Conforme dados da SSP, 63% das vítimas eram negras
Por José Higídio e Alex Tajra*
Embora a intervenção da Polícia Militar de São Paulo tenha causado 3.838 mortes no estado entre 2018 e 2023, o Ministério Público paulista apresentou à Justiça apenas 269 denúncias referentes a homicídios praticados por policiais militares nesse mesmo período.
O número de denúncias corresponde a 7% do total de mortes decorrentes da intervenção de PMs — os dados são do Centro de Apoio Criminal do MP-SP e foram obtidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico por meio da Lei de Acesso à Informação. Já o número de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) é disponibilizado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do governo de São Paulo.
Especialistas no assunto consultados pela ConJur apontam alguns fatores que explicam essa discrepância, entre eles o pensamento majoritário do MP, que privilegia os “excludentes de ilicitude” (situações nas quais a ação letal dos policiais teoricamente está justificada); a falta de um efetivo controle da atividade policial por parte do órgão ministerial; e a dificuldade para a produção de provas relativas a homicídios cometidos por PMs.
Fogo cruzado
Os dados da SSP mostram que, entre as 3.838 pessoas mortas pela intervenção da PM entre 2018 e 2023, 2.426 (63%) eram negras (pretas ou pardas). Cerca de 80% dessas mortes (3.056) foram causadas por agentes em serviço, enquanto policiais de folga foram responsáveis pelos outros 20% (782).
As 269 denúncias, por sua vez, correspondem a ações por homicídio ajuizadas pelo MP-SP nas quais PMs figuram como réus ou investigados. Os registros estão espalhados pelos três sistemas usados pelo MP e incluem os procedimentos sigilosos.
Para chegar a esse dado, o Centro de Apoio Criminal filtrou as ações por ocupação, ou seja, reuniu os procedimentos nos quais foi indicada a profissão de PM para algum réu ou investigado. Mas o MP-SP ressaltou que a informação de profissão não é um campo obrigatório nos processos. Dessa forma, é possível que haja mais de 269 denúncias que envolvam policiais.
Em um dos sistemas, por exemplo, há o registro de 27 denúncias por homicídio e 37 policiais processados — o que indica que algumas denúncias envolvem mais de um PM.
Um outro sistema que o MP-SP utiliza não permite a medição adequada do total de PMs denunciados. O Centro de Apoio Criminal explicou que, nesse software, a marcação para crimes contra a vida decorrentes de intervenção policial nem sempre estava com a parte devidamente identificada. Assim, o total registrado de PMs é menor do que o número de denúncias.
Respaldo para excessos
Entre as razões para a discrepância entre o número de crimes contra a vida cometidos por policiais militares e o de denúncias formais oferecidas pelo Ministério Público paulista estão os possíveis excludentes de ilicitude.
O artigo 23 do Código Penal elenca as seguintes exceções quando o crime é cometido por PM: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
O advogado Eugênio Malavasi, criminalista que já atuou em casos de crimes de policiais, afirma que, quando o suporte fático mostra que houve a exclusão de ilicitude na conduta do PM, em geral o MP não oferece denúncia.
Fernando Fabiani Capano, advogado com atuação na defesa de agentes de segurança, dá explicação semelhante: “Se o promotor entender que, apuradas as circunstâncias do ocorrido, o policial agiu dentro da lei, não haverá denúncia oferecida, e, sim, um pedido de arquivamento do inquérito policial, que, geralmente, é acolhido pelo magistrado”.
Capano acredita que, nas últimas duas décadas, “o MP está compreendendo o atual contexto social que estamos a vivenciar — de uma guerra civil não declarada — e, nesse sentido, avaliando que, no mais das vezes, o enfrentamento do crime com força letal está legitimado”.
Resistências e dificuldades
A legislação que cita o excludente de ilicitude também diz, por outro lado, que o agente, mesmo nessas hipóteses, “responderá pelo excesso doloso ou culposo”.
É justamente essa a lacuna deixada pelo MP. Ainda que haja casos em que a ilicitude da ação policial seja excluída, o órgão tem a função, atribuída pela Constituição, de fazer o controle externo da atividade policial (artigo 129, parágrafo VII). Desde a inclusão dessa obrigação na Carta, no entanto, há resistência da promotoria a fiscalizar as ações policiais.
“É impossível”, diz o advogado Arthur Migliari, que atuou como promotor do MP-SP por três décadas, sobre o controle da atividade policial feito pela instituição. “Primeiro que não tem o número suficiente de promotores para isso. Segundo que não tem auxiliares suficientes. Já se tentou muitas vezes fazer essa fiscalização e existe um milhão de problemas relacionados, tanto na parte física quanto na parte institucional.”
