A Justiça do Trabalho sempre, de algum modo, serviu ao capital

Por Ayrton Centeno e Fabiana Reinholz, do Brasil de Fato RS

Foto: Guilherme Santos/Sul 21

Neste 1º de Maio, como está o mundo do trabalho no Brasil assolado pelo desemprego, a inflação, o achatamento salarial e a extinção dos direitos e a piora das condições de vida dos (as) trabalhadores (as)? É sobre este quadro dramático que o Brasil de Fato RS conversa com a juíza do trabalho, Valdete Souto Severo. Uma data para refletir sobre a impossibilidade de apostar em um modelo de sociedade no qual é preciso trabalhar, no mais das vezes, até a exaustão para sobreviver.

Doutora em Direito do Trabalho pela USP, pós-doutora em Ciência Política pela UFRGS, Valdete Souto Severo é autora de livros como Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho e A Perda do Emprego no Brasil. Ela fala sobre o fenômeno “Você S.A.”, onde o trabalhador precarizado julga-se um “empreendedor” e quais as raízes desta compreensão. Trata também do papel histórico da Justiça do Trabalho e do peso da escravidão nas relações sociais e trabalhistas do Brasil de 2022.

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS – Chegamos a mais um 1º de Maio. Há o que comemorar do ponto de vista do (a) trabalhador (a)?

Valdete Souto Severo – Sempre há o que comemorar, estamos diante de uma realidade diferente em relação à pandemia, apesar de todo o boicote promovido pelo governo federal quanto às medidas sanitárias, e esse é sem dúvida um fato positivo. Da perspectiva de quem vive do trabalho, porém, a vida segue cada vez mais desafiadora, pois são recordes os números de desemprego, informalidade e endividamento das famílias, sem falar no fato de que as pessoas estão trabalhando cada vez mais horas por dia, com menos garantias e menor remuneração. O 1º de Maio, na quadra atual da história brasileira, revela-se necessariamente como um dia de luta por mudanças nas atuais condições de existência, permitindo ou mesmo exigindo uma reflexão profunda sobre a impossibilidade concreta de seguirmos apostando em um modelo de sociedade no qual é preciso trabalhar, no mais das vezes até a exaustão e em péssimas condições, para sobreviver. 

BdFRS –  Como analisa o mercado de trabalho atual? 

Valdete – Acho essa expressão complicada. “Mercado” de trabalho dá a impressão de algo homogêneo e desumanizado. Na realidade, é preciso analisar as relações de trabalho, que são tão diversas e que têm sido alvo de precarização cada vez maior. Veja, até mesmo a tecnologia, que devia ser desenvolvida para tornar melhores as condições de vida, tem sido um elemento de aprofundamento da extração de trabalho em condições que tornam a vida mais difícil. 

O teletrabalho, “privilégio” de quem tem condições materiais para isso, praticamente elimina a distinção entre tempo de descanso e tempo de trabalho, o que significa a colonização integral do tempo de vida pelo trabalho necessário, em prejuízo de todo o resto: convívio familiar, envolvimento político, afetos, etc. E se pensarmos esse tal “mercado” da perspectiva das mulheres, em especial das mulheres negras, outras questões precisam ser discutidas, como o excesso de trabalho em condições de quase absoluto desamparo, pois são elas que atuam em profissões nas quais o direito do trabalho simplesmente não entra, em especial nas atividades ligadas ao cuidado, como trabalho em âmbito doméstico, cuidado de idosos, atividades em estética, trabalho sexual. 

A quantidade de famílias vivendo nas ruas das grandes cidades, porque não conseguem mais pagar aluguel, algo que já havia sido significativamente resolvido no Brasil nas últimas décadas (embora nunca eliminado) é outra realidade indissociável de qualquer análise do que perversamente se chama “mercado” de trabalho.

