No discurso pronunciado segunda-feira (16) em que procurou justificar a atabalhoada retirada das tropas dos EUA estacionadas há 20 anos no Afeganistão, o que abriu caminho à retomada do poder pelos talibãs, o presidente Joe Biden admitiu que não tinha como derrotar o grupo guerrilheiro e impor a vontade de Washington ao povo afegão.
Ao longo dos séculos, o Afeganistão foi vítima de invasões promovidas por diferentes potências. Seu povo, amante da independência, nunca se dobrou aos invasores, que invariavelmente acabaram saindo do país derrotados. Foi o caso da Inglaterra no século 19, da União Soviética no século 20 e, agora, dos EUA, com cenas em Cabul que remetem à histórica e inesquecível derrota do imperialismo para os comunistas no Vietnã.
Segundo Joe Biden os EUA gastaram mais de US 1 trilhão em duas décadas de conflito. Saíram mais pobres, cabisbaixos, derrotados e desmoralizados porque não levaram em conta as lições da história.
O belo artigo escrito em 1858 pelo parceiro teórico de Karl Marx, Friedrich Engels, intitulado “A derrota britânica no Afeganistão”, que disseca o modus operandi do império britânico e do imperialismo, ainda guarda atualidade neste sentido.
Por Friedrich Engels
O Afeganistão é um grande país asiático situado a noroeste da Índia. Antigamente ele incluía as províncias persas de Khorassan e Kohistan, assim como Herat, o Baluchistão, a Caxemira, Sind e grande parte do Punjab. Em suas fronteiras atuais, sua população certamente ultrapassa os 4 milhões de habitantes.
A geografia do Afeganistão é extremamente irregular: altos planaltos, montanhas elevadas, vales profundos e desfiladeiros. Como todos os países tropicais e montanhosos, todos os climas podem ser encontrados nele. No Hindu Kush, a neve recobre os picos mais altos durante o ano inteiro, e nos vales o termômetro pode chegar a 55 C.
Febres, catarros e infecções oftálmicas são as doenças principais. De tempos em tempos, a varíola devasta o país. O solo é de uma fertilidade exuberante. Tamareiras crescem nos oásis em meio a desertos de areia, enquanto frutas e legumes europeus vicejam nas encostas das montanhas. As florestas são povoadas por ursos, lobos e raposas; leões, leopardos e tigres também podem ser encontrados nas regiões propícias a seu modo de vida.
As principais cidades do Afeganistão são Cabul (a capital), Ghazni, Peshawar [hoje pertencente ao Paquistão] e Candahar. Cabul é uma bela cidade situada às margens do rio de mesmo nome. Suas construções, feitas de madeira, são limpas e espaçosas, e a cidade, cercada de belos jardins, é muito agradável. Situada em meio a povoados vizinhos, Cabul fica no meio de uma grande planície cercada por baixas colinas.
A posição geográfica do Afeganistão e o caráter particular de sua população conferem ao país uma importância política nos assuntos da Ásia Central que não deve ser subestimada. É uma monarquia, mas a autoridade do rei sobre seus súditos fogosos e turbulentos é pessoal e extremamente incerta. O reino é dividido em províncias, cada qual dirigida por um representante do soberano, que recolhe os impostos e os remete à capital.
Os afegãos são um povo corajoso, resistente e independente. Dedicam-se basicamente ao pastoreio e à agricultura, evitando o comércio, que relegam, com desprezo, a hindus e outros habitantes das cidades. Para eles, a guerra é exaltante e os alivia de suas ocupações monótonas e laboriosas.
Os afegãos se dividem em clãs cujos chefes exercem uma espécie de domínio feudal. Seu ódio pelas regras e seu amor pela independência individual são os únicos obstáculos que impedem esse país de tornar-se uma nação poderosa. Entretanto essa ausência de leis e esse caráter imprevisível fazem deles vizinhos perigosos: eles correm o risco de se deixar levar por oscilações de humor ou por intrigantes que, com astúcia, exacerbam suas paixões. As duas tribos principais, os dooranes e os ghilgies, se combatem de maneira incessante.
O contingente militar é constituído principalmente pelos dooranes. O restante do exército é recrutado entre outros clãs ou entre aventureiros que se engajam na esperança de obter pagamento ou butim. Entretanto, na ausência de provocações, os afegãos são vistos como um povo generoso e liberal. Os deveres da hospitalidade são sagrados. Os afegãos são de religião muçulmana e pertencem à corrente sunita, mas não são sectários, fazendo alianças frequentes com a corrente xiita.
