A reforma administrativa proposta pelo Poder Executivo e atualmente em debate no Congresso Nacional ignora problemas históricos da administração pública brasileira. A depender do rumo que tome, pode colocar em xeque avanços realizados nas últimas décadas na construção do Estado brasileiro e até mesmo debilitar a claudicante democracia brasileira.
Análises demonstraram como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32, defendida pelo governo federal, não vai conseguir resolver os problemas de gestão e eficiência, que deveriam ser centrais numa reforma administrativa, nem o corte de despesas tão almejado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A reforma também não enfrenta e pode aumentar a desigualdade histórica dentro do serviço público, ao deixar de fora os membros do Judiciário e do Legislativo. Por fim, temas centrais, como a estrutura administrativa engessada, a politização dos cargos gerenciais e o controle disfuncional, são completamente ignorados.
Além desses pontos, que deveriam ser prioridade em qualquer reforma administrativa digna desse nome, a proposta mexe num elemento estruturante do Estado brasileiro: a estabilidade no serviço público.
A proposta original da PEC 32 propunha a criação de cinco tipos de vínculos, dos quais apenas um deles, as chamadas carreiras típicas de Estado, teriam estabilidade. Mas não definia critérios para o que seriam as carreiras típicas, delegando o tema para uma discussão posterior. O substitutivo apresentado pelo relator da PEC, o deputado Arthur Maia (DEM-BA), fez um pequeno avanço ao propor critérios para a definição das carreiras típicas, que passam a ser aquelas relativas à segurança pública, diplomacia, inteligência do Estado, gestão governamental, advocacia e defensoria pública, elaboração orçamentária, participação em processos judiciais e legislativos, atuação do Ministério Público, atividades de tributação, finanças, regulação, fiscalização e controle. No entanto, além de não haver ainda definição sobre o que são carreiras de “inteligência”, “gestão” e “orçamento”, o substitutivo abre espaço para que as demais funções possam ser terceirizadas ou ocupadas por servidores temporários – o que irá gerar grande rotatividade na já tão frágil máquina administrativa.
Se aprovada nesses moldes, a reforma administrativa fará com que vários serviços na saúde, educação e assistência social, entre outros, passem a ser ofertados por organizações sociais ou por pessoas com vínculos de trabalho precários e/ou temporários, que podem ser demitidas sumariamente. Imagine o que isso significa, por exemplo, quando um profissional de saúde se recusar a ministrar medicação sem comprovação científica a um parente do prefeito em um município pequeno. Ou quando um profissional do Ibama, Ipea ou ICMBio publicar relatos de problemas na administração pública que evidenciem a má gestão governamental. Ou quando o professor universitário publicar um artigo científico que desagrade ao presidente. Ou ainda quando a professora da escola der suspensão para o filho de um vereador por indisciplina em sala de aula. Ou quando o servidor do IBGE publicar índices de desemprego que não agradem ao ministro da Economia.
O fim da estabilidade dos servidores públicos é tratado muitas vezes de forma leviana, como se fosse a “bala de prata” que resolveria o problema de um suposto Estado ineficiente, repleto de funcionários indolentes ou “parasitas”, para usar a expressão de Paulo Guedes. Essa visão, eivada de preconceitos, não apenas carece de fundamentação, como perde de vista aspectos cruciais concernentes ao funcionamento do Estado e da própria democracia.
A estabilidade no serviço público visa, antes de tudo, à perenidade da atuação do corpo de servidores do Estado, garantindo assim continuidade nas políticas públicas, a despeito de mudanças políticas ou trocas de governo. Garante, no limite, a própria existência do Estado, independentemente de governos que venham a ocupá-lo, o que ajuda a evitar que as leis e as políticas sejam colocadas a serviço do mandatário da vez. Num país como o Brasil, onde a democracia, com sua alternância de poder, e a institucionalização de políticas públicas, como educação e saúde universais, são processos ainda em construção, a estabilidade dos servidores ganha uma relevância ainda maior.
A construção institucional do SUS, por exemplo, que tanto orgulha os brasileiros, só foi possível com a consolidação nos estados de uma burocracia estável, concursada, com alta capacitação e que permaneceu no cargo ao longo das últimas décadas. Pesquisas mostram, inclusive, que, em municípios com uma estrutura burocrática menos estável, os resultados das políticas são piores.
Há outros aspectos menos óbvios ou menos salientes no debate público, que precisam ser levados em conta, por serem centrais para a defesa da democracia: a interferência política e a captura econômica.
