Como membro de instâncias dirigentes do Partido Comunista do Brasil – Comitê Central e Comissão Política Nacional – e secretário-geral do Cebrapaz, sou ardente defesor da paz. Como estudioso das relações internacionais, defendo os princípios da autodeterminação dos povos e nações e a integridade nacional, assim como a solução política e pacífica dos conflitos. Por isso tomo como ponto de partida, ao opinar sobre as tensões políticas e militares no Leste Europeu, a condenação enérgica à brutal ofensiva dos Estados Unidos e da Otan contra a Rússia. As ações do chefe do Kremlin anunciadas desde a última segunda-feira (21), foram motivadas pelas ameaças à segurança nacional e integridade territorial da Federação Russa.
Por José Reinaldo Carvalho
A decisão da Rússia de reconhecer as Repúblicas de Donetsk e Lughansk e de iniciar nesta quinta-feira (24) uma operação militar nesses territórios colocou o presidente Vladimir Putin no centro de uma luta política e ideológica, transformado no líder mais comentado, alvo dos mais curiosos ataques: “czar”, “autocrata”, “imperialista”, “nacionalista de direita”, “agressor”, “belicista”.
Atribui-se ao chefe do Kremlin planos fantasiosos, como o de ocupar todos os países outrora integrantes do sistema socialista do Leste Europeu, que atuaram juntos na conjuntura da guerra fria no acordo de ajuda mútua do Comecon e na aliança militar defensiva do Pacto de Varsóvia.
Há os que o acusam de, sob inspiração de teorias nacionalistas conspirativas, pretender restaurar o império czarista.
Já estaria mobilizado para invadir os países bálticos, além da Polônia, Romênia, Bulgária, Hungria, quem sabe descer aos Bálcãs. E não faltam os que, movidos pelo anticomunismo mais grotesco, vaticinam que seu plano seria reconstruir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Entre parênteses, observo em comentários em redes sociais de militantes e quadros de correntes de esquerda, quão forte é o poder de convencimento da mídia ligada às grandes potências imperialistas. Não são poucos os que, desviando-se do aspecto central que está em jogo – a ofensiva manu militari dos EUA e de seus aliados da Otan para dominar o mundo, e a estratégia de política externa anunciada por Joe Biden de impedir a ascensão da China e conter o poder nacional russo – escrevem notas raivosas contra o presidente russo, tendência que se acentuou depois do encontro que manteve com o ocupante do Palácio do Planalto.
Mas os recentes pronunciamentos de Putin, recheados de fundamentação doutrinária e histórica, com a qual se pode travar edificante e inteligente polêmica, falam de algo bastante distinto e se referem a planos bem mais realistas e contemporâneos, expendidos com lucidez, pragmatismo e impressionante fleugma.
No final do ano passado (23 de dezembro), Putin reiterou uma posição que se consolidou no poder político da Rússia pós-soviética há pelo menos 30 anos e principalmente desde que assumiu pela primeira vez presidência da Federação Russa, no ano 2000, consistente em algo muito simples: o planejado ingresso da Ucrânia e da Geórgia na Otan e a continuada expansão para as proximidades das fronteiras russas desse pacto agressivo comandado pelos EUA constituem uma ameaça à segurança nacional e à integridade territorial da Rússia. Essa posição não é nova, foi explicitada muitas vezes. Com maior eloquência e consistência de razões, na Conferência de Segurança de Munique, em 2007. O discurso de Putin naquela ocasião prenuncia os acontecimentos dramáticos de hoje.
Depois da coletiva de 23 de dezembro, o governo russo enviou uma carta aos EUA e à Otan formulando um pedido de garantias de segurança da Rússia, o que implica a renúncia aos planos de admitir a Ucrânia na Otan e na Geórgia e fazer retroceder as forças da Aliança Atlântica aos limites de 1997.
