Inconsistências da narrativa predominante acerca da tragédia no Rio Grande do Sul

Cidades inteiras do Rio Grande do Sul, no Brasil, ficaram debaixo d'água após a enchente que começou a afetar o estado no final de abril de 2024. Aqui, bombeiros sobrevoam bairros da região metropolitana de Porto Alegre. FOTO DE LAURO ALVES SECOM (CC BY-NC 2.0 DEED).

Por Professor Elton Arruda

Não resta qualquer dúvida, diante das enchentes do Rio Grande do Sul, de que se trata de uma grande tragédia e que a mesma teve decisiva participação da componente climática. Mas é equivocado gritar aos mundos de que se trata de uma tragédia climática e que esta foi determinada pelo aquecimento global. E, pior, culpar a humanidade por igual pelo aquecimento global.

As variáveis climáticas conjugam índices pluviométricos muito grandes mas não necessariamente inéditos. A medição das cotas de enchentes dos principais rios da região data de 1939, menos de um século de séries de medições. Logo em 1941 teve uma grande cheia que cobriu parte da área alagada hoje. Foi tão grande a cheia que inspirou a construção de um sistema de diques em Porto Alegre e, mais tarde, uma das primeiras legislações de proteção ambiental no estado do Rio Grande do Sul (uma das primeiras do continente). De lá até aqui grandes cotas foram alcançadas nos períodos de cheias, mas nada impactou a vida local como em 1941 e 2024. Acontece que a urbanização, grandes projetos da agropecuária, obras hídricas e desmatamento esqueceram 1941 e apostaram alto no liberalismo econômico e confiaram à tal da “mão invisível do mercado” sua proteção.

Em 2021 o governo do Rio Grande do Sul, em nome de “modernizar a lei ambiental” alterou quase 500 pontos da Legislação Ambiental do estado, tornando esse instrumento legal e as estruturas de controle bastante frágeis. Por exemplo: passou a permitir que agrotóxicos não aprovados para uso no Brasil estivessem liberados por lá; criou um monstro chamado Licença Ambiental de Compromisso que permite licenças ambientais (obrigatórias para todo tipo empreendimento que impactam de alguma forma o meio ambiente) possam ser emitidas em até 48  horas sem qualquer vistoria técnica prévia. Mais recentemente o mesmo governo sancionou lei que flexibiliza mais ainda a construção de barragens e reservatórios em área ambiental. Nas cidades onde aterraram e avançaram sobre novos espaços nas últimas décadas, o descuido e a permissiva relação com o mercado imobiliário por parte do poder público assentou milhares de famílias e empreendimentos em áreas que antes foram diversas vezes ocupadas pelas águas nos períodos de cheias.

No campo não foi diferente. Grandes projetos agropecuários se valeram da frouxa legislação e avançaram sem dó. O Pampa gaúcho, principal bioma da região, é o segundo mais degradado no país – perdendo apenas para Mata Atlântica. Não é atoa que mais de 15% dos campos de arroz, 25% dos campos de soja e 10% dos campos de milho ficaram submersos… o lugar era das águas.

Agora vamos considerar que um fator climático como El Niño (um dos envolvidos) é estudado a menos de um século, embora percebido desde os tempos coloniais (antes do capitalismo industrial) e influencia a tragédia do Rio Grande do Sul!  É preciso dizer que devemos acumular mais estudos e observações para dimensionar melhor o peso dessas variáveis climáticas na tragédia de agora. Não se trata de negar simplesmente o fenômeno chamado de Aquecimento Global, mas ir além de posts, manchetes e apreciações impressionadas pela narrativa hegemônica.

É factível e honesto colocar que existiu afrouxamento das leis e liberdade exagerada para ocupação e exploração dos solos e recursos ambientais naquele estado. A ganância do capital, tendo como cúmplice o poder público na esfera estadual, quis ocupar o lugar das águas, imaginou ser mais forte que a natureza e a população paga um preço por isso.

Daí retomo uma questão: a quem serve o discurso hegemônico (abençoado pela ONU que afirma existirem 4 vezes mais refugiados climáticos do que das guerras e da miséria mundial) que é generalista e esconde o CPF e CNPJ de quem tem o poder de tomar e executar decisões?

O que assistimos no Rio Grande do Sul agora está longe de ser uma “tragédia climática”, é uma tragédia social, histórica de dimensão política e os responsáveis precisam ser nomeados e cobrados! Mais que isso, o discurso que responsabiliza o clima, e nos culpa  todos e todas pelo aquecimento global, desconsidera o fato de que algumas poucas pessoas controlam e usufruem do meio enquanto outros bilhões nada podem e nada tem.

As pessoas devem estar atentas aos ardis da retórica neoliberal, e nessa seara ambiental são demais os perigos para desatentos!

* Professor da Rede Estadual de Educação Básica Pública do Estado do Piaui, Professor do CES – Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho, Professor da ENFOC – Piaui, Diretor da CTB no Piauí.

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