Por Daniel Camargos*, de Redenção e Tucumã (PA)
Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch
Você não sabe disso, mas ao ler esta reportagem você pode estar usando ouro extraído ilegalmente de terras indígenas brasileiras. Celulares e computadores das marcas Apple e Microsoft, bem como os superservidores do Google e da Amazon, têm filamentos de ouro em sua composição. Parte desse metal saiu de garimpos ilegais na Amazônia, passou pela mão de atravessadores e organizações até chegar nos dispositivos das quatro empresas mais valiosas do mundo, revela uma investigação da Repórter Brasil.
Documentos obtidos pela reportagem confirmam que essas gigantes da tecnologia compraram, em 2020 e 2021, o metal de diversas refinadoras, entre elas a italiana Chimet, investigada pela Polícia Federal por ser destino do minério extraído de garimpos clandestinos da Terra Indígena Kayapó, e a brasileira Marsam, cuja fornecedora é acusada pelo Ministério Público Federal de provocar danos ambientais por conta da aquisição de ouro ilegal. A extração mineral em terras indígenas brasileiras é inconstitucional, apesar dos esforços do governo Jair Bolsonaro (PL) para legalizá-la.
Em meio à maior floresta tropical do mundo, o rastro de destruição dessa exploração clandestina é crescente e imensurável. Enquanto o desmatamento e a contaminação dos rios são visíveis, o garimpo pode estar matando pessoas por mercúrio (um metal tóxico) e vem atraindo o crime organizado. Ataques armados de garimpeiros a indígenas têm sido revelados pela imprensa nos últimos anos, como o que aconteceu em maio de 2021 em uma comunidade Yanomami.
Apesar de os órgãos investigadores brasileiros terem provas de que Chimet e Marsam compraram, de maneira indireta, ouro extraído ilegalmente de alguns desses territórios demarcados, as duas refinadoras são certificadas e consideradas “aptas” a vender nos Estados Unidos e na Europa – regiões que exigem maior transparência dos fornecedores de minérios, além de critérios mais rígidos no combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao abuso dos direitos humanos.
A Repórter Brasil teve acesso aos documentos que Apple, Google, Microsoft e Amazon são legalmente obrigadas a enviar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (Securities and Exchange Commission, ou SEC, na sigla em inglês) com a lista de seus fornecedores, não apenas de ouro, mas também de estanho, tungstênio e tântalo. Entre centenas de refinadoras, constam nas relações a brasileira e a italiana. Os documentos referem-se às aquisições feitas em 2020 e 2021, mas relatórios anteriores a estes também apresentavam as duas refinadoras como fornecedoras.
Empresas listadas na Bolsa de Valores estadunidense devem informar anualmente se usam em suas cadeias produtivas os chamados “minérios de conflitos” (ou minérios oriundos de áreas de risco), exigência criada por uma lei aprovada em 2010 por conta da guerra civil da República Democrática do Congo, onde a exploração mineral ainda financia grupos armados (leia mais sobre o assunto aqui). E o uso do metal vai além das joias e das barras compradas por grandes bancos: produtos eletrônicos responderam por 37% do ouro usado nos Estados Unidos em 2019, de acordo com o Sumário de Comidities Minerais elaborado pelo Serviço Geológico dos EUA.
As certificadoras da Chimet e da Marsam são, respectivamente, a LBMA (The London Bullion Market Association) e a RMI (Responsible Minerals Initiative), organizações que têm como objetivo garantir maior transparência para o setor minerário, “buscar engajamento corporativo sustentável” e realizar auditorias para combater violaçãoes de direitos humanos, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, segundo o site das próprias organizações.
Um dos problemas é que, apesar dos episódios de violência provocados pelo garimpo ilegal na Amazônia, essas organizações não consideram o Brasil uma “área de risco”. Enquanto as quatro principais empresas de tecnologia lucraram, juntas, US$ 74 bilhões somente no quarto trimestre de 2021 (quase duas vezes o PIB anual de Camarões), elas parecem não se preocupar com a real origem do ouro que utilizam – nem com os conflitos que ele pode estar alimentando em território brasileiro.
