O imbróglio em torno da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) terá um novo capítulo nesta semana, quando ações relativas à desestatização serão julgadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). A forma açodada como se deu o processo, a manutenção do sigilo sobre informações que deveriam ser públicas e o baixo valor pelo qual a empresa foi vendida são alguns dos pontos que vêm suscitando questionamentos e formam um cenário nebuloso sobre o futuro de uma questão básica: o direito do povo à água e ao saneamento públicos.
Um dos julgamentos ocorrerá nesta terça-feira (18), por parte da Primeira Câmara do TCE do Rio Grande do Sul; já na quarta-feira (19), será a vez de o Tribunal Pleno se debruçar sobre o tema. Para compreender o que estará em pauta, no entanto, é preciso retroceder no tempo para lembrar os últimos lances relativos à privatização da empresa.
A Corsan, empresa criada em 1965 com controle acionário do estado do RS, atua em 317 municípios gaúchos, atendendo cerca de 6 milhões de pessoas e, segundo informa, atingiu 96,7% de universalização na disponibilidade de água potável nas áreas urbanas administradas e 16,3% no caso do esgoto.
A estatal foi vendida para a Aegea em leilão na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), com lance único, no dia 20 de dezembro do ano passado, pelo valor de R$ 4,151 bilhões — o mínimo estipulado havia sido de R$ 4,1 bilhões, ou seja, o ágio foi de apenas 1,15%. O contrato foi assinado no dia 7 de julho deste ano.
Cabe destacar que conforme estudo solicitado pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto (SindiÁgua-RS), a empresa foi avaliada em R$ 6,5 bilhões. Outro levantamento, encomendado pelo Sindicato dos Técnicos Industriais de Nível Médio (Sintec-RS), chegou à cifra de R$ 7 bilhões, valor 75% maior do que o da venda. Segundo o SindiÁgua, o valor patrimonial estimado da empresa fica em torno de R$ 120 bilhões.
“O patrimônio entregue foi subavaliado; há vários locais do estado em que não se sabe ao certo como os dados patrimoniais foram atualizados e é claro que isso também afeta o social, as pessoas, porque não há no contrato nenhuma salvaguarda contra eventual reclamação da empresa na sua negociação com o estado”, explica, ao Portal Vermelho, o deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), que tem acompanhado o caso da Corsan.
Ele completa lembrando o exemplo de Manaus, onde a Aegea domina o mercado de fornecimento de água e tratamento do esgoto: “lá, a empresa está cobrando investimentos públicos naquilo que ela dizia que que faria em termos de investimento. Nós não temos proteção no contrato evitando que isso aconteça aqui no estado do Rio Grande do Sul”.
Água não é mercadoria
O deputado Jeferson Fernandes também critica a entrega da companhia no que diz respeito ao seu papel estratégico no atendimento mais elementar à população. “Estão sendo entregues a uma empresa privada os serviços prestados a 317 municípios, sem que se saiba o futuro do fornecimento da água, o que coloca em risco o direito humano básico a esse recurso, quer seja para população que pode pagar, como também para aquela que não tem recursos suficientes”.
Segundo tem sido argumentado pelo governo de Eduardo Leite (PSDB), a desestatização seria uma forma de cumprir com o marco legal do saneamento. A lei, aprovada em 2020, prevê que até 2033, 99% da população deve ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento do esgoto. Para tanto, abre caminho para a venda das estatais do setor, o que vai na contramão de experiências de outros países que, diante da ineficiência e piora dos serviços dessa natureza entregues à iniciativa privada, decidiram reestatizar o atendimento.
De acordo com dados da entidade internacional Public Services, 226 empresas do setor de serviços integrados à água voltaram às mãos do Estado nos últimos anos. E, conforme o Transnational Institute (TNI), parceiro da entidade, até 2019, houve 1.408 casos de reestatização de 2.400 regiões em 58 países, entre as quais estão cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires e La Paz.
Falta de transparência
Outro ponto criticado por entidades, movimentos sociais e setores políticos é a falta de transparência do processo e o que isso poderia estar escondendo. “É sabido que operações de venda de empresas do porte da Corsan, sobretudo quando se pensa em colocar ações no mercado como era o caso do IPO (oferta pública de ações), se justifica num primeiro momento ter o sigilo. Porém, considerando que o IPO não saiu e depois de ter sido realizado o leilão, não há mais razões para sustentar o sigilo”, pondera o deputado Fernandes.
