Por Umberto Martins
Tempo, tempo, tempo, tempo. Eis o objeto essencial da luta de classes no capitalismo, embora esta essência nem sempre coincida com as aparências dos fenômenos.
A posse e o controle do tempo de trabalho é a grande fonte das contradições e conflitos de interesse entre capital e trabalho, cujos segredos estão compreendidos no interior da jornada de trabalho.
Unidade de contrários
Conforme Karl Marx observou no capítulo oitavo de O capital (livro 1) no capitalismo a jornada de trabalho se divide em dois tempos desiguais e opostos, configurando o que a dialética designou de unidade de contrários.
De um lado temos o que o pensador alemão chamou de tempo de trabalho necessário e, do outro, em contraposição, o tempo de trabalho excedente.
No primeiro caso transcorre o tempo de trabalho no qual o trabalhador reproduz o valor do seu próprio salário e outros eventuais benefícios que recebe, por exemplo cesta básica ou Participação nos Lucros e Resultados (PLR).
Já o tempo de trabalho excedente, como o próprio conceito sugere, é a parte da jornada em que o assalariado produz um valor que excede sua remeneração e é apropriada pelo capitalista na forma de mais-valia (o lucro), um fato que, compreensivelmente, sempre ficou obscurecido na economia política burguesa.
Negociações coletivas
A convivência entre esses dois tempos distintos e contraditórios é tensa.
Os choque são frequentes. Transparecem e podem ser percebidos facilmente, por exemplo, numa mesa de negociações salariais, em que de um lado o trabalhador busca ampliar o trabalho necessário, do qual se apropria na forma de salário, reivindicando aumento real, e do outro, o capital quer preservar ou ampliar o tempo de trabalho excelente, mantendo ou arrochando o valoro da força de trabalho (a inflação trabalha a seu favor neste sentido, reduzindo o valor real dos salários).
É a famosa corrida entre salários e lucros, que será eterna enquanto durar o modo de produção capitalista, sistema que hoje padece uma crise global.
O capitalista é retratado por Marx como um vampiro insaciável cujo sangue é o trabalho operário excedente: “o capital é trabalho morto, o qual, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo e quanto mais sobreviver, mais trabalho sugará”.
Greves e revoluções
Quando uma categoria demanda aumento real de salários, da cesta básica, da PLR ou benefícios como Plano de Saúde, entre outros, luta pela ampliação do tempo de trabalho necessário com a concomitante redução do tempo de trabalho excedente.
Onipresente na luta entre as duas principais classes do sistema, cujos interesses são antagônicos e a longo prazo inconciliáveis, a contradição entre esses tempos opostos que se digladiam na mesma jornada de trabalho explode nas greves, quando fracassam as negociações coletivas e a composição dos interesses fica inviável, e nas revoluções proletárias, quando a sociedade se depara com um impasse político incontornável pelas vias tradicionais.
Redução da jornada
É na luta multissecular pela redução da jornada de trabalho sem redução de salários que o objeto essencial do confronto entre trabalhadores e capitalistas fica mais evidente e em que a aparência mais se aproxima da essência.
Mantendo-se inalterado o valor dos salários a redução da jornada significa claramente aumento do tempo de trabalho necessário em detrimento do tempo de trabalho excedente, razão pela qual o patronato em geral é francamente hostil a esse tipo de reivindicação.
Quando a redução da jornada de trabalho se torna inevitável ele procura compensação através do aumento da intensidade do trabalho, pela qual o trabalhador agrega mais valor do que antes durante o tempo de trabalho.
1º de Maio
Foi esta luta que originou o 1º de Maio, Dia da Classe Trabalhadora, instituído pela Internacional Socialista em 1889, quando a organização decidiu convocar uma manifestação anual com o objetivo de lutar pela jornada de 8 horas de trabalho, sendo a data escolhida em homenagem aos mártires de Chicago e aos operários que, três anos antes, promoveram a greve geral de 1º de maio de 1886 pela redução da jornada.
O movimento mobilizou cerca de 340 000 trabalhadores nos EUA. Foi brutalmente reprimido pela polícia e justiça burguesas. Seis operários foram assassinados e 50 ficaram gravemente feridos.
Deixando claro o seu caráter de classes, a Justiça burguesa dos EUA condenou sete líderes grevistas à morte, e um outro a 15 anos de prisão. A pena de morte de dois réus foi comutada em pena de prisão perpétua pelo governador de Illinois Richard, J. Oglesby, e um deles suicidou-se na prisão. Os outros quatro acusados foram enforcados em 11 de novembro de 1887. Entraram para a história como os mártires de Chicago.
Tempo para o trabalho, o lazer e o descanso
Os grevistas ecoaram o lema criado pelo socialista utópico Robert Owen já em 1817 (época em que a jornada diária chegava a 16 horas): “8 horas de trabalho, 8 horas de recreação e 8 horas de descanso”.
