Por Valdete Souto Severo (Foto: Marina Costa)
“O amor nos faz sentir mais vivos. Quando vivemos num estado de desamor, sentimos que poderíamos muito bem estar mortos; tudo dentro de nós é silêncio e imobilidade.”
(bell hooks, em Tudo sobre o Amor)
É um pouco como me sinto, diante de notícias da guerra contra a Ucrânia, mas também diante da realidade das pessoas que seguem morrendo de covid-19, de dengue e de fome no Brasil. Silêncio e imobilidade. Frustração. Afinal, caminhamos tanto para chegar até aqui. E seguimos banalizando a morte, contabilizando-a em números ou vendo-a desfilar em reportagens tenebrosas que, de algum modo, esterilizam a crueza dos fatos que estão sendo narrados.
É dolorido, quase insuportável, ler avaliações sobre a guerra travada na Europa, desde uma perspectiva que racionaliza o que devia ser simplesmente inaceitável. O que “não tem vergonha, nem nunca terá”, “o que não tem juízo”, como diz a letra de uma música de Chico Buarque. O mundo está tentando sair de uma pandemia, que já dá mostras de sua resiliência, com mutações que nos colocam em alerta. Ainda assim, a opção é a guerra, é a retirada de direitos, é a aposta na financeirização dos recursos e na destruição ambiental.
No texto que coloquei em epígrafe, publicado originalmente em 2000 e que parece dialogar diretamente com o Brasil de 2022, bell hooks afirma que culturas de dominação cortejam a morte. É impossível não pensar no modo violento e criminoso como a pandemia não foi enfrentada em nosso país. Toda a resistência, todo o deboche, todo o boicote que resultaram concretamente um número de pessoas mortas e adoecidas que supera o de muitas guerras já travadas pela humanidade, confirmam a tese exposta no livro. O culto à morte é “componente central do pensamento patriarcal”. Um homem resolve deflagrar a guerra e o resultado são casas destruídas, pessoas mortas, mais de 3 milhões de refugiadas. Abandonaram suas casas para sobreviver a uma disputa que não lhes diz respeito. E a Ucrânia é apenas o episódio mais recente de uma história de homens brancos que dominam, subjugam, violentam e matam.
Tanta gente já teve a vida prematuramente destruída pela lógica da adoração à morte. Por aqui, embora não explodam bombas sob nossas cabeças, desmoronam ruas, casas são alagadas, pessoas são soterradas pela lama de represas mal construídas, cujo rompimento pode ser caracterizado de várias formas, menos como um acidente.
Em decisão recente, da Desembargadora Paula Cantelli, a Quarta Turma do TRT da 3ª Região manteve sentença que condenou a VALE S.A a pagar indenização por dano-morte, no importe de um milhão de reais por vítima fatal, aos espólios/herdeiros das empregadas e dos empregados, cujas vidas foram ceifadas em razão do rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho-MG. Houve um voto vencido, fundado no argumento de que as vítimas não sofrem o dano da própria morte e que esse dano não pode ser herdado por seus afetos.
O Direito regula a vida em uma sociedade que, como afirma bell hooks, cultua a morte enquanto assujeita a vivência. E a assujeita especialmente através – isso digo eu – de uma racionalidade que naturaliza a troca de trabalho por dinheiro, como condição para a sobrevivência física. Se a vida precisa ser dedicada à troca de tempo por dinheiro, a sua banalização é consequência certa. Toda a dificuldade que temos em enfrentar e coibir concretamente o adoecimento no trabalho passa por isso.
Passamos a vida trabalhando, em quantidade e intensidade que não escolhemos e esse breve intervalo entre o nascimento e a morte se esvai sem que percebamos. Filhos crescem, afetos morrem, adoecemos, envelhecemos. A loucura do trabalho não é posta em causa. Naturalizamos essa troca perversa e irracional. Produzimos alimentos suficientes para que todos estejamos bem alimentados, mas um terço da população mundial passa fome. Precisamos dos seres viventes não humanos para respirar, mas destruímos florestas. Dependemos da nossa saúde para permanecer vivas, mas seguimos comprando alimentos envenenados por agrotóxicos. Tanta irracionalidade não tem tempo de ser metabolizada ou enfrentada, afinal há trabalho a fazer.