A Casa Branca e Bruxelas ignoraram e fizeram tábula rasa das reivindicações russas, o que levou o nosso personagem a declarar que estava disponível para realizar todas as demarches diplomáticas, advertindo ao mesmo tempo que sua prioridade é a defesa da segurança do seu país.
Durante os meses de janeiro e fevereiro foram intensas as articulações diplomáticas entre a Rússia e contrapartes dos Estados Unidos, Europa, Oriente Médio, Ásia e América Latina, muitas delas com o envolvimento pessoal de Putin.
Igualmente, foram realizadas reuniões multilaterais de blocos como o Quarteto da Normandia, a Organização para a Cooperação e a Segurança Europeia (OSCE) e o Triângulo de Weimar.
Realizaram-se reuniões da Otan, do Conselho de Segurança da ONU, cúpulas bilaterais entre chefes de Estado ocidentais e em todas elas manteve-se o impasse. Por parte dos EUA e seus aliados da Otan, adotou-se a posição intransigente de negar à Rússia o atendimento a suas reivindicações básicas. Por parte da Rússia, houve a reiteração da posição de princípios de defesa prioritária da própria segurança nacional e integridade territorial.
A última fronteira para uma saída diplomática que evitasse o conflito eram os acordos de Minsk, que em 2014 e 2015 estabeleceram um cessar-fogo entre o exército ucraniano e as forças insurretas pró-russas da região de Donbass, que se alçaram em armas contra o golpe de Estado na Ucrânia apoiado por forças fascistas internas, os EUA, seus aliados da Otan e a União Europeia. Os insurretos proclamaram as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Os acordos de Minsk estabeleciam também um grau de autonomia para as duas províncias nos marcos da integridade ucraniana. Segundo a Rússia, esses acordos foram sistematicamente violados pelas autoridades da Ucrânia muito antes do reconhecimento da RPD e RPL na última segunda-feira.
A posição da Ucrânia levou a Rússia a tomar a decisão de reconhecer as duas repúblicas.
De todos os interlocutores de Putin nas últimas semanas, o mais enfático na defesa desses acordos foi o presidente francês Emmanuel Macron. Mas ele e seus parceiros europeus não foram capazes de convencer as autoridades de Minsk. A continuada repressão ucraniana aos combatentes de Donetsk e Lugansk e o recrudescimento de ações de guerra do exército ucraniano na região precipitaram os acontecimento dos últimos dias: o reconhecimento das duas novas repúblicas pela Rússia, a assinatura de acordos de amizade, cooperação e ajuda mútua e o desencadeamento da Operação Militar Especial ordenada por Putin na madrugada de 24 de fevereiro.
Em suma: testemunhamos no Leste a mais desavergonhada e brutal ofensiva militarista e belicista, ao lado de inusitado tensionamento político e inflexibilidade diplomática contra a Rússia por parte dos EUA e seus parceiros da Otan, responsáveis em primeira e última instância pelo clima tenso e o conflito. Se houver uma guerra regional, com todas as consequências que possa acarretar para a paz mundial e a segurança dos países e povos, será aos líderes dessas potências que se há de fazer cobranças.
Em primeiro lugar, o chefe da Casa Branca, Joe Biden. Foi ele que apontou a Rússia como inimiga, usou a Ucrânia como procuradora de um conflito, regeu a orquestração anti-Rússia e ordenou que se ignorassem as reivindicações de segurança do país euro-asiático. Em face das ações russas, coloca-se à frente da aplicação de sanções, que, segundo sua vontade, serão “devastadoras”. E promove a ulterior militarização da Europa Oriental, ao enviar soldados e armas a diversos países. Desprestigiado pelo vexame no Afeganistão, enfrentando dificuldades políticas internas em uma sociedade lacerada por contradições sociais, ao buscar protagonismo internacional atiçando conflitos, Biden é personagem central da atual crise política e militar na Europa.