O Afeganistão ameaçado
Em 1835 o capitão britânico Alexander Burnes foi enviado a Cabul como embaixador. Naquela época, Rússia e Inglaterra disputavam espaço na Pérsia [atual Irã] e na Ásia Central. Em 1838, os persas, com a ajuda da Rússia, montaram um cerco a Herat, chave do Afeganistão e da Índia.
Um persa e um agente russo chegaram a Cabul, e, depois da contínua recusa de qualquer engajamento verdadeiro por parte dos ingleses, Dost Mohammed, soberano de Cabul, foi obrigado a aceitar os avanços de outras partes.
Burnes partiu, e lorde Auckland, então governador-geral das Índias, decidiu castigar Dost Mohammed por aquilo que ele próprio o forçara a fazer. Ele tomou a decisão de destroná-lo e de instalar em seu lugar o xá Soojah, que se tornara hóspede do governo indiano. Um tratado foi concluído entre xá Soojah e os sikhs. O xá começou a reunir um Exército, pago e comandado pelos ingleses; uma tropa anglo-indiana foi concentrada no Sutlej.
Em 20 de fevereiro de 1839 o Exército britânico atravessou o rio Indus. Ele possuía cerca de 12 mil homens, acompanhados de mais de 40 mil civis, sem contar as novas tropas arregimentadas pelo xá. O desfiladeiro de Bolan foi atravessado em março. A falta de provisões e de forragem começou a se fazer sentir; os camelos caíam mortos às centenas, e grande parte das bagagens foi perdida. Em 25 de abril, as tropas penetraram em Candahar, que já havia sido abandonada pelos príncipes afegãos, irmãos de Dost Mohammed.
Após um descanso de dois meses, sir John Keane, o comandante, avançou para o norte com o corpo principal do exército, deixando uma brigada em Candahar sob as ordens de Nott. Ghazni, a fortaleza inexpugnável do Afeganistão, foi conquistada em 22 de julho: um desertor tinha informado ao exércit////o que a entrada de Cabul era a única a não ter sido murada.
Assim, ela foi derrubada, e a praça foi tomada de assalto. Após esse desastre, o exército reunido por Dost Mohammed se dispersou imediatamente, e também Cabul abriu suas portas, em 6 de agosto. Xá Soojah foi instalado no trono conforme o previsto, mas o verdadeiro poder do governo ficou nas mãos de McNaghten, que, além disso, pagava todas as despesas de xá Soojah com dinheiro do Tesouro indiano.
A conquista do Afeganistão parecia consolidada, e uma parte considerável das tropas foi enviada de volta. Mas os afegãos não estavam nada satisfeitos de serem governados por “kafir feringhee” (infiéis europeus), e, ao longo dos anos 1840 e 1841, as insurreições se sucederam em todas as regiões do país.
As tropas anglo-indianas tinham que se movimentar sem parar. Mesmo assim, McNaghten declarou que essa era a situação normal da sociedade afegã e escreveu à Inglaterra dizendo que tudo ia bem e que a autoridade de xá Soojah estava crescendo. Os avisos dados por oficiais militares e outros agentes políticos não foram ouvidos. Dost Mohammed se rendera aos ingleses em outubro de 1840 e fora mandado de volta à Índia; todos os levantes até o verão de 1841 foram reprimidos com sucesso.
Em outubro, McNaghten, nomeado governador de Bombaim, tencionava partir para a Índia com outro corpo do Exército. Mas uma tempestade eclodiu. A ocupação do Afeganistão estava custando aos cofres indianos 1,25 milhão de libras por ano: era preciso pagar 16 mil soldados, os anglo-indianos e os de xá Soojah, no Afeganistão; 3.000 outros estavam no Sind e no estreito de Bolan.
O fausto real de xá Soojah, os salários de seus funcionários e as despesas de sua corte eram pagos pelo Tesouro indiano. Para completar, os chefes afegãos eram subvencionados ou, melhor dizendo, subornados pela mesma fonte, para garantir que não causassem problemas.
McNaghten foi informado da impossibilidade de continuar gastando dinheiro nesse ritmo. Ele tentou restringir as despesas, mas a única maneira de consegui-lo seria reduzir as alocações pagas aos chefes. No mesmo dia em que tentou fazê-lo, os chefes fomentaram uma conspiração para exterminar os ingleses; o próprio McNaghten provocou a concentração de forças insurrecionais que, até então, vinham lutando separadamente contra os invasores, sem unidade nem concerto. Não há dúvida, tampouco, de que naquele momento o ódio dos afegãos contra o domínio dos ingleses atingiu seu auge.
