O vaticínio certeiro de Ulysses Guimarães sobre as eleições para o Congresso
E célebre a frase de Ulysses Guimarães em resposta a um jornalista: “Se você acha esse Congresso ruim, espere até o próximo”. Célebre e certeira. O Parlamento que emergiu das urnas no domingo 2 é não só pior do que o anterior. Concorre para ser o pior dos piores desde o retorno das eleições livres no Brasil. Sobre o solo fértil do fisiologismo arraigado brotou a fina flor do atraso e da ignorância. Notórios incompetentes, despreparados e oportunistas foram premiados pelos eleitores, como mostram as votações consagradoras dos ex-ministros Ricardo Salles, responsável por “liberar a boiada” na Amazônia, e seus 640 mil votos em São Paulo, e Eduardo Pazuello, que, entre outros crimes, deixou faltar oxigênio em Manaus no auge da pandemia, mas ainda assim foi o escolhido por 205 mil eleitores fluminenses. Os brasileiros também deram vagas na Câmara a Rosângela Moro, pelo simples fato de ser a conje do ex-juiz da Lava Jato, e ao ex-procurador Deltan Dallagnol, cuja obra máxima foi o PowerPoint no qual acusava Lula de chefiar uma quadrilha. No Senado, o bolsonarismo elegeu uma trupe de fazer inveja aos Cavaleiros do Apocalipse: Damares Alves, Magno Malta, Sergio Moro e Hamilton Mourão, três deles neófitos na disputa, venceram com largas margens em relação aos adversários.
O Centrão bolsonarista, como indicavam as raras projeções disponíveis, expandiu seus tentáculos, com o crescimento das bancadas do PL, do PP e do Republicanos à custa dos tradicionais PSDB e PTB. O bloco terá mais da metade dos 513 deputados federais. No Senado, apoiadores de Bolsonaro conquistaram 14 das 27 vagas em disputa. O tímido crescimento do número de parlamentares progressistas não compensa a expansão do Centrão e será insuficiente para garantir um suporte mínimo a um eventual governo Lula. “Houve um deslocamento forte para a direita, tanto na Câmara quanto no Senado. PL, PP, Republicanos, União Brasil e PSD cresceram em relação à eleição de 2018”, constata Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). No campo progressista, diz Toninho, houve uma redistribuição de forças: “Embora as federações lideradas por PT e PSOL tenham crescido, o PSB e o PDT perderam bancada. Uma coisa compensou a outra. O aumento foi muito pequeno. Do ponto de vista da correlação de forças, a chamada esquerda fica em bastante desvantagem diante das forças de direita. Na hipótese de reeleição de Bolsonaro, o futuro Congresso será muito mais reacionário do que hoje”.
Em uma mudança carregada de significado, o MDB perdeu a hegemonia no Senado, mantida desde as eleições de 1982. A partir de fevereiro, o PL passará a ter 15 senadores e, se souber organizar o bloco formado por PP, Podemos e União Brasil, que reúnem 66 dos 81 parlamentares, nada o impedirá de conquistar a presidência da Casa no biênio 2023/2024 e fazer uma dobradinha no comando do Congresso (dificilmente o Centrão ficaria sem o controle da Câmara). Extinguir o orçamento secreto se tornará uma missão quase impossível se Lula for o presidente.
Entre os aliados de Bolsonaro vitoriosos no Senado estão cinco integrantes do primeiro escalão de seu governo: além de Mourão e Damares Alves, foram eleitos Marcos Pontes, o “astronauta”, Teresa Cristina, ex-ministra da Agricultura, e Rogério Marinho, à frente do Desenvolvimento Regional. Há ainda Sergio Moro e sua curiosa trajetória de “ex” a “futuro” aliado do capitão. Eleito pelo Paraná, Moro venceu à custa de uma campanha desleal contra seu padrinho político, Álvaro Dias, a quem acusou, na reta final, de ligações com o PT. Dias deixará a Casa após seis mandatos consecutivos, imolado por aquele a quem queria ver na Presidência da República. Cria cuervos y te sacaran los ojos, diz um velho ditado em língua espanhola, de tradução dispensável.
Na Câmara, as bancadas com maior crescimento foram aquelas do PL e da federação PT-PCdoB-PV. A disputa afunilada entre Lula e Bolsonaro também se refletiu nos campões nacionais de votos em números absolutos: Nikolas Ferreira, vereador e influencer eleito pelo PL em Minas Gerais, com 1,4 milhão de votos, e Guilherme Boulos, líder do movimento dos sem-teto eleito pelo PSOL, em São Paulo, com 1 milhão de votos. O atual partido do capitão, que elegeu 33 deputados em 2018, terá 99 no início da próxima legislatura, número somente inferior aos 105 eleitos pelo PSDB em 1998, ano da reeleição de FHC. O PT sobe de 54 deputados para 68, somados aos seis eleitos respectivamente por PV e PCdoB, o que eleva a 80 o número de integrantes da bancada. A federação formada por PSOL e Rede também registrou crescimento, mais modesto, de 11 para 14 cadeiras.
