Por Raquel Rolnik
Enquanto as elites viviam efervescências culturais, os territórios proletários se insurgiam contra a exploração, a carestia e os aluguéis abusivos. Cem anos depois, luta pelo direito à moradia ainda sacode a rica (e desigual) São Paulo.
O ano do centenário da Semana de Arte Moderna tem trazido uma oportunidade de revisitar esse momento. Então me pergunto: enquanto no interior do campo das elites intelectuais paulistanas se vivia toda a efervescência cultural da semana de 22, o que estava acontecendo, do ponto de vista cultural e político, nos territórios populares da cidade de São Paulo?
Luta, mobilização e agitação: era um momento em que emergia na cidade um movimento operário, predominantemente anarquista ou anarcossindicalista, que colocava em pauta, além das questões relativas ao mundo do trabalho, temas urbanos como a carestia e a moradia.
Em 1922, São Paulo vivia uma grande crise dos aluguéis, com o preço de cômodos e casas disparando, tornando o pagamento mensal do aluguel – principal forma de moradia popular no período – cada vez mais difícil e penosa para os trabalhadores. Essa crise acabou gerando as primeiras greves de inquilinos, não só em São Paulo mas também no Rio de Janeiro, na mesma época, muito inspiradas em uma greve similar que aconteceu alguns anos antes, em 1907, em Buenos Aires.
Inicialmente uma paralisação devido ao assassinato de dois operários de um porto, a mobilização logo se transformou em um movimento amplo que aglutinou cerca de 140 mil pessoas de 2.400 cortiços na capital argentina e nas cidades de Rosário e Bahía Blanca e, após três meses, conseguiu pressionar muitos proprietários a não aumentar os preços.
Similarmente, em São Paulo, uma das queixas dos trabalhadores que moravam em bairros populares como o Brás, Mooca, Vila Mariana, Ipiranga e Barra Funda era justamente a enorme dificuldade de conseguir pagar o aluguel da sua moradia. Na época, a forma predominante de aluguel popular era o aluguel de cômodos ou casas inteiras, geralmente em condições bastante precárias, a preços extremamente altos.
A tática de suspensão dos pagamentos era proposta sobretudo pelo movimento anarquista, procurando enfrentar a situação muito precária que se vivia na cidade. Além das reivindicações trabalhistas como uma jornada de trabalho diária de 8 horas, equidade salarial para mulheres e salário mínimo baseado no custo de vida, demandas como a redução imediata dos aluguéis e a prorrogação de prazos para pagamentos atrasados eram recorrentes na imprensa operária anarquista durante esse período. Jornais como A Plebe e La Battaglia, dirigidos pelos militantes anarquistas Edgar Leuenroth e Gigi Damiani, respectivamente, em vários momentos falam da questão urbana, da carestia e dos aluguéis.
É muito importante dizer que no mundo cultural e político do território popular também foi de grande relevância a ação do movimento anarquista na construção não só de associações de bairro mas também de salões, teatros e escolas. Tratava-se de uma rede cultural/educativa pensada não só como forma de promover laços de solidariedade entre os operários, mas também sua formação política e cultural. Um exemplo notável dessa atuação é a peça Greve dos Inquilinos, de autoria do militante anarquista Neno Vasco. Ela foi encenada várias vezes, inclusive em 1922, como uma estratégia para levantar fundos para o jornal A Plebe, reprimido e fechado várias vezes nos anos anteriores, marcados por graves operárias e protestos.
Cem anos depois, a questão dos aluguéis e da luta pela moradia segue tão presente na cidade quanto em 1922. Retomar esta história, e esta dimensão de 1922, talvez nos ilumine para os embates político culturais que vivemos hoje em São Paulo. Na cidade não estaremos vivendo muitos 2022?
Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade