Por Valdete Souto Severo
A semana que passou nos brindou com a grata notícia de que o STF, por 6 votos a 4, reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos que operam uma violência institucional profunda contra a classe trabalhadora. Quem tem direito à gratuidade da justiça, deve exercer esse direito nos moldes do que estabelece a Constituição: de forma gratuita e integral. É bem verdade que a decisão, proferida na ADI 5766, salvou um dispositivo que contraria a mesma premissa. Declarou a constitucionalidade do artigo 844 da CLT, quando autoriza cobrar custas de quem é beneficiário da gratuidade da justiça e não compareceu à audiência trabalhista.
Ajuizar uma demanda e perder o processo não pode mais ser razão para a punição de reclamante. Permanece, porém, a punição para quem, não comparecendo à audiência, der causa ao arquivamento do feito. Note-se que quem não comparece à audiência já é punido, com a decisão de extinção do processo sem exame do mérito. Ao arquivar o processo, o Estado deixa de olhar para o litígio. A repetição da demanda, com tudo que isso envolve, será necessária para que a tutela seja realmente prestada. A diferença no tratamento entre autor e demandado tem fundamento na noção de proteção. Ocorre que, mesmo antes da “reforma”, em razão de entendimento criado na Justiça do Trabalho, a essa punição somou-se outra. Entende-se que esse mesmo reclamante poderá ser punido com a aplicação de pena de confissão, na forma da súmula 74 do TST. Com isso, a jurisprudência majoritária trabalhista já havia eliminado o conteúdo protetivo desse dispositivo legal, antes mesmo da “reforma”.
Com a alteração do texto do artigo 844 da CLT pela lei 13.467, o trabalhador ou trabalhadora poderá ser triplamente punida. Além do arquivamento e da pena de confissão, poderá ser condenada ao pagamento de custas, mesmo que beneficiária da gratuidade da justiça. E o pagamento será condição ajuizar nova demanda. Se for miserável e não tiver condições de efetuar o recolhimento das custas, nem tiver um “motivo legalmente justificável” para elidir a punição – o que quer que isso signifique -, estará impedida de discutir em juízo os danos que acredita ter sofrido em seu vínculo de emprego.
A demandada que não comparece à audiência tem declarada à revelia e aplicada a pena de confissão, mas – de acordo com a mesma lei que alterou o artigo 844 da CLT – pode ter sua revelia afastada por várias razões, dentre as quais a percepção, pela juíza ou juiz, de que as alegações da inicial são inverossímeis. Em tal caso, a reclamada que não comparecer à audiência não sofrerá punição alguma. Para além do evidente compromisso de classe que essas alterações legislativas revelam, o mesmo que se evidencia na construção de entendimento jurisprudencial para assimilar a lógica do processo civil e ignorar a literalidade da CLT, é preciso ainda refletir sobre o que afinal seria inverossímil em uma relação de trabalho?
Trabalhar em situação análoga a de escravo? “Acompanhar” a família em viagens de mais de 15 dias, sem folga e sem nada receber além do salário? Trabalhar 12h por dia ou mais, com apenas 5 anos de idade? Ora, recente reportagem do Brasil de Fato revelou um número absurdo de pessoas resgatadas em situação de escravização apenas este ano. De acordo com a OIT, em 2019 havia 1,8 milhões de crianças e adolescentes, a partir dos 5 anos de idade, trabalhando. Dessas, 706 mil estavam exercendo as piores formas de trabalho infantil. Difícil, portanto, saber o que seria inverossímil diante de uma tal realidade.
Curioso é que mesmo estabelecendo uma assimetria entre quem demanda e quem é demandado na Justiça do Trabalho, completamente avessa à noção de proteção que justifica a existência do poder judiciário trabalhista, essa regra de proteção ao demandado não tem sido alvo de muita controvérsia. Curioso não, sintomático.