Em meio à guerra, legendas tradicionais encolheram. O PDT de Ciro Gomes passou de 28 para 17 deputados e o PSB perdeu mais da metade dos seus representantes, de 30 para 14 parlamentares. O PSDB, que havia encolhido em 2018, derreteu ainda mais, de 29 para 13. O moribundo PTB de Roberto Jefferson e Padre Kelmon quase foi exorcizado pelos eleitores: terá apenas um representante. Exceções à regra foram o MDB, que cresceu de 34 para 42 deputados, e o PSD, de 35 para 42.
Na análise de Toninho do Diap, com a composição desenhada pelas urnas, o próximo Congresso promete ser uma pedra no sapato do futuro governo em caso de vitória de Lula ou uma “mãe” se ocorrer a reeleição de Bolsonaro. “A atuação na próxima legislatura vai depender de quem venha a ser o presidente da República. Se for Lula, conseguirá trazer mais para o centro. Se for Bolsonaro, necessariamente vai mais para a direita.” O analista ressalta, no entanto, um viés: “Será bem pior do que era antes em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente”.
Com base em sua experiência na análise da formação das bancadas e da atuação dos parlamentares, o especialista diz acreditar que, caso se confirme a vitória de Lula nas presidenciais, não será impossível uma composição em nome da governabilidade: “Como o centro-direita parlamentar é mais pragmático do que programático, é possível que ele consiga atrair apoio mesmo nos partidos do atual núcleo duro de Bolsonaro”. O próprio PL seria um caso. “O partido hoje é dividido em dois grupos”, avalia. “São 35% bolsonaristas de raiz e 65% pragmáticos. É gente que apoiou o PT no passado e não terá dificuldade em voltar a apoiar. Mas, pela conveniência política do momento, a melhor opção para o PL é apoiar Bolsonaro. O mesmo vale para o PP e o Republicanos.”
No caso dos grupos parlamentares temáticos, haverá novo crescimento das bancadas da Bala e da Bíblia e ligeira redução de deputados ligados às causas ambientais, de direitos humanos ou identitárias. Os deputados oriundos das polícias ou das Forças Armadas pularam de 28 eleitos em 2018 para 38 no último domingo. A estrela da Bancada da Bala será o ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, do PL, segundo deputado mais votado no Rio de Janeiro. A única parlamentar eleita do setor e considerada progressista é a delegada Adriana Accorsi, do PT de Goiás. “Na frente parlamentar da segurança pública havia pautas que eram positivas na perspectiva de proteção dos direitos humanos, mas com essa ampliação a bancada terá majoritariamente uma visão repressiva”, diz Toninho.
Na seara ambiental, São Paulo deu uma tenebrosa sinalização de como será desigual o embate parlamentar ao eleger o ex-ministro Ricardo Salles, do PL, com o triplo de votos da também ex-ministra Marina Silva, principal aposta da Rede. Também não houve aumento significativo na bancada indígena, que perdeu Joênia Wapichana, da Rede, mas terá Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, ambas vitoriosas pelo PSOL. Haverá aumento no número de deputados pretos ou pardos, que passaram de 123 para 132, com destaque para as deputadas Dandara, Carol Dartora e Jack Rocha, todas do PT, primeiras mulheres pretas eleitas para a Câmara, respectivamente, pelos estados de Minas Gerais, Paraná e Espírito Santo. O número de deputadas do sexo feminino também aumentou de 77 para 91 deputadas, e outra boa notícia foi a eleição das duas primeiras parlamentares trans: as vereadoras Erika Hilton, do PSOL de São Paulo, e Duda Salabert, do PDT de Minas.
“Os parlamentares identificados com as pautas das minorias sociais serão poucos, mas cumprirão um papel importante no sentido de levar ao conhecimento da sociedade as ameaças que o grupo majoritário de deputados eleitos representa”, diz o analista do Diap. “As forças antiprogressistas serão majoritárias no Parlamento, mas as bancadas minoritárias serão fundamentais para fazer o contraponto político e permitir que a sociedade de algum modo atue como freio aos muitos parlamentares fundamentalistas que foram eleitos.”
Também importante para definir o desempenho dos partidos de menor porte em relação à cláusula de barreira, as eleições para o Congresso trouxeram notícias boas para uns e ruins para outros. Enquanto legendas como PCdoB, PV, Rede e Cidadania viram o êxito de sua estratégia de se aliar a partidos maiores em uma federação, outras como Novo, PTB, PSC, PROS, Solidariedade e Patriota não atingiram os 2% dos votos válidos e perderão, a partir de 2023, o acesso ao fundo partidário e à propaganda política no rádio e na televisão. Nesse bloco, destaque negativo para a agremiação de Felipe D’Ávila e Romeu Zema, que encolheu de oito para três deputados e simboliza o fracasso do discurso da “nova política” em voga em 2018. Agora, as legendas terão de negociar fusões ou incorporações entre si para tentar sobreviver, como exige a “velha política”.
Fonte: CartaCapital