Por fim, é preciso considerar o estrangulamento desse mercado, sob o falso argumento de que não há mais centralidade do trabalho. Seguimos sendo uma sociedade de trabalho obrigatório, em que quem vende força de trabalho o faz em troca de dinheiro para poder viver. Há, pois, centralidade do trabalho subordinado. Os disfarces (terceirização, uberização, empreendedorismo) é que precisam ser compreendidos e enfrentados. Para isso, porém, é preciso abandonar o perverso discurso do mal menor, pelo qual mesmo pessoas supostamente comprometidas com uma regulação jurídica que permita trabalho decente acabam compactuando com práticas precarizantes. Talvez o exemplo melhor disso seja a MP 936, transformada em Lei 14.020 (trata da redução proporcional de jornada e de salários ou suspensão do contrato de trabalho) e declarada constitucional pelo STF. 

Ora, reduzir salário, em uma realidade como a nossa, em que a maioria das pessoas recebe entre um e dois salários mínimos, durante uma crise sanitária de proporções catastróficas como a que vivemos, é condenar trabalhadoras e trabalhadores ao adoecimento, pois o resultado é a impossibilidade de comprar comida saudável, remédio, agasalho, etc. Ainda assim, até mesmo as centrais sindicais acabaram aceitando esse “mal menor”, e optaram por brigar apenas pela exigência de negociação coletiva. O resultado foi a aprovação da possibilidade de redução de salário por “acordo” individual e boa parte das empresas que aderiram a essa prática, ainda assim promoveram, na sequência, despedidas coletivas, deixando um número impressionante de pessoas sem condição de sobrevivência. 

BdFRS –  Uma grande massa de trabalhadores entra hoje no mercado de trabalho por conta própria – sem descanso remunerado, sem férias, sem aviso prévio, sem 13º salário, sem licença médica, sem previdência e trabalhando sábados, domingos e feriados. No entanto, muitos desses trabalhadores por conta própria se consideram “empreendedores”. Como foi possível fazê-los acreditar nisso? 

Valdete – Essa é uma pergunta interessante, cuja resposta transita por toda a base filosófica da modernidade. O avanço representado pela superação dos dogmas medievais, também representou uma aposta no ser humano como “medida de todas as coisas”. Algo que, como (a filósofa alemã de origem judaica) Hannah Arendt refere, leva, no limite, ao desespero, porque seguimos sabendo da fragilidade de nossa condição humana, ou seja, de que apostarmos nos seres humanos como fontes de conhecimento, seres melhores que os demais, capazes de dissecar e responder aos enigmas da existência é uma espécie de autoengano. 

Pois bem, é sobre esse autoengano que toda a modernidade se funda, o que implica uma ruptura radical com os saberes ancestrais, com a compreensão coletiva das coisas e a construção coletiva dos conhecimentos. Em nosso caso, esse processo está intimamente ligado ao colonialismo predatório de que fomos alvo, um processo histórico profundamente empenhado em destruir a cultura originária, que não tinha esses mesmos fundamentos. Aí está, na minha percepção, a raiz de uma racionalidade individualista, em que temos dificuldade de compreender que nosso destino está implicado com o de todos os outros seres. É parte disso a idealização e prática de um convívio social fundado na troca de trabalho por capital. 

Ou seja, ter que trabalhar por salário, como condição (única para a maioria das pessoas) de sobrevivência implica também compreender o próprio tempo de vida, a energia física e mental, como mercadorias. Aqui, recupero Marx, segundo o qual vender tempo de vida é de tal modo permitir e incentivar o estranhamento de si, que passamos a estranhar uns aos outros, a percebermos os demais seres também como coisas descartáveis. Claro que estou simplificando, em razão do espaço dessa resposta, mas não há como compreender a facilidade com que se adota a lógica do “Você S/A”, acreditando-se empreendedor quando se é, em verdade, trabalhador precarizado, completamente dependente da possibilidade de troca de trabalho por capital, sem retomar esse fio. Um fio que tece uma história que apaga a nossa condição de interdependência para, em seu lugar, forjar um conceito (e uma prática) de autonomia que, na realidade da vida de quem depende da própria força de trabalho para viver, traduz-se como abandono à própria sorte. 

