A quarta onda de esquerda na América Latina desde a revolução cubana é social-democrata

Por Vijay Prashad*

Vijay Prashad – People's World

A atual onda de vitórias eleitorais da esquerda e centro-esquerda não reflete inteiramente a situação dos anos 2000, quando uma “maré rosa” se desenvolveu após o avanço da esquerda na Venezuela liderada por Hugo Chávez. Naquela época, os Estados Unidos estavam focados no Médio Oriente, os preços das mercadorias estavam altos e havia um sentimento geral em toda a região contra os regimes militares e neoliberais anteriores.

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Em 7 de agosto de 2022, a Colômbia terá um novo presidente (Gustavo Petro) e um vice-presidente (Francia Márquez), ambos defensores dos movimentos de esquerda do país. Eles formarão o primeiro governo de esquerda desde que o país conquistou a sua independência em 1810. Dois meses depois, em 2 de outubro, o povo brasileiro votará na primeira volta das suas eleições presidenciais. As pesquisas mostram claramente que o ex-presidente e líder de esquerda, Lula, tem vantagem sobre o titular de direita Jair Bolsonaro; há até uma sugestão de que Lula possa vencer na primeira volta e impedir a votação da segunda volta em 30 de outubro. Se Lula vencer, então, dos vinte países da América Latina, mais da metade teria um governo de centro-esquerda para a esquerda.

A atual onda de vitórias eleitorais da esquerda e centro-esquerda não reflete inteiramente a situação dos anos 2000, quando uma “maré rosa” se desenvolveu após o avanço da esquerda na Venezuela liderada por Hugo Chávez. Naquela época, os Estados Unidos estavam focados no Médio Oriente, os preços das matérias- estavam altos e havia um sentimento geral em toda a região contra os regimes militares e neoliberais anteriores. Chávez liderou um processo conhecido como bolivarianismo que combinou a integração regional com políticas voltadas para enfrentar problemas sociais profundamente enraizados no hemisfério. Era amplamente reconhecido que a fome não poderia ser abolida, por exemplo, sem um afastamento da dependência dos mercados de capitais do Atlântico Norte e da presença militar dos EUA.

As atuais vitórias eleitorais ocorreram em condições muito mais incertas do que na década de 2000. Por um lado, o imperialismo dos EUA é visto como muito mais frágil do que era há vinte anos, com a debilidade da economia dos EUA, a tentativa desesperada de enfraquecer a China e a Rússia pelos Estados Unidos e um clima crescente em todo o mundo que já não procura seguir os ditames de Washington. É devido a esses desenvolvimentos que se pode ver um novo dinamismo na América Latina, com o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador  evidenciando do tipo de pensamento independente sobre as relações externas que agora é comum da África do Sul à Indonésia.

Mas, por outro lado, a crise inflacionária global, os problemas do crédito e da dívida e a má educação das ameaças de Washington deteve a mão de muitos desses governos para desafiar frontalmente o imperialismo dos EUA. Presos entre uma Guerra Fria imposta pelos EUA contra a China e a Rússia, muitos dos países da América Latina preferem ficar de fora, esperar pela recuperação económica geral e, enquanto isso, fornecer esquemas básicos de bem-estar social como o limite de suas ambições. Não estamos, portanto, a ver o bolivarianismo na sua segunda fase.

Brasil e Colômbia são bons exemplos do novo momento, embora essa orientação geral seja visível tanto no Chile como no México. Nesses países, as classes dominantes – totalmente apoiadas pelo imperialismo norte-americano – permanecem no controlo da economia. Enquanto o governo de centro-esquerda de Gabriel Boric no Chile disse que nacionalizaria as minas de cobre, a sua mão foi detida por esta poderosa burguesia (este ano é o cinquentenário da nacionalização do cobre no Chile pelo presidente Salvador Allende, cujo governo foi derrubado num golpe no ano seguinte). As velhas classes capitalistas mantêm as velhas hierarquias sociais, entrelaçando-as com o poder do imperialismo norte-americano e o narcocapitalismo de nossos tempos. Ao  governo de Petro na Colômbia, por exemplo, já foi dito pelas forças armadas que não vão tolerar nenhuma reforma básica (o general Eduardo Zapateiro renunciou no final de julho para evitar ter de empossar Petro como presidente – essa é a atitude).

Finalmente, por causa das políticas de austeridade e do legado das ditaduras militares, a classe operária e o campesinato no hemisfério estão relativamente fragmentados e desorganizados. A sua incapacidade de conduzir uma agenda radical em muitos desses países tem sido vista repetidamente. Por exemplo, no Peru, apesar da eleição de Pedro Castillo, de esquerda, do Perú Libre, para a presidência, os movimentos sociais e políticos simplesmente não conseguiram responsabilizá-lo, porque o seu governo se afastou dos seus compromissos. A crise na Argentina em torno do regresso ao FMI também mostra a limitação das forças populares para conduzir a sua agenda por meio de um governo de esquerda. Portanto, é apropriado considerar as possibilidades de ser meramente social-democrata e não socialista neste período.

