Quem responde essa pergunta é Edson Aparecido da Silva, mestre em Planejamento e Gestão do território e um dos fundadores do Observatório Ondas, durante entrevista ao Portal Sintaema sobre a importância de se entender o debate e os impactos da privatização do saneamento no Brasil.
Ao longo da entrevista, Silva faz breve histórico sobre a luta em torno do saneamento, , a importância do direito de acesso a esse serviço, a importância da Sabesp e sobre a proposta de lei que tramita no Senado e pode privatizar a água no Brasil.
“Falar da Sabesp é falar de uma empresa que presta um serviço essencial e que é lucrativa para o estado. A pergunta que fica é: por que o governo quer vender uma empresa que dá lucro para ele?”, questionou o especialista.
Por seu trabalho em torno da defesa de uma política universal de saneamento, ano passado, Edson foi agraciado com o Prêmio Lucio Costa de Mobilidade, Saneamento, e Habitação 2021, na categoria “Personalidades – Segmento Saneamento”, premiação instituído pela Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados.
Confira a íntegra da entrevista:
Por que é importante entender o debate em torno do saneamento básico no Brasil?
É muito importante a gente contextualizar em que macro cenário se dá o debate do saneamento no Brasil. Hoje, a gente vive no Brasil sob comando de um governo ultraneoliberal que aprofunda o distanciamento do Estado das políticas públicas, desenvolvendo um grande processo de privatização dos serviços públicos.
O atual governo abre mão da soberania nacional, atacando não só os setores de água e esgoto e meio ambiente, mas também o energético e petrolífero. E vai além, é um governo que despreza a ciência, negacionista, que destrói os aparatos de proteção ambiental do nosso país. E, do ponto de vista das lutas mais gerais, é um governo que criminaliza e ataca os movimentos sociais e populares e os povos indígenas.
Então, esse debate do saneamento se dá em um cenário brutal de desmonte do Estado. Desmonte esse que está enterrando políticas públicas urbanas essenciais em áreas como habitação, mobilidade urbana e saneamento, essenciais para o bem-estar da população e que só entraram na agenda, com mais centralidade, a partir do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003.
Foi no governo Lula que várias ações foram tomadas no sentido de garantir essas políticas e aplicá-las a partir de um projeto de desenvolvimento. E um marco importante para isso foi a criação do Ministério das Cidades e o descontingenciamento de recursos até então controlados pelo governo FHC. A partir daí foram uma série de medidas que reconfiguraram o setor e colocaram o país em outro patamar.
Diante dessa virada que você ressaltou em qual o ponto o país começou a andar para trás?
O país começou a andar para trás em maio de 2016, com o golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff. Lembremos que o primeiro ato de Michel Temer como presidente foi lançar um decreto que instituiu o PPI (Programa de Parcerias e Investimento), que tinha como principal objetivo avançar nas parcerias com o setor privado para intensificar o processo de privatização dos serviços públicos.
E na mira deste programa estavam os serviços de água e esgoto, energia e correios, por exemplo. E para garantir o programa, Temer tenta usar o BNDES para ser o órgão que trabalharia na modelagem das privatizações. Mas, como a proposta esbarrava na Lei 11.445/2007, o governo acabou editando a Medida Provisória 844 e depois a Medida Provisória 868.
Neste ponto da história a luta se intensificou e o Sintaema, em conjunto com os trabalhadores e trabalhadoras em água, esgoto e meio ambiente e outros sindicatos, teve um papel fundamental para evitar que essas MPs fossem aprovadas. Porém, em 2020, agora no governo Jair Bolsonaro, a proposta contida nas MPs é transformada na Lei 14.026/2020, que alterou a Lei 11.445/07 e abriu caminho para uma política que tem o lucro como lógica.
Com a aprovação da Lei 14.026 os desafios para a universalização do saneamento no Brasil serão resolvidos?
Na minha opinião, não. Ela na verdade vai significar um retrocesso na política pública de saneamento que vinha sendo desenvolvida até 2016. E por que afirmo isso? Porque a lógica embutida nesta lei é uma lógica que pretende instituir o monopólio privado na prestação de serviço no Brasil.
Quando a gente diz que a lei não vai resolver os problemas de saneamento no Brasil é importante a gente entender que quem não tem saneamento no Brasil, são as pessoas mais pobres, que vivem em situação de alta vulnerabilidade social e nas periferias do país. Áreas que não possuem nenhum interesse por parte do setor privado, para investir seus recursos e garantir o serviço. Lembremos que a lógica que rege o setor privado é o lucro, logo seu foco sempre será as grandes cidades, regiões metropolitanas, onde os serviços estão mais consolidados. Ou seja, onde a necessidade de investimento é menor e o retorno financeiro já está garantido.
Então, a lógica da privatização do saneamento no Brasil terá como resultado o aumento das tarifas e, consequentemente, a exclusão da população mais pobre.
Podemos afirmar que o modus operandi da privatização do saneamento segue a cartilha de propostas de privatizações de outros setores públicos que estão ameaçados hoje?
Se for pela lógica do lucro, sim. Mas, quando pensamos no impacto, a privatização do saneamento é ainda pior que as demais. E por que digo isso? Porque não existe serviço público com o grau de importância para a vida das pessoas como é o caso do saneamento básico, ele tem a ver com a vida das pessoas. Inclusive, está errado pensar em saneamento básico como obras de infraestrutura, a exemplo de estradas e portos. Estamos falando de um serviço que se relaciona com a vida das pessoas.
E se é verdade que a gente tem que reconhecer que os desafios para a universalização do saneamento são enormes, também é verdade que a Lei 14.026 veio para matar o doente. Ou seja, ela não veio para enfrentar os desafios para a garantia desse importante direito.