“Tanto a SEC quanto as empresas americanas fecham os olhos para a origem do ouro que chega no país”, lamenta Payal Sampat, diretora do programa de mineração da Earthworks, organização com sede em Washington D.C. que trabalha com os impactos da atividade. A especialista também critica o trabalho da RMI: “não são confiáveis”.
O caso da certificadora cujo nome em português seria “iniciativa dos minerais responsáveis”, a RMI, merece atenção. Ela realiza auditorias de modo a fornecer “informações [das refinadoras] para que as empresas possam tomar decisões de abastecimento mais embasadas”. No entanto, “não certifica ou promove refinarias como ‘confiáveis e sustentáveis’, conforme a entidade esclareceu em nota. A organização tem, como associadas, 400 empresas mundialmente famosas de diversos setores: tecnologia, aviação, indústria automobilística e até empresas de entretenimento. Todas potenciais compradoras da Chimet e da Marsam.
“O Brasil não dispõe de mecanismos confiáveis de rastreabilidade do ouro, por isso há um risco grande de se certificar metal contaminado por violações de direitos humanos em terras indígenas da Amazônia”, afirma Rodrigo Oliveira, assessor jurídico do ISA (Instituto Socioambiental), destacando um estudo que mostrou que 28% do ouro extraído no Brasil tem origem comprovadamente ilegal. “Neste cenário, o papel da SEC é fundamental, uma vez que sociedade e investidores confiam na transparência e veracidade das informações por ela publicadas”.
Procurado pela Repórter Brasil, o governo estadunidense, por meio da SEC, disse que não vai se pronunciar.
A RMI afirmou que entrou em contato com a refinadora brasileira pedindo ações corretivas relacionadas ao escopo da auditoria. “Esse processo incluiu a revisão das reclamações como parte da última auditoria da Marsam, um plano de ação corretiva para abordar quaisquer lacunas identificadas e monitoramento futuro”, disse em nota. “Se a Marsam não fechar o plano de ação corretiva com sucesso dentro do prazo estipulado, conforme verificado por um avaliador terceirizado, ela será removida da lista de conformidade da RMI”, afirmou. A certificadora alegou contratos de confidencialidade para não dar mais informações sobre quais seriam essas ações corretivas e nem os prazos estipulados. Leia aqui as respostas na íntegra.
A certificadora inglesa LBMA disse que está ciente das investigações da Polícia Federal, que entrou em contato com a Chimet e que está revisando a auditoria da refinadora italiana. Porém, antecipou que os auditores não encontraram falhas nas práticas de fornecimento da empresa ou na maneira como ela respondeu às alegações contra seus fornecedores. “O LBMA acredita que essa resposta é consistente”. A LBMA também entende que a Chimet cooperou com a investigação policial e que não enfrenta acusações relacionadas a esse assunto.
O maior alvo dos policiais federais foram os fornecedores da Chimet, os donos da empresa CHM do Brasil. Trata-se de Giácomo Dogi, que foi preso em outubro, e o seu pai, Mauro Dogi, investigados por suposta participação em uma organização criminosa que extrai ouro ilegal da Terra Indígena Kayapó. Os dois italianos, que vivem no Brasil, forneciam ouro para a refinadora italiana, segundo revelam transações financeiras entre as duas empresas obtidas pelos policiais federais na Operação Terra Desolata.
Das quatro big techs, apenas a Apple tomou uma atitude ao ser questionada pela Repórter Brasil. No primeiro contato, em maio, a empresa enviou uma nota dizendo que os seus “padrões de fornecimento responsável são os melhores do setor e proíbem estritamente o uso de minerais extraídos ilegalmente” e que “se uma fundição ou refinadora não conseguir ou não quiser atender aos nossos padrões rígidos, nós o removeremos de nossa cadeia de fornecimento”. Dois meses depois desse primeiro contato, a reportagem voltou a procurar a Apple, que, afirmou em nota ter removido a Marsam da lista de fornecedores. A Chimet, no entanto, permanece apta.
Google, Microsoft e Amazon disseram que não comentariam, mas não negaram terem comprado da Chimet e da Marsam. Os emails enviados pela reportagem detalhavam os diversos danos socioambientais provocados pelo garimpo ilegal na Amazônia, bem como a investigação da Polícia Federal e dos procuradores da República.