Migliari cita o caso das pequenas cidades, que muitas vezes têm um ou dois promotores designados. “Nas comarcas pequenas o cara é promotor eleitoral, de família, de registros públicos, de divórcio, de alimentos. Ele não vai ter tempo de fazer isso. Teria de parar tudo o que está fazendo para investigar (a conduta dos policiais).”
Em relação às mortes causadas por policiais, ele diz que há “muitas variantes” na atuação dos agentes que norteiam a atuação do MP, e que uma das principais dificuldades é a produção de provas.
Há, em geral, um problema no chamado standard de provas no Direito Penal brasileiro, ou seja, na qualidade do material que embasa ou não uma condenação. Isso se agrava quando há agentes do Estado envolvidos, o que gera, por exemplo, medo da população, além dos riscos de adulteração da cena do crime.
Também entra nessa equação, segundo Migliari, o que a população pensa sobre a atuação da PM, os antecedentes dos que foram mortos e o histórico dos policiais.
Controle não é prioridade
Giane Silvestre, pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, afirma que o controle das polícias nunca foi prioridade para o MP institucionalmente e que a má qualidade da investigação e da produção de provas também é responsabilidade do órgão ministerial. Além disso, diz Giane, há uma identificação cultural do MP com a polícia.
“O MP atua em uma espécie de parceria com a polícia, conferindo credibilidade à PM enquanto instituição. Eles gostam de trabalhar juntos. Alimenta-se uma cultura de valorização da PM, inclusive para fazer atividades típicas da Polícia Civil (investigação, produção de provas), e o MP muitas vezes participa disso”, destaca a pesquisadora, citando as rixas entre militares e civis na polícia paulista.
Ela afirma também que os casos de MDIPs em São Paulo têm, em sua maioria, relação com crimes patrimoniais. “Os dados, pelo menos até pouco tempo atrás, mostram que a maior parte dessas mortes tem relação com crimes como roubo, furto, tentativa de roubo. É diferente do Rio de Janeiro, por exemplo, que registra aquelas operações contra tráfico de drogas.”
“Nessas quase quatro mil mortes no período, há enredos que se repetem. E esse enredo é uma linha de montagem do MP. Eles só vão validando os elementos que são trazidos e não se preocupam de fato em cobrar uma investigação. Muitas vezes o excludente de ilicitude já é dado de antemão, é o ponto de partida de qualquer investigação que envolva policiais.”
A pesquisadora considera que houve um retrocesso nos últimos anos nas políticas para controlar a atividade policial, e que esse período culminou na ascensão do oficial da reserva da PM, ex-comandante da Rota e deputado federal licenciado Guilherme Derrite (PL) ao posto de secretário de Segurança Pública do estado.
A secretaria já teve projetos para analisar e coibir os excessos dos policiais. As câmeras nas fardas, implementadas na gestão de João Doria (PSDB), por exemplo, têm essa função, e influenciaram nas quedas de mortes causadas pelos policiais e dos próprios agentes.
Derrite e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), todavia, têm se posicionado de forma contrária ao equipamento. O sucateamento dessa política influenciou no crescimento das mortes causadas por PMs, puxado pelas dezenas de assassinatos durante as “operações” “verão” e “escudo”.
“No governo (Mário) Covas foram feitas várias iniciativas de controle da PM que passavam por programas da própria secretaria. Ele criou a ouvidoria das polícias, por exemplo. Existem coisas que podem ser feitas pela secretaria, além do controle constitucional feito pelo MP. (Nos últimos tempos) Nós retrocedemos 40 ou 50 anos.”
Justificativas oficiais
Questionado sobre os motivos da discrepância entre as mortes e o total de ações, o MP-SP se limitou a dizer que “há inúmeras hipóteses para arquivamento de investigações, dentre as quais causas excludentes de ilicitude e causas de extinção da punibilidade”. Segundo o órgão, “a resposta demandaria uma análise caso a caso”.
Já a SSP ressaltou que todos os casos de MDIPs “são rigorosamente investigados pelas Polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário”.
De acordo com a secretaria, “as ocorrências são consequência direta da reação violenta de criminosos à ação da polícia, e a opção pelo confronto é sempre do suspeito, que coloca em risco a vida do policial e da população”.
A pasta ainda sustentou que investe permanentemente “na capacitação dos policiais, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, e em políticas públicas para reduzir a letalidade policial”.
“Os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aprimoram os treinamentos, bem como as estruturas investigativas”, concluiu a SSP.
*José Higídio e Alex Tajra são repórteres da revista Consultor Jurídico
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