Por Valdete Souto Severo
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
”Fora da costa”, eis a tradução literal da palavra Offshore, utilizada para conceituar empresas criadas fora do país, em locais nos quais a tributação é menor ou nenhuma. A lei brasileira permite a criação dessas empresas. Sob o título de “Pandora Papers”, publicou-se há alguns dias o resultado de investigação feita por cerca de 600 jornalistas, durante um ano, sobre personalidades que mantêm esse tipo de empresa nos chamados paraísos fiscais. Dentre eles está Paulo Guedes, o ministro da Economia, e Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central. Ciente da notícia, o ministro se apressou em dizer que tais empresas não são ilegais. Lembra o argumento usado pelos nazistas no tribunal de Nuremberg.
Se não há ilegalidade, não há problema. Será?
Faz bastante tempo que discutimos a superação de uma legalidade apartada da moralidade ética. Com a Constituição de 1988, nos comprometemos oficialmente com valores como a preservação da dignidade, a erradicação da miséria e a busca da justiça social. A moral é constantemente invocada, também, para justificar posições políticas violentas, que concretamente determinam, por exemplo, a condenação de mulheres a frequentar clínicas clandestinas para interromper gravidez indesejada ou insustentável, colocando em risco as próprias vidas.
A legalidade não está compreendida apenas no texto da lei emanada pelo Estado. Está em todas as regras de convívio social, em todo o discurso que nos permite fazer parte de uma determinada sociedade e compreender que esse pertencimento faz algum sentido. Nas decisões e nas escolhas políticas que incidem, direta ou indiretamente, na vida das pessoas. É indissociável da moralidade, embora com ela não se confunda.
O Brasil amarga índices oficiais de fome e miséria que há décadas não experimentávamos. O número de pessoas desocupadas ultrapassa o daquelas com trabalho. As dispensas, sem pagamento algum, se multiplicam. Tudo isso, obviamente, não é decorrência da pandemia. A pandemia, como já se disse e já se demonstrou tantas vezes, encontrou um país atravessado por políticas de exclusão social e concentração de renda. O incentivo ao falso empreendedorismo, que faz com que metade da população economicamente ativa precise trabalhar hoje para se alimentar amanhã, em situação de completa insegurança e precariedade, é um exemplo. A destruição da indústria nacional e da produção agrícola familiar, em favor do agronegócio e da importação de produtos estrangeiros já era realidade bem antes da chegada da covid-19 ao país. A forma como o Estado lida com os direitos das populações originárias e especialmente de quem vive do trabalho, relativizando questões fundamentais como a perda do emprego, também não é novidade.
A péssima gestão da crise sanitária aprofundou a desigualdade e provocou o colapso de um sistema de saúde que já havia sido ferido pelo corte brutal de orçamento provocado pela EC 95. Enquanto outros países comemoram a ausência de mortes e a vacinação praticamente completa de suas populações, seguimos assediados por notícias de incentivo ao uso de remédios ineficazes, com menos da metade da população imunizada e sofrendo mais de 400 mortes a cada 24 horas.
As empresas de Guedes e Campos Neto aparecem, nesse cenário, como uma espécie de deboche com quem está de luto pela perda precoce de alguém amado, com quem conta moedas para comprar osso na fila do açougue. A imoralidade da conduta, diante do adoecimento, da fome e da miséria de milhões de brasileiras e brasileiros, carece de explicações.
O dinheiro depositado em uma offshore rende em dólares. Quanto mais alto o valor do dólar em relação à moeda nacional, mais o dinheiro se valoriza, sem precisar pagar impostos. O ministro da economia, assim como o presidente do banco central, são decisivos para a política econômica interna. Quando também são proprietários de empresas que lucram com a desvalorização da moeda nacional, há conflito de interesses, pois quanto mais perdermos em termos de poder aquisitivo, mais suas empresas renderão. Desde que Paulo Guedes assumiu o ministério da economia, o dólar ficou quase 40% mais caro. Segundo a BBC, a alta desde 2019 implicou um aumento de pelo menos 14 milhões de reais no patrimônio do ministro. Segundo o artigo 319 do Código Penal, satisfazer interesse pessoal, através de ação ou omissão que contrarie os “atos de ofício”, constitui crime de prevaricação.
Essa, porém, não é a questão mais grave.
O que realmente deve nos indignar é o fato de que tal manobra é realizada em um país despedaçado, cujo povo vive o terror de mais de 603 mil vidas perdidas e 21,6 milhões de corpos infectados por uma doença deliberadamente não enfrentada pelo governo. Um país em que 14,7 milhões de pessoas estão sem emprego e 30% do povo vive na pobreza, enquanto mais da metade das famílias experimenta cotidianamente o que se convencionou chamar de insegurança alimentar. Um termo que incomoda, devo confessar, pois quando se diz insegurança alimentar, o que se busca traduzir, como fenômeno social, é a realidade da alimentação insuficiente e inadequada, cujos efeitos, para as gerações futuras, são devastadores. A expressão, portanto, não dá conta da tragédia social que encerra.
Guedes defendeu a alta do dólar, com o argumento vergonhoso de que isso impediria as empregadas domésticas de irem à Disney. Promoveu deliberadamente o aumento do dólar, em prejuízo à economia nacional e com isso obteve vantagem financeira direta. Nada disso parece ser suficiente para provocar o imediato afastamento do cargo, o que duplica o sofrimento psíquico e emocional que esse tipo de assédio promove. Temos um ministro da economia para o qual a tragédia brasileira rende milhões. Ele, porém, não age de modo isolado e isso é fundamental que se compreenda. É sustentado pela ação, pela omissão e pelo silêncio, tão similares àqueles que historicamente se destinam aos grupos sociais que são objeto da violência estatal. O mesmo silêncio que permitiu mais de trezentos anos de escravização, que impediu a responsabilização de quem torturou e matou durante a ditadura civil-militar ou que vem sustentando tantas práticas avessas ao que estabelece a Constituição, de que são exemplos as decisões judiciais punindo o acesso à justiça por parte de quem é reconhecidamente pobre. Decisões que expressam a perspectiva de que quem promove demanda judicial deve saber, de antemão, o resultado do processo ou calar e suportar a perda de direitos que a ordem jurídica reconhece como fundamentais.
A notícia da Offshore de Guedes e de Campos Neto ocorreu na mesma semana em que soubemos do corte no orçamento em pesquisa científica. 92% dos recursos destinados ao Ministério da Ciência e Tecnologia foram remanejados para outras pastas. Nada mais simbólico do obscurantismo negacionista e da omissão generalizada diante do saque que está sendo imposto à nação.
Já não dá mais para falar em esgarçamento do tecido social. É de destruição que se trata. Quem saqueia não deixa nada para trás, não poupa vidas. Às vítimas, que somos todos nós, resta romper com o círculo insano dessa violência assediadora. E não basta uma eleição. É preciso reconhecer a conexão entre todas essas agressões e rejeitá-las. Alterar nossas práticas, nossa linguagem, e denunciá-las. Alterar os mecanismos que permitem a produção deliberada de tanto desalento. Construir uma outra sociabilidade possível, na qual legalidade e moralidade não sejam expressões manipuladas para justificar a naturalização da pilhagem.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.