Após a publicação da reportagem, o Google enviou uma nota: “O Google requer que fornecedores sigam nosso Código de Conduta do Fornecedor e busquem minérios apenas de empresas certificadas e livres de conflito, como as auditadas pelo Processo de Garantia de Minerais Responsáveis (RMAP, na sigla em inglês) da Iniciativa Minerais Responsáveis (RMI – antes conhecida como Iniciativa de Fornecimento Livre de Conflitos), ou outro programa de avaliação de terceiros.”
‘Trabalhamos para proteger o meio ambiente’
Apesar do silêncio das três gigantes da tecnologia, os relatórios entregues ao governo estadunidense revelam as melhores intenções de sustentabilidade, transparência e responsabilidade socioambiental.
“Estamos comprometidos em evitar o uso de minerais que incitaram conflitos e esperamos que nossos fornecedores apoiem nossos esforços para identificar a origem do ouro, estanho, tungstênio e tântalo usados em produtos que fabricamos ou contratamos para fabricar”, diz a Amazon no documento enviado à SEC.
Já a Microsoft afirma ter uma “abordagem holística para o fornecimento responsável de matérias-primas enquanto trabalha para o uso de minerais que não são oriundos de áreas de conflito em seus dispositivos”.
A Alphabet, controladora do Google, explica no relatório anual que se envolve ativamente com a RMI e que analisa e monitora as respostas dos fornecedores para além do preenchimento do relatório-modelo da associação. “Fizemos o acompanhamento para identificar informações incompletas ou inconsistentes em relação às informações que esperaríamos do fornecedor”, diz no documento.
No documento de 25 páginas da Apple, a empresa ressalta o alinhamento com as políticas de direitos humanos e afirma que “trabalha para proteger o meio ambiente e salvaguardar o bem-estar de milhões de pessoas afetadas por nossa cadeia de suprimentos, desde a mineração até as instalações onde os produtos são montados”.
O relatório é de 31 de dezembro de 2021, ou seja, foi publicado dois meses depois da investigação da Polícia Federal que envolveu a Chimet e quatro meses depois da Ação Civil Pública contra a FD’Gold (fornecedora da Marsam) vir à tona. Vale destacar que as investigações da Polícia Federal identificaram que o ouro ilegal foi extraído da Terra Indígena Kayapó desde 2015.
“Aqui no Norte, somos cúmplices da destruição do garimpo no Brasil”, lamenta Christian Poirier, coordenador da Amazon Watch, organização que também investiga o setor. Para ele, apesar da dificuldade de rastreabilidade do minério, há pouca pressão por melhorias e maior transparência. Sobre as big techs, ele conclui: “Talvez seja hora de inverter o ônus da prova: essas empresas podem provar que não estão vinculadas a fluxos potencialmente ilegais de ouro do Brasil?”.
Do luxo italiano ao lobista brasileiro
A Chimet é uma gigante do setor de refino de metais e ocupa a posição número 44 entre as empresas que mais faturam na Itália. Em 2020, ela teve a maior receita da sua história: mais de 3 bilhões de euros (cerca de R$ 18 bilhões), um aumento de 76% em relação ao ano anterior, como detalhou a Repórter Brasil em investigação publicada em fevereiro.
O inquérito da Polícia Federal, a que a reportagem teve acesso, é baseado em relatórios de informações econômicas do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). A análise de dados confidenciais constatou que a Chimet remeteu, entre setembro de 2015 e setembro de 2020, R$ 2,1 bilhões para a CHM do Brasil, empresa que, por sua vez, é considerada pelos policiais federais como uma das principais “destinatárias do ouro ilegal vindo de terras indígenas no sul do Pará”.
A defesa dos italianos da CHM foi feita por uma das maiores bancas de advocacia do Brasil, que tem entre os sócios o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. A nota enviada pelo escritório sustenta que a CHM: “nunca adquiriu ouro proveniente de terras indígenas”. Diz ainda que a alegação não foi provada pela Polícia Federal e que: “não passou de mera suposição”. (leia a íntegra da resposta).
Para os investigadores, no entanto, as transações financeiras “demonstram a falta de preocupação da Chimet em comprar ouro legalizado”, afirma o inquérito, “ao enviar valores elevados para garimpeiros, sem permissão de mineração, antecipando a entrega de futuros bens, como joias, pedras e metais preciosos”.