Algo enlouquecedor, porque o fracasso passa a ser visto como incompetência, mesmo que o sucesso seja impedido pelas próprias características de um sistema que não é para todos. Daí porque pessoas que trabalham 15 horas por dia e que não podem adoecer porque não têm acesso ao sistema de Previdência social nem dinheiro para pagar pelo atendimento privado se dizem mais felizes do que se tivessem de trabalhar como empregadas. E elas realmente acreditam nisso, não apenas porque são levadas a crer, por uma propaganda ideológica fartamente reproduzida nesse sentido, mas porque se trata de uma ilusão que dialoga com esse imaginário moderno, que responde a essa falsa noção de autonomia. O grande problema é a consequência física, emocional e social dessa ilusão, que nos deixa a todas cansadas, exaustas, sem energia para pensar e atuar de forma política. E gera essa dificuldade que temos de pensar politicamente, no sentido mais amplo e profundo do termo, de pensar o presente e a ausência de sentido em uma vida dedicada apenas à sobrevivência física, e mesmo de pensar o futuro, e a destruição ambiental que o interdita. É importante, portanto, falar sobre isso, compreender as bases profundas de uma cultura que permite esse tipo de ilusão.


Geralmente, os 40% mais pobres se ocupam no mercado de trabalho em atividades informais / AFP

BdFRS – Como se explica que, no Brasil do século 21, o país continua registrando flagrantes e condenações por trabalho análogo à escravidão?

Valdete – A explicação é similar à resposta anterior. Sob essa racionalidade individualista, que nos desconecta dos demais seres, existe – em nosso caso – uma ferida de origem. Somos um país fundado sob a lógica da sujeição desumanizadora. Os colonizadores compreenderam as pessoas que já viviam por aqui como objetos descartáveis, matáveis, estupráveis. Corpos que podiam ser violados. Eliminaram sua cultura, suas crenças, seus costumes. É também na assimilação da suposta desumanidade das pessoas sequestradas e trazidas da África na condição de escravizadas que se consolida a exploração escravista, naturalizada, disciplinada pelo Estado por mais de três séculos.

Sobre toda essa insanidade construiu-se um arremedo da civilização europeia, tornando sempre claro (inclusive pela seleção dos europeus que posteriormente vieram para trabalhar aqui) a menos valia de quem de algum modo pertence a essa terra. Por isso um arremedo apenas, que faz com que, até hoje, não tenhamos noção de soberania no Brasil. Faz com que sigamos tributários de uma validação exterior que nunca aconteceu nem acontecerá. O Brasil tem a extensão, a diversidade e a riqueza natural capaz de fazê-lo autossustentável. Pode produzir comida e casa para todas as pessoas, mas para isso precisa dividir terra e riqueza, e pensar o convívio social a partir de outras bases. Que ainda exista escravização por aqui é reflexo dessa cultura que nos impede de pensar como comunidade. E nos torna um povo de não-sujeitos. O que está na raiz disso é a compreensão do Outro, que depende do trabalho para sobreviver, como um ser humano diferente, “cidadã de segunda classe”, como diz (a escritora nigeriana) Buchi Emecheta. Alguém que não é visto como um semelhante, como um ser com quem compartilhamos um destino, mas sim alguém que “nunca poderia ser eu”. 

Judith Butler (a pensadora feminista) refere que é exatamente a vulnerabilidade, a percepção, por vezes inconsciente, do nosso desamparo, o que facilita a identificação com o assujeitador. E eu acrescentaria: com o feitor de escravos. Se negamos ao outro a condição de pessoa, não precisamos temer, pois de algum modo – ainda que irracional – colocamo-nos em uma posição na qual é possível fingir que aquele destino de privações nunca será o nosso destino. A racionalidade moderna já nos conduz para isso e, no caso de Brasil, é agravada por essa condição histórica de desumanização dos corpos indígenas, negros, pobres.

