Por Valdete Souto Severo
Estamos exaustos.
Talvez essa nem seja a palavra certa para designar como muitos e muitas de nós estão se sentindo. É difícil encontrar forma precisa para expressar o que nossos corpos percebem como tristeza, desolação, abandono, dor e fúria. Tudo misturado a uma sensação de impotência e de cansaço.
Três acontecimentos dos últimos dias, embora aparentemente desconexos, formam um quadro único.
Na ONU, Bolsonaro defendeu uma vez mais o que chama de tratamento precoce, disse ter livrado o país do socialismo. Acrescentou que apoia a vacinação e respeita a Constituição, que reduziu o desmatamento e aumentou o número de empregos, que os índios vivem em liberdade e “cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades”.
A CPI apresentou áudio que refere alteração dos registros nos hospitais da Prevent Senior, com a suposta intenção de maquiar os resultados do tratamento de covid com medicamentos de eficácia não comprovada, em relação aos quais – é bom que se diga – nenhum estudo sério foi até agora apresentado. Em reportagem longa, a Revista Piauí mostra que essa atuação resultou, entre outras coisas, a morte do médico Anthony Wong, submetido a tratamento com o chamado kit covid (hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina). Quando piorou, teve subministrada heparina inalatória, metotrexato venoso, além de “mais de vinte sessões de ozonioterapia retal, tratamento que até mesmo o Ministério da Saúde no governo Bolsonaro desaconselha”.
Por fim, dia 23 de setembro uma mulher jovem, de 20 anos, foi morta a tiros enquanto aguardava o ônibus, em frente a um shopping center de Porto Alegre. O homem que a assassinou queria seu celular. Cristiane da Costa dos Santos se atrapalhou e demorou para entregá-lo. A menina morreu na hora.
Os três fatos têm em comum a morte e sua banalização.
A morte da verdade no discurso de Bolsonaro não tem só o efeito de entristecer e confundir, nem pretende apenas agradar seus seguidores. Tem um efeito prático devastador, afinal esconde propositadamente a política em curso no país, fazendo com que cada um de nós se sinta como um louco, que escuta o exato contrário daquilo que experimenta na carne. Algo como o discurso do agressor, que nega a tortura enquanto afirma que suas agressões nada mais fazem do que salvar a vítima de si mesma. As mulheres que já sofreram violência de gênero conhecem bem esse discurso. Pois ele agora é oficial.
O Brasil voltou ao índice de inflação de 1994. Tem mais gente sem trabalho do que empregada. Amarga número recorde de área devastada pelo desmatamento. Está em segundo lugar no número de pessoas mortas por covid no mundo e o que a investigação da CPI e a reportagem mencionada revelam é que esse número não é real. Há muito mais gente infectada e vitimada, do que oficialmente se admite. Esse é o país que, segundo afirmou o presidente na ONU, recuperou a credibilidade externa e hoje “se apresenta como um dos melhores destinos para investimentos”. Só se for para investir em funerárias.
O médico Anthony Wong escolheu expor sua vida a tratamento desaconselhado pela ciência, mas é também em alguma medida vítima de um ilusionismo suicida. Cristiane havia encerrado uma jornada de trabalho, esperava pelo ônibus e morreu, com apenas 20 anos, vítima de uma violência urbana em descontrole. Tantas outras pessoas morreram ou tiveram complicações desnecessárias, não apenas por acreditar no “kit cloroquina”, mas também porque o governo deliberadamente adiou a compra de vacinas, estimulou a aglomeração, debochou do uso de máscaras e mesmo da falta de ar dos adoecidos. Permitiu e de certo modo até incentivou despedidas coletivas, não distribuiu renda. Ao contrário, autorizou redução de salário.
Essa atuação concreta para banalizar e provocar a morte atinge especialmente quem vive do trabalho, basta pensar nas trabalhadoras e trabalhadores que de algum modo tiveram de atuar no tratamento, no cuidado ou no velório e enterro de pessoas que, como Anthony, tiveram negada a sua condição de infectados pela covid-19. Elas foram expostas à contaminação, sem que tivessem escolha. Por isso, insisto não apenas na responsabilidade de quem, tendo o dever de atuar para evitar a morte, a promove quase como uma bandeira de campanha eleitoral, mas na discussão pública sobre esse comportamento autista, que faz com que a vida siga enquanto reina o caos.
Essa tolerância inadmissível, que também se concretiza como violência, representada, por exemplo, pela atuação de parlamentares e ministros que, mesmo declarando-se indignados, seguem inertes. E cumprem o triste papel de promover o desmanche de toda a rede de proteção social, com decisões contrárias à Constituição ou alterações legislativas, como aquela prevista na PEC 32.
Há um compromisso velado com a violência, que é assumido também pelos meios de comunicação de massa, quando produzem reportagens emocionadas sobre mortes como a de Cristiane, mas não problematizam nem reconhecem suas verdadeiras razões. Ao contrário, contribuem para o drama social, contratando empregados como falsos autônomos, incentivando a precarização do trabalho ou justificando, cotidianamente, a continuidade de escolhas políticas que empobrecem a maior parte das pessoas, enquanto torna algumas poucas bilionárias.
Cristiane é vítima de uma política de morte, que pauperiza e segrega em prisões a mesma parcela do povo brasileiro, para a qual expor-se à pandemia, trabalhar 12 horas sem intervalo, receber muito pouco e esperar pelo ônibus correndo o risco de perder a vida tornou-se algo cotidiano. Isso não é de agora. O que agora se soma a essa realidade de violência estrutural direcionada a quem vive do trabalho é a adoção de um discurso coletivo que nega e ao mesmo tempo normaliza essas situações, deixando-nos em completo desamparo.
Afinal de contas, por que a ONU permitiu que Bolsonaro fizesse a abertura do encontro, se já sabe, pelas tantas denúncias formuladas, o que está ocorrendo no Brasil? Como então fingir que tudo está bem e dar voz à ignorância? Por que as tantas denúncias feitas a organismos internacionais, ao STF e ao Parlamento não surtem efeito algum?
Muitos de nós também seguem vivendo como se nada estivesse ocorrendo, sob a ilusão de que não são o alvo, quando na realidade somos todos afetados. Talvez seja demasiada a agressão e isso de algum modo nos paralise, pois é certamente difícil lidar com tanto desajuste.
Reconhecer nossa vulnerabilidade é já um primeiro passo importante.
Precisamos compreender que não vivemos a normalidade. Ninguém pode estar bem com o que está acontecendo. E é certamente compreensível que tenhamos a sensação de desorientação diante de tanta violência.
Entender como fatos aparentemente diversos estão conectados e se revelam como sintoma do tempo presente, de uma realidade que precisamos urgentemente enfrentar, é nossa tarefa agora. Afinal, é preciso seguir, reconhecendo nossa imersão em um processo histórico que nos atravessa, mas também nos supera, e nosso compromisso com um futuro que ainda está por vir.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.