Um governante pode e deve direcionar as políticas públicas conforme a plataforma que apresentou nas eleições e sob escrutínio da sociedade e das instituições. O que não pode acontecer é o uso do poder político para interferir na burocracia pública com vistas a proteger a si ou a aliados ou, mais ainda, a desmontar políticas públicas garantidas constitucionalmente. Com relação ao primeiro caso, vale recordar a exoneração em 2019 do fiscal do Ibama que multou Jair Bolsonaro por pesca ilegal, anos antes de ele se tornar presidente, bem como o afastamento do delegado da Polícia Federal que investigou o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
A área ambiental, aliás, é emblemática da tentativa presidencial de desmontar políticas públicas. Bolsonaro utiliza diversas estratégias para esse fim, como a desautorização simbólica do trabalho dos órgãos ambientais, o estrangulamento orçamentário, a anulação de multas, a exoneração de servidores em cargos comissionados, o esvaziamento da participação social e até mudanças nas regras fiscalizatórias. Não fosse o trabalho dos servidores de carreira do Ibama, do ICMBio e da Polícia Federal, a política ambiental estaria muito mais fragilizada. A estabilidade no serviço público funciona, dessa maneira, como um escudo contra o personalismo e como garantia mínima de uma atuação independente da parte dos servidores, a fim de executarem as políticas públicas.
A situação vivida pelo país durante a pandemia fornece outros exemplos da importância dessa autonomia em face das interferências políticas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sofreu fortes pressões para acelerar a aprovação de vacinas – o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), chegou a afirmar no início do ano que a agência seria “enquadrada”. Um dos diversos casos de corrupção revelados pela CPI da Covid só pôde começar a ser elucidado após as denúncias feitas por um servidor de carreira do Ministério da Saúde. Tanto a capacidade de resistir a pressões políticas como a possibilidade de expor casos de corrupção seriam muito debilitadas caso o governo tivesse plena faculdade de substituir funcionários públicos a seu bel-prazer.
A estabilidade também pode favorecer a blindagem da administração pública contra a captura por interesses econômicos. Diversos funcionários públicos fiscalizam empresas nas mais variadas atividades econômicas. Por vezes, irregularidades podem requerer a aplicação de penalidades. Um cargo estável não apenas respalda o servidor a aplicar a lei mesmo contra poderosos interesses econômicos como tende a desincentivar eventuais práticas corruptas de cooptação.
Uma situação delicada na burocracia pública é a chamada “porta giratória” – a migração de indivíduos do setor público para o privado, ou vice-versa. A preocupação se dá especialmente quando o sentido dessa movimentação é do público para o privado, ou seja, quando funcionários governamentais deixam seus postos – nos quais adquiriram informação privilegiada, redes e contatos – e assumem posições em empresas. No sentido oposto, do privado para o público, muitas vezes os ocupantes de cargos comissionados passam a defender dentro do Estado os interesses de uma empresa ou do mercado de onde vieram. A estabilidade pode garantir a perenidade do corpo técnico de servidores em seus postos, evitando a migração, ao mesmo tempo em que previne relações promíscuas com o setor privado.
Exemplo de proteção contra a politização da alta burocracia e a captura econômica foi observado na pesquisa “Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)”, que tratou dos interesses que governam o setor de planos de saúde no Brasil. O corpo de servidores técnicos da ANS serviu como contrapeso a medidas de flexibilização das regulações de proteção ao consumidor ao longo da história da agência, especialmente a partir de 2010, quando a composição da diretoria da agência passou a contar com mais pessoas que defendiam medidas mais liberais com relação aos planos de saúde. Em 2016, num ato sem precedentes nas agências reguladoras, três diretoras – todas elas servidoras públicas – se articularam para destituir o diretor-presidente da diretoria mais poderosa da ANS, redirecionando-o para uma de menor prestígio. Esse diretor era oriundo de uma organização que havia questionado praticamente toda a lei que regulamentou o setor dos planos de saúde em 1998.
Ao favorecer blindagem às influências externas, a estabilidade no serviço público pode ser entendida como mais um mecanismo de freios e contrapesos do sistema político, contribuindo, assim, para o fortalecimento de nossa democracia. Os servidores públicos não podem nem devem substituir os eleitos e os juízes, mas têm um relevante papel de controle a cumprir no intricado jogo entre os poderes.
Não podemos ignorar os diversos problemas de gestão na administração pública do país, bem como o corporativismo existente entre os servidores. É certo que precisamos de uma reforma que melhore a gestão pública brasileira e a faça mais inclusiva, transparente e eficiente, mas a proposta de emenda nº 32 não vai nessa direção. Fazer uma discussão mais qualificada dessa PEC, e em particular da estabilidade no serviço público, é um modo de fortalecer a democracia brasileira. Como a pandemia mostrou a todos, os servidores públicos estáveis, especialmente os da saúde, têm um papel central no funcionamento do Estado – um papel muito maior do que parte considerável do debate público ousa admitir.
Fonte: Piauí, via OutrasPalavras