E mais, do ponto de vista jurídico, a Lei 14.026 traz uma série de inconsistências, fruto de um debate infectado pelo discurso privatista defendido pela mídia e pelo julgamento pouco técnico que vimos ocorrer no Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos meses. Então, na minha opinião, o julgamento do STF se deu de forma a atender os interesses do mercado, e não atender os interesses da população pobre do país que será a mais afetada.
Em São Paulo, João Doria (PSDB/SP) segue as cartilhas de Michel Temer e Jair Bolsonaro quando o assunto é privatização. Como você avalia o projeto tucano e qual será o impacto para a população?
Primeiro, temos que ter em mente que o projeto de João Doria não se diferencia em nada do projeto liderado por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. E nunca é demais lembrar que Doria foi eleito no bojo do bolsonarismo e com o slogan “BolsoDoria”.
Segundo, essa desvalorização da ciência, da pesquisa, é também uma marca do governo Doria, um governo que fechou institutos de pesquisa e órgãos de planejamento. Não devemos esquecer que estava na mira de Doria a privatização dos Instituto Butantan, que acabou virando a menina dos olhos do governo quando Doria percebeu que poderia usar a pandemia para se distanciar de Jair Bolsonaro.
E, terceiro, nunca saiu da mira dos tucanos a vontade de privatizar a Sabesp, uma empresa estratégica para o estado e que é referência no setor. Sabemos que a Sabesp precisa avançar no atendimento da população que vive em situação de vulnerabilidade social em nosso estado, mas é preciso destacar que é ela que garante o atendimento de cerca de 70% dos municípios que têm entre 0 e 50 mil habitantes. Portanto, a maioria dos municípios que a Sabesp atende em São Paulo são municípios pequenos. E mais, cerca de 20% da população atendida pela estatal são pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social e 10% na faixa de pobreza extrema, famílias com renda per capita de R$ 0 a R$ 89. Logo, estamos falando de uma empresa que presta um serviço importante para uma parcela significativa da população pobre de municípios pequenos do estado. Então, quando aplicamos para um serviço como o que a Sabesp oferece a lógica do lucro, esses pequenos municípios serão os primeiros a sofrer com a privatização.
Também destaco que falar da Sabesp é falar de uma empresa que presta um serviço essencial e que é lucrativa para o estado. Então, privatizá-la não faz nenhum sentido. Por isso, a nossa luta deve ser para que os dividendos recebidos pelo governo do estado, em função dos ganhos que a Sabesp tem, retornem para a população na forma de investimentos em saneamento com o objetivo de melhorar o atendimento para quem já recebe e chegar àqueles que ainda sofrem sem o acesso ao serviço.
Meio Ambiente é uma pauta permanente da luta do Sintaema. Por que uma política de universalização não deve estar desassociada de uma política de preservação ambiental?
Esse é ponto importante deste debate.Uma coisa é você falar dos serviços de saneamento básico (distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e tal) outra coisa é falar dos recursos hídricos, da água em si. Essa diferenciação não desconsidera que a questão do saneamento está intimamente ligada à questão dos recursos hídricos.
Exemplo, a lógica de se buscar água cada vez mais longe para atender uma uma população é uma lógica que impacta o meio ambiente e as populações que vivem no entorno onde essas obras são feitas. Penso que o momento nos cobra avaliar essa lógica e o uso da água, como bem precioso e que pode acabar a depender do modelo de exploração.
Nesse sentido, esses dois pontos que você citou estão interligados. Por exemplo, a gente vive hoje uma ameaça de privatização dos saneamento em escala nacional e estadual, mas você também vive uma ameaça de privatização dos recursos hídricos. Porque hoje tramita no Congresso Nacional uma proposta de lei que muda a Lei Nacional de Recursos Hídricos – Projeto de Lei n° 3480/2019 de autoria do senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) – para permitir a criação do mercado da água. Uma ameaça brutal, que transforma a água em mercadoria e coloca em risco a segurança vital de milhares de pessoas. Por isso, precisamos vigiar e lutar para que não venhamos a sofrer aqui o que sofreu a população de países como Chile e Bolívia, que privaram esse recurso e quem pagou a conta foi o mais vulnerável.
2022 é ano de eleição. Pensando que saneamento e água são temas permanentes na luta da população, liste 5 pontos que um projeto eleitoral precisa ter para garantir acesso a esses direitos.
Primeiro, todas as pessoas independentemente da capacidade de pagamento, do local e condições de moradia têm que ter acesso à água, coleta e tratamento de esgoto, coleta de lixo e à política de drenagem urbana; Segundo, nenhuma pessoa em estado de vulnerabilidade social deve ter a seu fornecimento de água cortado por falta de pagamento; Terceiro, é fundamental que todas as pessoas incluídas no CadÚnico e as pessoas que são beneficiadas com o BPC (Benefício de Prestação Continuada) sejam automaticamente inscritos nas políticas de tarifas sociais; Quarto, que a política pública de saneamento olhasse para além do domicílio, ou seja, é importante que as cidades e os estados garantam acesso à água, banheiro e a equipamentos de higiene para as populações que vivem em situação de rua, para a população que trabalha na rua e com um olhar muito especial para as mulheres que sofrem com a pobreza menstrual; Quinto, que haja uma política de Estado para o saneamento em São Paulo e que os órgãos responsáveis pelas políticas públicas no estado – como CETESB – sejam indutores de ações de fomento de acesso ao saneamento para os municípios que não possuem recursos para isso.
Fonte: Portal Sintaema