Procurada, a Chimet disse que rompeu as relações comerciais com a CHM assim que soube da investigação da Polícia Federal, em 29 de outubro de 2021. Quando questionada pela Repórter Brasil em janeiro, a gigante italiana alegou que o volume adquirido de ouro do Brasil era irrelevante em relação ao total (70 toneladas) refinado em sua fábrica.
Especialistas, no entanto, revelam a peculiaridade da cadeia: um grama de ouro ilegal, ao ser refinado, é misturado a todo o restante, contaminando toda a produção.
Esse também é o caso da Marsam, que tem como um de seus fornecedores a FD’Gold DTVM (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários), acusada pelo Ministério Público Federal de comprar ouro extraído de terras indígenas, principalmente dos territórios dos povos Kayapó e Munduruku, no Pará. A FD’Gold também é uma das principais compradoras do ouro ilegal da Terra Indígena Yanomami, segundo outra investigação da Polícia Federal, revelada pela Repórter Brasil.
“A ré FD’Gold DTVM, portanto, promoveu compras de produtos, insumos, marcadas pela ilegalidade. Pior: obteve ganhos econômicos com essa ilegalidade, incorporando o minério ilegal em suas atividades econômicas regulares”, afirmam os procuradores na ação civil pública. O MPF pede a condenação da FD’Gold, a paralisação das atividades da empresa no Pará e o pagamento de uma indenização por danos materiais e socioambientais de R$ 1,75 bilhão.
O fundador da FD’Gold é Dirceu Frederico Sobrinho, que além de presidente da Anoro (Associação Nacional do Ouro), é um dos principais lobistas para legalizar o garimpo em terras indígenas. Sobrinho transita com desenvoltura pelos gabinetes de Brasília: já esteve com o vice-presidente Hamilton Mourão e com ministros defendendo a exploração mineral em terras indígenas. Também foi candidato a 1° suplente do ex-senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) em 2018, quando declarou uma fortuna de R$ 20,3 milhões.
Apesar de Sobrinho já ter sido sócio da Marsam, quem hoje comanda a refinadora é a sua filha. A empresa compra pelo menos um terço do ouro que processa “em família”, ou seja, da FD’Gold, segundo informou um consultor externo da empresa, André Nunes, a uma reportagem da Associated Press.
Procurado, Nunes primeiramente negou relação entre a Marsam e a FD’Gold, mesmo com o fato de que seus sócios têm relação direta de parentesco. Em um segundo contato, Nunes disse que a FD’Gold é um dos “diversos clientes no portfólio da Marsam” e que a relação comercial é de “prestação de serviços”. A Repórter Brasil teve acesso a um documento, de julho de 2021, em que Nunes afirma que 36% do ouro processado pela Marsam vem da FD’Gold.
Procurados, tanto Sobrinho quanto a FD’Gold não se manifestaram.
O ouro ilegal, extraído de garimpos clandestinos ou de áreas protegidas, é “legalizado” no momento em que as DTVMs compram o produto. O vendedor do ouro (normalmente garimpeiros ou cooperativas de garimpeiros) preenche uma nota fiscal em papel e autodeclara de onde veio aquele minério – os fraudadores podem dizer que a origem é um garimpo legalizado, mesmo que não o seja. O problema é que a lei 12.844/2013, que regula a compra, venda e o transporte do produto no país, afirma que a declaração de origem do metal acontece a partir da “boa fé do vendedor” – isentando, dessa forma, qualquer responsabilidade dos compradores.
Já legalizado, o metal então pode ser vendido a grandes refinadoras, joalherias, bancos, governos e, inclusive, a algumas das marcas mais famosas do mundo. Ou seja, se você estava pensando em trocar a marca do seu celular, talvez não exista para onde correr. O seu carro, a sua câmera ou o filme de animação que você assiste vêm de empresas que podem estar adquirindo, ainda que de forma indireta, ouro de terras indígenas brasileiras.
*Colaboraram Mariana Della Barba e Gisele Lobato
Edição: Ana Magalhães
NOTA DA REDAÇÃO: O texto foi alterado no dia 26/07 às 16h31 para inserir nota enviada pelo Google.