Por detrás disso, argumenta, “tem o interesse de ocultar informações tanto da parte do governo quanto do comprador porque não constam no processo as principais bases de cálculo para chegar ao valor de R$ 4,1 bilhões, que é o mínimo que foi ofertado e pelo qual foi comprada a Corsan. Então, na prática, querem esconder o jogo de cartas marcadas entre o vendedor e o comprador”.
Para Fernando Niedersberg, químico da Corsan e delegado sindical do Sindicato dos Químicos do RS, a forma como se deu o processo acaba levantando suspeitas. “Tudo foi feito sob sigilo, sigilo este que tentamos remover. Há cerca de um mês, esse ele foi suspenso, mas apenas para os deputados que fazem parte da Comissão de Orçamento da Assembleia Legislativa e esses deputados podiam olhar o processo sem fazer qualquer tipo de anotação, não podiam entrar nem com o celular dentro da sala — o processo tem mais de 20 mil páginas, então, imagina a dificuldade de conseguir colher as informações”.
A deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB) também questiona o processo de privatização. “Existem diversas respostas que precisam ser dadas ao povo gaúcho que ainda seguem sob sigilo. Por que a pressa em vender a Corsan? Vender a Corsan é uma irresponsabilidade sem tamanho com o futuro e a dignidade do nosso povo”, declarou, via redes sociais.
A parlamentar traçou ainda um paralelo com a situação da energia elétrica no estado, cuja estatal CEEE foi entregue ao Grupo Equatorial em 2021, também sob o governo tucano. “Isso provocou uma piora severa na prestação do serviço, seja na ausência de um protocolo para desligamento de luz ou para atendimento em casos de fenômenos naturais”. No final de junho, após passagem de ciclone extratropical que deixou 16 mortos e estragos em diversas cidades gaúchas, a CEEE foi criticada pela demora em restabelecer o serviço— houve casos relatados por vereadores em que as pessoas chegaram a ficar cinco dias sem luz — e pelas dificuldades de a população usar os canais de atendimento.
Idas e vindas
Nesse cenário enredado, ações foram movidas no âmbito judicial e uma série de idas e vindas deixaram o processo cercado de ainda mais dúvidas. Por isso, os julgamentos desta semana podem ser decisivos.
Logo após a venda da Corsan, em dezembro, Daniela Zago, conselheira-substituta e então relatora do processo de contas especiais no TCE, atendeu a um pedido do Ministério Público de Contas (MPC) e concedeu medida cautelar para que o contrato não fosse assinado. Entre os pontos destacados para a tomada desta decisão estão questionamentos sobre o valor da venda e os dados utilizados sobre os investimentos necessários e a capacidade da Corsan de fazê-los.
A decisão foi derrubada no dia 5 de julho pelo presidente do TCE, o conselheiro Alexandre Postal, que acatou pedido da Procuradoria Geral do Estado (PGE). No dia seguinte, a atual relatora do processo, a conselheira-substituta Ana Cristina Moraes, discordou da decisão de Postal e manteve a cautelar. E novamente, no dia 7, Postal voltou a suspender a cautelar.
Tal posição foi rechaçada por Ana Cristina e pelo conselheiro Estilac Xavier que, na sessão do dia 12, classificou a decisão de postal como “precaríssima” por não ter sido submetida aos demais integrante da Corte na sessão subsequente, no caso, a do próprio dia 12.
Ainda que reverter o processo de privatização da Corsan seja algo complexo, a quantidade de questionamentos e dúvidas suscitadas, inclusive no âmbito dos órgãos de controle, traz alguma perspectiva positiva. “A gente conhece a realidade do capitalismo, a tal ‘segurança jurídica’, ou seja, depois de tudo já efetivado é muito mais difícil conseguir uma reversão, mas, a esperança ainda existe, não desistimos da luta”, pontua o químico Fernando Niedersberg.
“Eu acredito a tal ponto que estou lutando para a reversão do processo, a começar dentro do Tribunal de Contas do Estado, e no judiciário. Estamos usando, inclusive, a argumentação comprovada de que o presidente Alexandre Postal pisoteou o regimento interno da casa — e quem está dizendo isso são conselheiros e o próprio Ministério Público de Contas —e estamos levando isso ao conhecimento do poder judiciário gaúcho, o qual já foi provocado por nós com um mandado de segurança, mostrando que tudo que foi, a forma como está se procedendo, é simplesmente ignorar o conteúdo do processo e apenas garantir a vontade do capital que quer explorar o nosso principal recurso natural que é a nossa água”, finaliza o deputado Jeferson Fernandes.
Informações: Priscila Lobregatte / Portal Vermelho