Indicado por Michel Temer, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostrou que merece o respeito do povo brasileiro pela firmeza com que defendeu o Estado Democrático de Direito contra as investidas golpistas de Jair Bolsonaro e os crimes dos fascistas bolsonaristas que culminaram na ruidosa empreitada golpista de 8 de janeiro. Mas, em matéria de direito do trabalho, o ministro deixa a desejar e merece nota zero, conforme observou o Procurador do Trabalho do RJ, Rodrigo Carelli, em artigo reprozudiao abaixo, publicado originalmente no Conjur.
Sou professor de Direito do Trabalho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e a primeira coisa que pensei ao ler a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes na Reclamação 59.795 foi que, se o texto fosse resposta a uma prova de Direito do Trabalho I, eu com certeza lhe concederia grau zero.
A decisão cassa acórdão do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) de Minas Gerais, que havia reconhecido o vínculo empregatício de motorista com empresa que se utiliza de plataforma digital para gestão de serviço de transporte de passageiros, declarando a incompetência da Justiça do Trabalho e remetendo o caso à Justiça comum.
A nota zero seria justificada não somente pelos erros graves em relação aos institutos e à lei trabalhistas, mas principalmente por demonstrar uma absoluta incompreensão do Direito do Trabalho, de suas funções, seus princípios e sua racionalidade. A inequívoca nota zero seria fruto da própria natureza do texto: a negação do próprio direito do trabalho.
Muito além de confundir institutos como terceirização, trabalho autônomo e outros contratos de natureza civis, colocando tudo no mesmo balaio, e também por trazer uma sequência de precedentes que não dialogam entre si, e confundir instrumento de trabalho com meios de produção, eu mostraria ao imaginário aluno Alexandre que a peça se divorcia absolutamente dos princípios do direito do trabalho, o que faz todo o edifício simplesmente cair por terra por falta de sustentação.
O princípio fundador do direito do trabalho é o da “não-mercantilização do trabalho”, previsto como primeiro princípio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma que “o trabalho não é uma mercadoria”. O que a OIT quis dizer é que o trabalho não é uma mercadoria como as outras e por isso não pode ser tratado juridicamente como uma coisa, pois o que está no mercado para compra e venda é a mercadoria fictícia “força de trabalho”, que no final das contas se confunde com a pessoa que trabalha. Assim, há a necessidade de um ramo do direito com racionalidade específica.
Esse direito com racionalidade específica é o direito do trabalho, que tem como princípio basilar a proteção ao trabalhador, por meio de regras, institutos, princípios, presunções e instituições que limitam o poder do empregador. Essa limitação do poder dos empregadores não tem nada de revolucionário ou comunista: é capitalista na veia, um direito conservador, que pretende manter as condições de manutenção do sistema por meio da garantia da reprodução dos trabalhadores.
O direito do trabalho surge em 1802, na liberal e efervescente Inglaterra da Revolução Industrial, justamente para tentar preservar a mão de obra, que estava sendo massacrada e dizimada pela livre contratação entre empregadores e trabalhadores. A história do direito do trabalho no século 20 é a construção de direitos sociais dentro do capitalismo, como alternativa ao socialismo e para a manutenção de uma sociedade civilizada, em oposição à barbárie do século anterior, que levou a duas grandes guerras e às revoluções do século passado.
Assim, o direito do trabalho legitima o poder empregatício, limitando-o por meio de direitos trabalhistas. O direito do trabalho, visto assim, nada mais é do que expressão dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República e da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa como pilares da ordem econômica, como está na Constituição. Ou seja, legitima a propriedade e a livre iniciativa pela valorização do trabalho humano, o que somente pode acontecer pelo direito do trabalho.
O texto admite como alternativa ao trabalho protegido, e não como espécie diferente, o trabalho contratado formalmente como civil, mesmo tendo realidade fática similar, negando por fim todo o artigo 7º e seguintes da Constituição, que são expressamente tratados pelo texto maior como direitos fundamentais, isto é, com pretensão de universalidade.
Desta forma, o texto do ministro Alexandre de Moraes acaba por negar toda a construção constitucional da relação entre trabalho e livre iniciativa. Mas não só: nega também todo o sistema de proteção trabalhista, que é baseado nos princípios da imperatividade das normas e da indisponibilidade dos direitos trabalhistas. Esses princípios são básicos no direito do trabalho por uma só razão: se eles não existirem acaba o direito do trabalho.
A relação entre empregador e trabalhador é assimétrica por natureza. O trabalhador está sempre em uma situação vulnerável em relação à capacidade negocial. O direito do trabalho pretende restabelecer, pelo menos parcialmente, a paridade de armas, elevando a capacidade negocial dos trabalhadores por meio da instalação de um patamar mínimo para negociação e instrumentos e instituições diversas de proteção (Justiça do Trabalho, sindicatos, inspeção laboral et.).
O fim é um só: garantir a liberdade do trabalhador, que alguns podem chamar de autonomia da vontade. Ou seja, o direito do trabalho existe para garantir a autonomia da vontade do trabalhador, e não para negá-la. E tudo isso sem em nenhum momento ameaçar a livre iniciativa, pois ela é seu pressuposto.
Eu relembraria Alexandre de Moraes que o direito do trabalho tem um princípio crucial que se chama “primazia da realidade sobre a forma”. Esse princípio, previsto expressamente no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, afirma ser nulo de pleno direito os atos que pretendam afastar, impedir ou fraudar a aplicação do direito do trabalho. Esse é o instrumento básico que o direito do trabalho tem no mundo civilizado inteiro: a requalificação de contratos civis em contrato de emprego.