Nada disso diminui a importância da decisão adotada pelo STF na ADI 5766, mas precisa servir de alerta. É longo ainda o percurso que pode nos conduzir ao reencontro com o sentido histórico, social e humanitário da normatividade trabalhista. E para que esse caminho seja trilhado, é preciso esforço, inclusive para desnaturalizar a agressão a direitos trabalhistas que vem ocorrendo através de legislações e de decisões judiciais, especialmente nos últimos anos. Podemos recordar o resultado da ADI 6363, da ADC 58 ou mesmo a notícia recente de que o governo, com o auxílio do parlamento, fará manobra para pedalar o pagamento dos precatórios, muitos dos quais se referem a dívidas de crédito alimentar, em processos que aguardam muitos anos por uma solução. O argumento de que esse calote será feito para viabilizar o pagamento de auxílio emergencial em ano de eleição causa nojo. Muito mais se poderia obter taxando grandes fortunas, mas disso sequer se cogita. Quem perde, cada vez que o governo resolve adotar medidas para conter os efeitos de um descalabro econômico que ele mesmo produz, é sempre e invariavelmente, o povo.
No último dia 20 de outubro, a decisão do STF na ADI 5766 reacendeu a esperança de que à violência brutal que vem sendo exercida contra trabalhadoras e trabalhadores se imponham, ao menos, alguns limites. O resultado da ADI 5766 é histórico, não apenas por seu conteúdo, mas pela potencialidade de inaugurar um novo tempo, em que a “reforma”, como disseram seus defensores – assustados com a declaração de inconstitucionalidade, seja realmente “enterrada”. E com ela toda a subversão jurídica reveladora de um ódio de classe que não resiste em sacrificar a coerência do sistema em nome da agressão aos direitos sociais.
Outras discussões importantes estão na pauta. Na semana que hoje inicia, a ADI 6.050 deve ter sua análise concluída. Como lembra Jorge Souto Maior, em artigo publicado ontem (24), a decisão a ser proferida nessa ADI “vai representar, efetivamente, a hora da verdade”. Seu objeto, o artigo 223G também incluído na CLT pela “reforma”, tarifa o dano extrapatrimonial a partir do valor do salário. Fere, portanto, a isonomia. Trabalhadoras e trabalhadores que sofrem idêntico dano podem ser ressarcidos em valores diversos, conforme a remuneração que recebem. Uma discriminação que recalca, diga-se de passagem, o preconceito contra profissões mal remuneradas, marginalizadas, a maioria das quais exercidas por mulheres e pessoas negras. Justamente aquelas que não pararam, nem durante o pior momento da pandemia e que, por isso mesmo, mais sofrem com adoecimento e morte por covid-19. Como Jorge lembra no mesmo artigo, não basta bater palmas ou fazer reportagens emocionantes sobre a coragem (que se soma à necessidade de sobrevivência) dos profissionais que nunca pararam nem tiveram a possibilidade de fazer isolamento. É preciso traduzir em decisões o respeito por suas profissões e por suas vidas.
A lei 13.467 é, simbólica e concretamente, o maior ataque institucional contra a classe trabalhadora no Brasil desde a Constituição de 1988. O conjunto de danos que provoca atinge a linguagem do direito do trabalho, sua cultura e suas possibilidades de garantir cidadania. Em um país no qual trabalhar é condição para sobreviver, isso não é pouco. Essa lei já devia ter sido integralmente revogada e se isso ainda não é possível em razão do discurso que hoje domina, é imperativo que se exija tal compromisso de quem se candidatar às próximas eleições, assim como é razoável esperar que essa seja a postura adotada por quem tem o dever de concretizar a ordem jurídica. Afinal, em cada demanda, na qual a corte constitucional é chamada a se posicionar sobre o conteúdo dessa lei, há sempre mais do que uma análise jurídica. Vem à luz essa insistência em manter a racionalidade patriarcal e racista. É isso que está em disputa: a racionalidade social escolhida como discurso do Estado com a abertura democrática operada na década de 1980 ou o ranço escravagista que naturaliza a desigualdade e a violência. A palavra está com o STF.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.