O conflito no Leste Europeu tornou-se a situação propícia para o exercício do “multilateralismo” do governo Biden, um multilateralismo falso, porquanto não se expressa por meio do diálogo entre iguais, mas toma a forma de uma aliança política circunstancial com antigos parceiros visando a atacar terceiros países. Nesse quadro, Biden lança mão de personagens como Boris Johnson, Olaf Scholz e Emmanuel Macron, três figuras secundárias que, por sua vez, se utilizam da situação em busca de algum protagonismo. Todos podem sair mais fracos do que entraram no conflito.
Boris Johnson exibe todo o seu histrionismo, tornou-se um personagem cômico, útil talvez para contracenar com o comediante Volodomir Zelenski, comediante por profissão, atualmente no posto de presidente da Ucrânia. Definitivamente, a velha Albion já não tem o brilho de outrora.
Emmanuel Macron, candidato à reeleição na França, foi bastante ativo, visitou o Kremlin e além do encontro presencial, trocou com Putin longos telefonemas. Em busca de firmar autoridade para consumo eleitoral, foi o que mais se aproximou de propostas razoáveis, reconhecendo a autenticidade dos propósitos russos e esforçando-se por uma saída diplomática. Por estar atado pelos mil e um fios de dependência com a Otan e a UE, ficou pelo meio do caminho.
Olaf Scholz, o novo governante social-democrata da Alemanha, mostrando quanto sua corrente política e ideológica está distante do progressismo, tem-se comportado nesta crise como uma conveniente linha auxiliar de Biden, chegando à posição extrema de sacrificar os interesses nacionais ao decidir pela suspensão da entrada em operação do gasoduto Nord Stream 2. Scholz se tornou um dos mais entusiastas defensores de sanções severas contra a Rússia. Em outra esfera, movimenta-se com o polonês ultradireitista Andrej Duda, um dos advogados da entrada da Ucrânia na União Europeia.
A crise política e militar no Leste Europeu também fica pendente das ações de outros líderes a quem a mídia monopolizada pelo imperialismo só se refere, por razões distintas, em termos desairosos: o turco Erdogan e o bielorrusso Lukashenko. Rússia e Turquia mantêm historicamente relações conflituosas, mas na atual disposição de forças no tabuleiro internacional desenvolvem relações ambíguas, devido às reais contradições existentes entre a Turquia, membro da Otan, e os países ocidentais. Assim, não é previsível se Erdogan atenderá a demanda ucraniana de fechar os estreitos de Bósforo e Dardanelos para os navios russos.
Quanto a Lukashenko, é o maior aliado de Putin. Rússia e Bielorrússia são parceiros estratégicos em todos os domínios, destacando-se a cooperação na área militar com manobras conjuntas. Por isso mesmo, tem sido alvo de insidiosa campanha de desmoralização internacional e de ameaças de guerra híbrida e “revolução colorida” em seu território.
Na crise do Leste da Europa, é necessário ainda figurar a posição da América Latina. Cuba socialista, a Venezuela bolivariana e a Nicarágua sandinista, partindo do pressuposto de defesa da paz, manifestaram com clareza a opinião de que a Rússia tem o direito de se defender.
E, por último, por ser o mais importante, não podemos deixar de mencionar como figura de destaque o presidente Xi Jinping. Sua importância no quadro mundial, para além da grandeza da China socialista, pode ser aquilatada pelo teor da Declaração Conjunta China-Rússia, em que juraram amizade infinita e projetaram para o mais elevado grau a parceria estratégica abrangente da nova era. Nos últimos dois dias, a chancelaria chinesa publicou notas discretas pedindo contenção das partes envolvidas na crise política e militar no Leste Europeu. Mas não deixou de condenar as sanções, e de alusivamente atribuir a responsabilidade aos Estados Unidos. A Declaração Conjunta China-Rússia de 4 de fevereiro é um marco na emergência de um novo sistema internacional multipolar. Entre os polos emergentes e consolidados, não se duvide do lado em que a China está.