atual é o governo de um ex-operário”, diz.
Ela também critica que outras medidas já adotadas, como a permissão para que empresas gaúchas atingidas pelas chuvas possam suspender o recolhimento pelo período de 180 dias, não trouxeram contrapartidas mais eficientes para a proteção do emprego. “É uma medida de proteção das empresas”, afirma.
Para Valdete, o governo está perdendo a oportunidade de apresentar propostas que percorram o caminha inverso, garantindo maior proteção aos trabalhadores em momentos de calamidade. “Aconteceu no sul, mas aconteceu o ano passado em São Paulo. Em 2022, na Bahia, e vai continuar acontecendo. Quer dizer, não é à toa que tem uma lei para falar de estado de calamidade, porque essas coisas já estão acontecendo e vão se repetir. Só que a gente não vê movimento do governo atual no sentido de proteger mais essas pessoas que dependem do trabalho. Agora era hora de aproveitar, por exemplo, para regulamentar a proteção contra despedida, para regulamentar a necessidade de motivo para poder despedir, e não para usar uma lei da época do Bolsonaro, que é uma lei empresarial, não é uma lei de proteção ao trabalho”, diz.
A magistrada avalia ainda que uma nova legislação regrando as relações de trabalho durante calamidades poderia justamente evitar problemas como os denunciados ao MPT-RS. “Uma legislação que dissesse que faltar ou atrasar, sendo uma pessoa que mora em área de inundação, não pode sofrer desconto, uma regra de proteção contra despedida para todas essas pessoas, independentemente de estarem ou não em áreas alagadas, por um prazo de um ano, dois anos. Porque mesmo as pessoas que não estavam em áreas alagadas têm parentes, afetos nas áreas alagadas, está transitando, ou seja, a vida de todo mundo foi afetada de algum modo. Então, teria que ter uma proteção mais efetiva para essas pessoas”, afirma.
Informações: Sul 21.