A luta não foi em vão. Ao longo do século 20, a demanda operária por uma jornada diária mais humana, de no máximo 8 horas, foi se transformando em realidade. Tornou-se regra geral no Brasil em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas.
Karl Marx considerava a redução da jornada essencial para o desenvolvimento da consciência e das potencialidades físicas e espirituais do ser humano, assim como uma pré-condição para o comunismo.
Em contraposição à concepção capitalista, onde o tempo de trabalho é a medida do valor, como sugere o ditado “tempo é dinheiro”, o grande filósofo alemão considerava o tempo livre a verdadeira riqueza humana e condição para a liberdade, o livre arbítrio, dos indivíduos.
Ofensiva capitalista
Em pleno século 21, a peleja pelo tempo entre capital e trabalho ainda não encontrou um desfecho e certamente vai perdurar enquanto o capitalismo sobreviver e o tempo de trabalho, por consequência, permanecer como medida do valor e da riqueza social.
O crescimento formidável das forças produtivas, que se traduz em maior produtividade e em menos tempo de trabalho necessário à produção das mercadorias, não resultou em redução da jornada e tendências de orientação inversa ganharam força.
No transporte por aplicativos, por exemplo, normalmente trabalha-se de 12 a 15 horas por dia. No Brasil retrocessos substanciais foram impostos à classe trabalhadora neste terreno, mas curiosamente a bandeira da redução da jornada não consta entre as reinvidicações do 1º de Maio unificado que as centrais sindicais convocaram para São Paulo, apesar do apelo do ministro do Trabalho, Luiz Marinho para que o movimento sindical abrace e lidere esta luta, que voltou à ordem do dia através do movimento pela instituição da Semana de Trabalho de Quatro Dias.
Reforma trabalhista
A relação entre os dois componentes opostos da jornada de trabalho é também frequentemente subvertida pelas transformações tecnológicas e o avanço das forças produtivas, o que se pode verificar atualmente no chamado capitalismo de plataformas, onde hoje floresce a desregulamentação.
São igualmente impactadas por mudanças políticas e jurídicas.
Temos uma boa ilustração disto nas alterações da legislação trabalhista impostas goela abaixo da classe trabalhadora durante o governo golpista de Michel Temer, que conseguiu a façanha de se tornar o presidente mais impopular da nossa história.
O tempo de trabalho esteve no centro da reforma trabalhista dos golpistas, feita sob medida para satisfazer a sede insaciável do capital por tempo de trabalho excedente ou mais-valia. Entre os retrocessos na jornada provenientes das mudanças na CLT, que estão em vigor desde o dia 11 de novembro de 2017, constam os seguinte:
- Fim das horas in itinere, que incorporava à jornada de trabalho o tempo gasto pelo empregado no transporte até o local de trabalho;
- Possibilidade de aumento do tempo de trabalho para 12 horas diárias. A legislação estipulava o limite diário de 8 horas de trabalho, sendo permitido, no máximo, realizar 2 horas extras por dia;
- Tempo da refeição. Para os trabalhadores com jornada de trabalho de 8 horas diárias, a lei previa a interrupção da jornada por, no mínimo, uma hora e no máximo duas horas para a alimentação e descanso. Agora esse tempo pode ser negociado e reduzido à metade (30 minutos);
- Tempo à disposição da empresa, gasto com higienização, troca de uniformes, entre outras práticas não são mais computadas como hora de trabalho efetivo;
- Jornada parcial. A reforma instituiu contrato de até 30 horas semanais, sem horas extras, ou de até 26 horas semanais, com até 6 horas extras. Antes da reforma, a lei previa jornada máxima de 25 horas;
- Banco de horas. Antes das mudanças regressivas impostas durante o governo Temer, o banco de horas só podia ser estabelecido mediante acordo coletivo negociado com os sindicatos. Agora, o banco de horas ser pactuado por acordo individual, favorecendo a ditadura patronal;
- Foi criado uma nova modalidade de contrato que o movimento sindical considera infame e inconstitucional, pois permite ao patrão contratar por menos do que um salário mínimo. É o chamado trabalho intermitente, que permite aos capitalistas contratar trabalhadores para execução de atividades eventuais, remunerando-os apenas pelo período em que prestaram o serviço. Estudo realizado pelo Dieese mostrou que 20% dos vínculos intermitentes firmados em 2021 não geraram trabalho ou renda; 46% não registraram nenhuma atividade em dezembro daquele ano, quando a remuneração foi inferior a um salário mínimo em 44% dos vínculos intermitentes que registraram trabalho; a remuneração mensal média dos vínculos intermitentes foi de R$ 888, o que equivalia a 81% do valor do salário mínimo naquele ano; o número de contratos intermitentes representou 0,50% do estoque de empregos formais em 2021.
Ilustração: Obra do artista plástico mexicano Diego Viera “Desfile do 1º de Maio em Moscou – 1956”