Por Rômulo Saraiva*
De vez em quando surgem vozes no cenário político defendendo que as aposentadorias no Brasil possam ser pagas, se necessário, abaixo do salário mínimo. Fazer do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) algo parecido ao que aconteceu na previdência do nosso vizinho Chile, cuja maioria dos aposentados ganha pouco mais da metade do mínimo.
Na gestão bolsonarista, tentou-se na última reforma da Previdência encolher os benefícios por meio do sistema de capitalização, o que não vingou. Agora no governo petista aparece a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB), com a ideia de mexer na renda previdenciária por outro caminho: retirando a trava constitucional do benefício, que impede do pagamento ser abaixo do salário mínimo.
Basicamente há duas maneiras de se reduzir drasticamente as aposentadorias. A primeira pode ser feita pelo sistema de capitalização, quando a contribuição previdenciária é descontada do salário e forma uma conta individual. Nesse sistema, igual ao do Chile, não há garantia de teto mínimo.
A outra é modificando a Constituição Federal brasileira, uma vez que há dispositivo expresso garantindo que “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”. Ao defender a desvinculação da aposentadoria ao mínimo, possivelmente seria este o caminho de Tebet.
Como toda regra tem exceção, importante lembrar que o ordenamento jurídico atual admite exceções de o INSS pagar abaixo do mínimo, a exemplo do rateio das cotas da pensão por morte ou concessões antigas de auxílio-acidente. Todavia, quando Simone Tebet se pronunciou, deu a entender que todos os benefícios possam mergulhar além da barreira do teto mínimo, a exemplo dos benefícios previdenciários, do seguro-desemprego e do benefício de prestação continuada.
Ideia embrionária
Por enquanto, é uma ideia embrionária. Um sonho tebetiano. Mas algumas ideias esdrúxulas e reformistas começaram assim. E quando menos se espera aparecem despretensiosas no texto-base de alguma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) até se consolidar numa reforma previdenciária. É quando o sonho vira realidade.
Mesmo sendo uma manifestação de uma ministra de Estado, o assunto é preocupante, pela gravidade e prejuízo irreversível que pode ensejar a milhões de famílias. Além de ser um tema que vira e mexe aparece como um fantasma. Não foi a primeira vez que se falou, nem será a última.
Por coincidência, tais ideias ganharam impulso a partir de ministros do segundo escalão, a exemplo de Paulo Guedes (ex-ministro de Jair Bolsonaro) que conseguiu transformar várias ideias em realidade, embora a sugestão de criar o sistema de capitalização no INSS não tenha prosperado. Agora, a atual ministra Simone Tebet reverbera o assunto. E José Peñera, ex-ministro no Chile na década de 1980, protagonizou as mudanças das regras e permitiu que milhares de chilenos hoje passem apuros com uma migalha de aposentadoria.
O que eles têm em comum? Figuras que assumiram o cargo de ministro e nutriam ideias reformistas no sistema previdenciário. Peñera e Guedes estudaram economia em Havard e são entusiastas das ideias do liberalismo econômico. Ao que tudo indica, Tebet vai no mesmo caminho.
Mas a principal diferença é que Peñera conseguiu colocar em prática o que Tebet e Guedes apenas desejam.
Ao olhar as reformas do Chile, estimuladas por Peñera, veremos que ele privatizou o sistema estatal de pensões, o mesmo que em 2023 pagou a cerca de 50% das pessoas que ganharam a pensão de velhice o equivalente a 62% do salário mínimo para passarem o mês.
Por outro lado, conforme dados da Fundação Sol, organização chilena que promove pesquisas na economia, quem se favoreceu com a reforma previdenciária foram as AFP (administradora de fundos de pensão), um grupo de poucas empresas que auferem lucros bilionários com a especulação da reserva matemática e da administração das aposentadorias. Levantamento da Fundação Sol mostra que as “AFP investiram mais de US$ 22.544 milhões provenientes das poupanças previdenciárias dos trabalhadores”.
Essa financeirização dos direitos previdenciários vem resultando no Chile perda expressiva do valor da aposentadoria e elevação do número de aposentados se suicidando no país. Dentro do pacote de austeridade, cogita-se até mudar as leis para o aposentado hipotecar a casa, a fim de melhorar a renda.
Por isso, é preocupante o burburinho capitaneado por Simone Tebet em desvincular as aposentadorias do INSS do valor de um salário mínimo. No caso dela, talvez tenha um motivo adicional para se preocupar. Embora atualmente seja ministra, ela já foi presidenciável e provavelmente nas próximas eleições se lançará novamente como tal.
Portanto, a desvinculação entre Previdência e salário mínimo para os anos de 2025 e 2026 é uma ameaça que não é só um arroubo da ministra. No cenário que ela concorrerá como candidata a presidente da República, o risco de o INSS se tornar um Chile ainda não está descartado.
*Professor, advogado, especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS), membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PE, colunista da Folha de S.Paulo e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP. Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo
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