Por Marcos Aurélio Ruy
Zé Keti, um dos mais fundamentais compositores da música popular brasileira completaria 100 anos nesta quinta-feira (16), mas por azar do destino ele faleceu em 14 de novembro de 1999.
A sua obra, porém, ficou para o deleite de todas as pessoas que amam boa música. Nasceu José Flores de Jesus virou Zé Keti por causa do apelido de criança Zé Quietinho, contam historiadores.
Em Acender as Velas, parceria com Hortêncio Rocha, denuncia o que vivemos ainda hoje nos morros e nas favelas com a ausência do Estado e, portanto, de políticas públicas de toda ordem.
Acender as velas
O Estado só aparece com as operações policiais e suas balas perdidas que sempre são encontradas em corpos negros, quase sempre jovens, quando não crianças ou mulheres grávidas.
“Acender as velas
Já é profissão
Quando não tem samba
Tem desilusão
É mais um coração
Que deixa de bater
Um anjo vai pro céu
Deus me perdoe
Mas vou dizer
O doutor chegou tarde demais
Porque no morro
Não tem automóvel pra subir
Não tem telefone pra chamar
E não tem beleza pra se ver
E a gente morre sem querer morrer”
A atualidade das centenas de canções que legou, é sentida em seus versos ritmados e cantados no formato desse gênero genuinamente brasileiro, o samba, que nasceu do coração e da mente dos seres humanos escravizados, também sem querer, para contestar alguns “intelectuais”, que insistem em dizer o contrário.
Zé Keti foi e continua sendo a voz do morro consciente de seu valor e da importância de mostrar a todas as pessoas como a vida pode ser muito melhor, sem a ganância, característica do sistema capitalista, atualmente com a ideologia do empreendedorismo e do individualismo para se dar bem a qualquer preço.
Voz do morro ao lado de Cartola, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Noel Rosa, Pixinguinha, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Elza Soares, Elizeth Cardoso e inúmeros outros gigantes da música popular brasileira.
Suas obras encantam também por vislumbrar a importância de combater o preconceito, a desigualdade, a violência contra os mais vulneráveis e da defesa da valorização da arte, da cultura e das pessoas que vivem do trabalho.
A Voz do Morro; canta: o Coro UNER Tahil Mapu
Iniciou carreira na ala dos compositores da Portela para o Brasil e o mundo cantando as dores, os amores e os anseios dos mais pobres em descer para o asfalto e mostrar o seu valor. Como cantou em A Voz do Morro (1955):
“Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei dos terreiros”
Diz que Fui Por Aí
A vida na favela nunca mais foi a mesma depois das canções de Zé Keti ecoarem em todo o mundo. Porque se a feiura doesse, o Tio Sam entraria no samba e aprenderia o português brasileiro para entender esse povo singular. Assim como Zé Keti esbanja talento ao cantar suas vivências, as dores, os amores, a vida enfim. Então ele Diz que Fui Por Aí (1964):
“Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí
Levando o violão
Embaixo do braço
Em qualquer esquina eu paro
Qualquer botequim eu entro
Se houver motivo
É mais um samba que eu faço
Se quiserem saber se volto
Diga que sim, mas só depois
Que a saudade se afastar de mim
Mas só depois que a saudade
Se afastar de mim”
Tamanho o seu amor à arte e ao país, representando o amor pelo que o país representa na vida de quem vive aqui e deveria ter uma vida muito melhor, com muito mais respeito. Junto com essa gente invisível para a elite e para a classe média, que só enxergam o próprio umbigo. Essa gente que chora a morte dos filhos, a fome, a dureza de uma vida castigada com o suor diário em busca do pão de cada dia, cada dia mais caro.
Máscara Negra; canta: Dalva de Oliveira
Com Hildebrando Matos, compôs a marcha-rancho Máscara Negra (1967):
“Tanto riso,
Oh! quanta alegria,
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão!
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano,
Foi no carnaval que passou,
Eu sou aquele Pierrot,
Que te abraçou,
E te beijou, meu amor,
Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade.
Vou beijar-te agora,
Não me leve a mal,
Hoje é Carnaval”
Opinião; canta: Nara Leão
Despontou para o grande público com o importante show Opinião em 1964, ao lado de Nara Leão e João do Valle, quando nasceu o clássico samba de sua autoria Opinião. Impossível alguém nunca ter ouvido dos versos:
“Podem me prender, podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião.
Daqui do morro eu não saio não”
Estes versos refletem, 57 anos depois de sua gravação, a resistência atual dos setores progressistas da sociedade, da classe trabalhadora, das mulheres, da população negra, dos povos indígenas, da comunidade LGBTQIA+ contra o obscurantismo e os retrocessos representados por Bolsonaro, no momento, a resistência é essencial para evitar as prisões, a fome e valorizar a cultura de um país que se faz com o suor dessa gente humilde, que só quer vida boa e dignidade.