BdFRS –  Qual o papel que os quase quatro séculos de escravatura exercem ainda hoje sobre a relação patrão-trabalhador no país? 

Valdete – Um papel condicionante. É em razão do que, nas relações de trabalho, temos tanta dificuldade em perceber a violência da extensão da jornada, do não pagamento de um salário, do assedio representado pelo estabelecimento de metas que não consideram as diferenças entre as pessoas. Não se trata apenas da visão da relação de trabalho como contrato, que já é por si só violenta e falsa. Trata-se de compreender o trabalho como uma benesse outorgada por quem emprega, em relação à qual é preciso ter gratidão e mostrar-se subserviente. 

Uma sociabilidade que minimiza a violência da despedida, por exemplo, dessa possibilidade de impor a alguém a privação do único meio pelo qual essa pessoa pode obter o dinheiro que lhe permitirá sobreviver numa realidade em que tudo, até comida, precisa ser comprado, é uma sociedade em essência escravista. 

Se é possível tirar de alguém o emprego, inclusive alegando justa causa e com isso negando-lhe o acesso ao FGTS e ao seguro-desemprego; se é possível tomar trabalho e não pagar salário e pensar nisso como um “mero inadimplemento contratual”, então escravizar é apenas o passo seguinte, é parte da mesma racionalidade. Eis porque ainda hoje temos notícia de trabalho escravizado e tanta dificuldade em fazer valer os direitos trabalhistas. A recente decisão do STF, na ADC 58 (sobre a correção dos créditos trabalhistas), é emblemática para demonstrar essa racionalidade. A dívida trabalhista já era desvalorizada em relação a outras, como dívidas bancárias. Com a decisão do STF sobre o critério de atualização dos créditos trabalhistas, desrespeitar esses direitos tornou-se um ótimo negócio, o que precisa ser compreendido dentro dessa lógica desumanizante, que naturaliza a imposição de privações a quem vive do trabalho.


Polícias Civil e Militar resgatam pessoas em situação de trabalho escravo em Rurópolis, no Pará (2014) / Fotos públicas

BdFRS – Desde sempre, a Justiça do Trabalho foi alvo de críticas do empresariado, o que se agravou com os mandatos Temer e Bolsonaro. Acredita que a JT sobreviveria a um eventual segundo mandato de Bolsonaro? 

Valdete – Difícil dizer, porque a Justiça do Trabalho sempre foi uma instituição que, de algum modo, serviu aos propósitos do capital. Seja quando idealizada e materializada, ainda na década de 1940 do século passado, como via de conciliação entre capital e trabalho, seja em sua atuação desde lá, criando entendimentos (como a súmula 331) e práticas (como a outorga de quitação do contrato de trabalho em acordos judiciais) que servem a essa racionalidade de desrespeito aos direitos de quem vive do trabalho. 

Ou seja, de algum modo essa instituição permite que o discurso dos direitos sociais conviva com o desrespeito sistemático, tolerado e até incentivado, desses mesmos direitos. Ainda assim, é alvo de críticas exatamente porque dá voz à classe trabalhadora, instaura uma possibilidade de enfrentamento menos assimétrico entre patrão e empregado. 

Nesse sentido, as audiências trabalhistas são, por exemplo, importante oportunidade de exercício de uma cidadania transformadora. A Justiça do Trabalho também tem uma função radicalmente fundamental quando reconhece as lesões e repara os danos que decorrem de uma relação de trabalho. Faz muita diferença, portanto, na vida das pessoas que buscam a tutela do Estado. 

Então, é possível que em eventual segundo mandato de Bolsonaro os ataques à Justiça do Trabalho se aprofundem ainda mais, pois a diferença do discurso que venceu às eleições em 2018, em relação aos discursos anteriores, não está propriamente no compromisso com a realização de direitos sociais, mas na deliberada hostilidade à existência mesma desses direitos, na intenção de fazer sofrer, de tornar pior a vivência.