Por Leandro Demori – A Grande Guerra
Muito se fala dos problemas das privatizações. Todos deveriam saber: uma empresa pública não precisa perseguir lucros e movimentos de mercado a todo custo – e por “a todo custo” entenda-se “prejudicando a população” para faturar mais.
Quer exemplo melhor e mais recente do que a “eficiência” da Petrobras? A empresa se tornou a maior distribuidora de lucros pros acionistas de todas as petrolíferas do mundo às custas do brasileiro pagando gasolina a 8 reais.
ENTÃO TEMOS O CASO ENEL
Vastas regiões de São Paulo estão sem energia elétrica – estima-se 500 mil imóveis às escuras entre residências, comércio e serviços essenciais como UPAs, clínicas, hospitais e escolas. Comida jogada no lixo, respiradores parando de funcionar. Um caos. O temporal foi sexta-feira. A responsabilidade pela operação de serviços de energia elétrica na cidade de São Paulo e parte da Região Metropolitana de São Paulo chama-se Enel Distribuição São Paulo.
A Enel é uma empresa de economia mista controlada pelo Estado italiano (detém 23,6% dela). Ou seja: a Itália, por meio de seu ministério da Economia, é a maior acionista da empresa, mas ela conta com sócios privados, que são maioria. No Brasil, ela comprou as operações da estatal Eletropaulo em 2018.
BRIGA INTERNA EM ROMA, SÃO PAULO NO ESCURO
Este ano, uma briga inesperada explodiu nos corredores da Enel. Um sócio até então pouco conhecido e que possui uma fatia de cerca de 1% do capital da empresa começou a cutucar o governo, tanto em reuniões como em praça pública, dando entrevistas para os maiores jornais do país. A guerra iniciada pelo fundo Covalis Capital visava dominar a Presidência ou ao menos parte do Conselho da empresa. Entendendo esses bastidores, entendemos como milhões de pessoas estão sem luz em São Paulo.
O QUE ESTÁ EM JOGO
DE UM LADO O GOVERNO DE GIORGIA MELONI
Chama-se Giancarlo Giorgetti seu ministro da Economia. É de Giorgetti o ministério que possui os tais 23,6% da Enel. Giorgetti é um dos mais proeminentes políticos da Lega Nord, o partido ultradireitista e liberal da Itália. Não apenas isso: o ministro é da corrente mais liberal dentro da própria Lega. Algo como: se a terra fosse plana, Giorgetti já estaria se segurando na borda.
Seu plano para o estado italiano – e para a Enel como consequência –, como não poderia deixar de ser, é apenas um: cortar, cortar, cortar.
O plano de cortes é tudo o que o governo quer. A ideia de cortar todos os custos possíveis da Enel e das outras 33 empresas estatais controladas pela pasta de Giorgetti é simples: levar todo o dinheiro que conseguir para a Itália. Esse movimento de repatriação de euros é fundamental para ajudar a reduzir o déficit fiscal italiano, esperado em 5,3% este ano. E não melhora muito no ano que vem. A dívida pública italiana fechou no ano passado em 144,4% do PIB.
DO OUTRO LADO ESTÁ O FUNDO COVALIS CAPITAL
O Covalis Capital sequer é um dos grandes fundos do mundo. Seu portfólio está estimado em cerca de 500 milhões de dólares, muito longe dos verdadeiros e trilionários tubarões do mercado. O Covalis tem sede em Londres mas seu dinheiro, na prática, fica flutuando pelas ilhas Cayman. Durante a pandemia, esse fundo fez grana comprando ativos desvalorizados por causa do lockdown. E investiu pesado em empresas de energia, sobretudo em uma delas, chamada Li-cycle Holdings Corp. Essa empresa fica sediada no Canadá e recicla baterias de íons de lítio, dominantes no mercado. O Covalis é, hoje, o maior acionista da Li-cycle Holdings Corp.
O QUE O COVALIS QUER
Que a Enel faça desinvestimentos em algumas áreas para poder gastar nas energias ditas renováveis. Que tire recursos de países como Chile e Brasil, por exemplo, e jogue tudo em seu setor de interesse imediato.
A Enel é muito forte nisso e vem fazendo investimentos. Há um braço do grupo chamado Enel X, por exemplo, que vende toda a sorte de soluções renováveis, muitas delas focadas no uso de baterias. Há investimentos específicos em inovações em baterias pra eletrificar casas, trens, carros, indústrias. O problema é que, para o fundo Covalis, o ritmo precisa ser muito mais rápido. Se por um lado eles se beneficiam quando a Enel corta custos, por outro eles precisam que ela seja uma das líderes na difusão do uso de baterias – que depois serão recicladas por empresas como a Li-cycle Holdings Corp.
Qualquer movimento de um colosso como a Enel – segundo o ranking da revista Fortune, o 59º maior faturamento do mundo – faria o setor dar um salto.
MAS AFETA SÃO PAULO COMO MESMO?
A Enel demitiu no Brasil 36% dos funcionários desde 2019, ou seja: desde o primeiro dia em que pegou as chaves da mão da Eletropaulo. Esses milhares de empregos a menos ajudaram a verdejar os balanços da Enel na Itália. Além disso, a Enel é famosa por deixar a rede sucatear, evitando fazer investimentos sequer para a manutenção do sistema. Mais dinheiro poupado, mais dinheiro no caixa.
Para o governo italiano, que é seu maior acionista, um ótimo negócio. Para o fundo Covalis, idem, com a diferença que seus interesses são outros. De todo modo, ambos – governo e Covalis – só pensam em uma coisa quando se trata de empregos e investimentos no Brasil: cortes, cortes, cortes.
De um lado e de outro, o cidadão de São Paulo ficou na mão.