Lembro outra referência musical, que sintetiza de modo brilhante o culto à morte e o quanto ele está intimamente imbricado à imposição da troca de trabalho por capital. Gonzaguinha canta “vida é trabalho, e sem o seu trabalho, o homem não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”. A ligação entre vida e trabalho, que a sociabilidade vigente nos impõe, na medida em que estabelece a regra de que só o dinheiro obtido com o trabalho permite acesso aos bens de que precisamos para existir materialmente, está ligada a esse culto da morte. E como não questionamos isso, quando alguém morre em razão do egoísmo e da ganância que retira emprego, deflagra guerra, nega a compra de vacina ou não investe em manutenção e prevenção de uma represa, o Direito é a resposta que conhecemos. Mas ele não dá conta, como bem sabemos.
Mesmo quando funciona, impondo reparação, a resposta do Direito deixa um vazio. Quem perdeu afetos com o desastre da VALE S.A não irá compensá-lo com dinheiro. Certamente, todas as pessoas alcançadas com a decisão que citei trocariam a indenização por mais tempo de convívio, mais sorrisos, mais abraços de seus familiares mortos. Isso não invalida nem diminui a importância da reparação, apenas deixa claro o quanto precisamos avançar. Daí porque a decisão referida é exemplo da função que o Direito ainda pode e deve exercer diante de uma realidade social que cultua a morte. A reparação tem efeito simbólico e o simbólico atua concretamente, alterando a materialidade da vida. A decisão, portanto, constitui uma forma importante de o Estado expressar sua vergonha e sua responsabilidade, pelas mortes evitáveis.
O reconhecimento do dano-morte é caminho para a formação de uma outra cultura, em que a vida seja respeitada. No mesmo texto que antes mencionei, bell hooks observa que nosso medo da morte nos faz minimizá-la, ignorá-la, tratá-la com descaso. Isso, porém, não nos consola. Ao contrário, nos torna ainda mais vulneráveis e sustenta a perspectiva do Outro como inimigo. O medo de morrer é substituído pelo medo de ser morto ou violado. Eis a chave da afirmação de que o culto à morte é componente da estrutura patriarcal e racista em que vivemos. Sob a lógica do medo, o diferente figura como alvo preferido dessa energia que esconde o pânico diante da finitude. Odiar o Outro ou negar-se a reconhecê-lo como vida que importa é um artifício para não enfrentar o fato de que a morte, em vários momentos, fará parte da nossa história. Mulheres, pessoas não brancas, pessoas com características de saúde física ou mental diversa, corpos que professam uma sexualidade não hegemônica são os alvos preferidos. Como diz Caetano: “narciso acha feio o que não é espelho”. Essa dificuldade de compreender a diversidade e de exercer alteridade, é o que sustenta afirmações, como aquela de que a morte não é um dano para quem morre. Ou as tantas manifestações de ode à morte, com as quais fomos violentadas ao longo desses dois anos de pandemia e que podem ser sintetizadas nas frases: “Eu não sou coveiro” ou “E daí, lamento. Quer que eu faça o quê?”
Casos como o da VALE S.A nos lembram que o culto à morte também se reflete na banalização da perda evitável de vidas, em razão de escolhas de ordem econômica ou política que não podem mais ocorrer. Um milhão de reais não vale uma vida. Apenas repara parcialmente um dano irreversível. Ainda assim, é um recado, uma opção pelo constrangimento econômico de pessoas que, tendo o poder de decidir, escolheram arriscar e, com isso, causaram dor, sofrimento e morte. O raciocínio serve também perfeitamente bem, para quem optou atrasar na compra e na distribuição da vacina ou boicotar seu uso. Para quem libera a aplicação de veneno na comida ou a mineração em terras indígenas. Para quem destrói a legislação social ou promove política de encarecimento dos bens básicos à sobrevivência.
O reconhecimento do dano-morte nos coloca diante da urgência de uma sociabilidade diversa. Em que possamos compreender a vida como um valor social. Em que sejamos capazes de sentir e de sofrer a morte dos demais seres, humanos ou não humanos, reconhecendo a importância de cada existência e a loucura (não há outra palavra que caiba melhor aqui) de escolhas que impõem sofrimento ou sacrificam vidas. É uma resposta do Direito à irracionalidade do que ocorreu em Brumadinho. Um recado de que precisamos resistir e reinventar nosso convívio. Há dano para quem teve a vida violentamente abreviada. Esse dano precisa ser de algum modo materializado, para que – em uma realidade capitalista – ele adquira a dimensão pedagógica capaz de evitar a repetição dos mesmos eventos no futuro.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.