Conforme a Recomendação nº 198 da OIT, ignorada pelo texto do ministro Alexandre de Moraes, a existência da relação de emprego deve ser guiada primordialmente pelos fatos relacionados com o tipo de trabalho e a remuneração do trabalhador, não importando como a relação é caracterizada em qualquer acordo contrário, contratual ou que possa ter sido acordado entre as partes. Sem esse instrumento o direito do trabalho equivale a uma lei morta, pois seria óbvio a submissão dos trabalhadores à imposição contratual pelo empregador de um contrato mais barato.
Como professor, eu diria ainda a Alexandre de Moraes que ele foi contraditório. Um dos excertos de precedente que inseriu para justificar sua conclusão, da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, ressalva justamente os casos de fraude. Barroso afirma que os contratos de terceirização seriam válidos, exceto quando se encontrassem os elementos da relação de emprego na realidade.
Ora, a decisão da Justiça do Trabalho não fez outra coisa senão isso: identificou a presença dos elementos da relação de emprego, afastou o contrato civil e declarou a existência do vínculo de emprego entre trabalhador e empresa. Fez nesse caso como faz há quase um século e como todos o juízos trabalhistas fazem ao redor do mundo.
Eu diria ainda a Alexandre de Moraes que ele me fez lembrar o conto de Franz Kafka entitulado Diante da Lei. Nele, um trabalhador pobre do campo se desloca até a lei e tenta adentrar ao seu edifício, no que é impedido por um guardião que está logo na primeira porta, que o manda esperar, sem justificativa. O trabalhador fica anos sentado ali na porta, aguardando que seja lhe permitido o acesso à lei. Quando já está bem velho, o trabalhador resolve perguntar ao guardião porquê nenhuma outra pessoa, durante todo aquele tempo que ali estava, tentou entrar pela porta. O guardião disse que a resposta era simples: aquela porta havia sido criada somente para o trabalhador e somente ele poderia entrar por ali. E após dizer isso, fecha a porta e o trabalhador morre.
Esse final, que sempre me intrigou, agora fica muito claro: o guardião da porta da lei está impedindo o acesso ao Direito justamente daquele que mais precisa dela. O caso dos trabalhadores controlados por plataformas digitais é o mais típico grupo de trabalhadores excluídos de nossos tempos. É para eles que existe a Justiça do Trabalho, é para ele que existe o instituto da requalificação contratual. É para ele, mas é também para aqueles que foram contratados de forma fraudulenta por contratos civis vários como única opção para poderem trabalhar e ganhar o sustento de sua família.
Eu alertaria a Alexandre de Moraes que sua proposta tem uma gravidade ímpar: ela não somente em um plano nega a condições de sujeito de direitos a toda uma massa de trabalhadores, sem análise de caso concreto e das condições reais de trabalho, legitimando a utilização de contratos meramente formais em detrimento da realidade, como em um outro plano impede o acesso à justiça competente trabalhista, o que é único no mundo.
Finalmente temos uma jabuticaba só nossa, talvez só comparável a momentos de radicalização ditatorial como a do Chile de Pinochet, que extinguiu a Justiça do Trabalho. Pela lógica do ministro Alexandre de Moraes, a ação do trabalhador não deve ser julgada pelo juiz competente constitucionalmente para análise da questão trabalhista, mas sim pelo juízo comum.
Eu diria ao aluno Alexandre: mas o juiz comum vai fazer o que com a ação? Ele vai analisar a existência do vínculo empregatício? Com que competência e conhecimento? Eu perguntaria também se Alexandre teria revogado o artigo 114 da Constituição.
Também diria a Alexandre: se esse tipo de raciocínio prevalecer, o direito e a justiça do trabalho acabam. Haverá poucos empregadores que vão reconhecer a condição de empregados de seus trabalhadores, pois até aqueles que assim desejarem serão obrigados pela concorrência a seguirem um caminho de contratá-los por contratos civis, em fuga ao direito do trabalho. Com isso a declaração universal dos direitos humanos, que prevê alguns direitos trabalhistas, não seria cumprida.
O pacto interamericano de direitos humanos, por seu protocolo adicional, que traz vários direitos trabalhistas direcionados aos trabalhadores em geral, ratificado pelo Brasil, seria descumprido. O pacto internacional de direitos sociais, econômicos e culturais, que traz extensa lista de direitos para o trabalhador e, ficaria completamente esvaziado.
A Constituição teria uma série de direitos fundamentais esvaziados, sem sujeitos. O curioso é que o Supremo Tribunal Federal deveria ser o guardião da Constituição, não no sentido kafkiano de restrição de acesso, mas no de fazê-la efetiva.
Nesse momento eu teria uma ideia e faria uma proposta a Alexandre de Moraes: a substituição dessa nota zero por uma outra avaliação. Nela o virtual aluno dissertaria sobre a possibilidade constitucional, à luz dos tratados e declarações de direitos humanos, que os direitos do artigo 7 e seguintes, como direitos fundamentais, fossem estendidos a todos os trabalhadores, cumprindo a natural propensão dessa categoria de direitos: a universalidade.
Se eu tivesse conseguido explicar as razões de existência do direito do trabalho, eu acredito que ele iria, desta vez, tirar nota dez. Para o bem do projeto de nação civilizada que está desenhado na Constituição da República.
* Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e professor de Direito do Trabalho e de Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Foto: André Dusek – Estadão