A doutrina Monroe e a revolução cubana

Duzentos anos atrás, as forças de Simón Bolívar derrotaram os imperialistas espanhóis na Batalha de Carabobo e abriram um período de independência para a América Latina. No ano seguinte, em 1823, o governo dos Estados Unidos anunciou a Doutrina Monroe. À superfície, a Doutrina Monroe apenas diz que a Europa não tem o direito de intervir nas Américas. No entanto, uma leitura atenta do texto, os debates nos EUA em torno desse texto e o uso dessa Doutrina indicam que era a constituição do imperialismo norte-americano, agora já não apenas para as Américas, mas uma Doutrina Monroe Global. Por esta Doutrina, os Estados Unidos  conferiram-se o direito de intervir política e militarmente nos países das Américas quando e onde quisessem. Foi com base nessa doutrina que os EUA intervieram repetidamente na América Central, no Caribe, e na América do Sul, derrubando governos em 2009 (Honduras) e tentando derrubar governos atualmente (Cuba, Nicarágua, Venezuela).

A resistência à Doutrina Monroe surgiu quando ficou claro que os EUA a usariam como uma licença para intervir no hemisfério e não para impedir o imperialismo europeu. Afinal, quando a Grã-Bretanha conquistou as Ilhas Malvinas da Argentina em 1833, os EUA não se opuseram aos europeus, e nem os EUA impediram a entrada de capital europeu para subordinar os novos estados das Américas (descrito em grande detalhe por Eduardo Galeano na sua obra Veias Abertas da América Latina, 1971). A intervenção dos EUA no México em 1846-1848 resultou na anexação de um terço do território soberano do México, uma violação dos direitos territoriais e nacionais do México. Esses eventos – Malvinas, México – mostram a verdadeira face da Doutrina Monroe, instrumento do imperialismo norte-americano no hemisfério que foi praticamente adotado pela Organização dos Estados Americanos, fundada em 1948, a que Fidel Castro chamou  Ministério das Colónias.

A Revolução Cubana de 1959 foi um desafio direto à Doutrina Monroe. A Revolução afirmou os conceitos de soberania (contra a intervenção dos EUA) e dignidade (para o crescimento social do povo). Inspirado no exemplo da Revolução Socialista Cubana, onda após onda revolucionária inundou a América Latina com esperança contra o imperialismo dos EUA e por um avanço da esquerda. A primeira onda foi esmagado pela violência extrema contra o exemplo cubano através dos golpes militares organizados pelo programa norteamericano chamado Operação Condor. Esses golpes do Brasil (1964) à Argentina (1976) ficaram na mão da alternativa cubana. O bloqueio ilegal dos EUA contra Cuba não impediu que a ilha acelerasse o seu socialismo e expandisse o seu internacionalismo. A segunda onda de esquerda – das revoluções da Nicarágua e Granada de 1979 – abriu uma nova esperança, que foi mais uma vez contestada pelos imperialistas através de suas “guerras sujas” na América Central e pela aliança do imperialismo com os narcoterroristas da região.

terceira onda veio com a eleição de Chávez em 1999 e o avanço do que ficou conhecido como a ‘maré rosa’ na América Latina. A maré foi minada pela guerra híbrida ilegal dos EUA contra a Venezuela, pela queda nos preços das mercadorias e pela fraqueza dos movimentos sociais e políticos para contestar a burguesia entrincheirada em muitos países da região. Em cada uma dessas ondas, brilhou o exemplo de Cuba.

Estamos agora na quarta onda um ressurgimento da esquerda desde a Revolução Cubana de 1959. A onda é significativa, mas não deve ser exagerada. Mesmo os governos de centro-esquerda mais brandos serão forçados a enfrentar as graves crises sociais no hemisfério, crises agravadas pelo colapso dos preços das mercadorias e pela pandemia. As políticas contra a fome, por exemplo, exigirão recursos oriundos das diversas burguesias domésticas ou dos direitos arrecadados pela extração de recursos naturais. De qualquer forma, esses governos serão forçados a um confronto tanto com sua própria burguesia como com o imperialismo norte-americano. O teste desses governos, portanto, não estará apenas no que eles dizem sobre esta ou aquela questão (como a Ucrânia), mas como eles agem diante da recusa das forças do capitalismo em resolver as grandes crises sociais do nosso tempo.

*Historiador marxista indiano

Foto: Javier Torres/AFP