Em Cabul, os ingleses eram comandados pelo general Elphinstone, um homem velho, acometido de gota, indeciso e totalmente incapacitado, que dava ordens contraditórias a todo momento. As tropas ocupavam uma espécie de campo fortificado, tão extenso que a guarnição mal chegava para vigiar os baluartes, muito menos para destacar homens para agir no terreno.
As obras eram tão imperfeitas que era possível atravessar o fosso e o parapeito a cavalo. Como se isso não bastasse, o campo era dominado de perto pelas montanhas vizinhas, a uma distância que praticamente podia ser coberta por um tiro de mosquete.
Para coroar o absurdo desses arranjos, todas as provisões e materiais médicos se encontravam em dois fortes diferentes, situados a certa distância do campo, do qual eram separados, ainda, por jardins cercados de muros e por um outro forte pequeno que os ingleses não ocupavam. A cidadela de Bala Hissar, em Cabul, teria oferecido alojamentos de inverno sólidos e excelentes para o exército todo, mas, para agradar ao xá Soojah, tinha sido ocupada.
A revolta eclodiu em 2 de novembro de 1841. A casa de Alexander Burnes, na cidade, foi atacada, e ele foi assassinado. O general inglês não fez nada, e a impunidade fortaleceu a insurreição. Totalmente incapacitado, à mercê de toda espécie de conselhos contraditórios, em pouco tempo Elphinstone se viu reduzido à confusão descrita por Napoleão em três palavras: ordem, contra-ordem, desordem.
A Bala Hissar continuava desocupada. Algumas companhias foram enviadas para fazer frente aos milhares de insurretos e, naturalmente, foram derrotadas, o que fortaleceu ainda mais a determinação dos afegãos.
No dia 3 de novembro foram ocupados os fortes próximos ao campo. No dia 9, o forte da intendência (defendido por apenas 80 homens) foi tomado pelos afegãos, e os ingleses não tiveram mais nada para comer.
No dia 5, Elphinstone já falava em comprar o direito de deixar o país. De fato, na metade do mês de novembro, sua indecisão e incapacidade já tinham desmoralizado as tropas a tal ponto que nem os europeus nem os sipaios estavam em condições de enfrentar os afegãos sobre o campo de batalha. Começaram as negociações. Enquanto elas aconteciam, McNaghten foi assassinado durante uma conferência com os chefes afegãos.
A neve começava a cobrir o chão, e as provisões escasseavam quando finalmente, em 1º de janeiro de 1842, foi acertada a rendição. Todo o dinheiro, 190 mil libras, deveria ser entregue aos afegãos, e papéis seriam assinados para a remessa de outras 140 mil libras.
Toda a artilharia e munições, excetuando seis canhões e três peças de artilharia móvel, deveriam permanecer onde estavam. O Afeganistão inteiro deveria ser desocupado. Em troca, os chefes prometeram salvo-condutos, provisões e animais de carga.
No dia 5 de janeiro, os ingleses deixaram o país, sendo 4.500 soldados e 12 mil civis. Um dia de marcha bastou para dissipar os derradeiros vestígios de ordem e para misturar soldados e civis numa confusão lastimável, que impossibilitava qualquer resistência.
O frio, a neve e a falta de víveres tiveram o mesmo efeito que haviam exercido na retirada de Napoleão de Moscou, em 1812. Mas, em lugar dos cossacos, que mantiveram uma distância respeitável dos franceses, os atiradores de elite afegãos, furiosos e armados com mosquetes de longo alcance, ocupavam todos os picos e atormentavam os ingleses.
Os chefes que tinham assinado os termos da capitulação não conseguiam nem queriam refrear as tribos das montanhas. O desfiladeiro de Koord-Cabul foi o túmulo de quase todo o exército, e os poucos sobreviventes, menos de 200 europeus, caíram na entrada do desfiladeiro de Jugduluk. Um único homem, o doutor Brydon, conseguiu alcançar Jalalabad e contar a história.
Entretanto muitos oficiais foram feitos prisioneiros pelos afegãos; Jalalabad estava nas mãos da brigada de Sale. Sua rendição foi exigida, mas ele se recusou a esvaziar a cidade, assim como fez Nott em Candahar. Ghazni já havia caído; não restara um único homem na cidade que soubesse utilizar a artilharia, e os sipaios tinham sucumbido ao clima.
Enquanto isso, perto da fronteira, assim que as autoridades britânicas souberam do desastre de Cabul, concentraram em Peshawar as tropas destinadas a tomar o lugar dos regimentos do Afeganistão. Mas faltavam meios de transporte, e grande número de sipaios caiu doente. Em fevereiro, o general Pollock assumiu o comando e, no final de março de 1842, recebeu reforços. Ele forçou passagem pelo desfiladeiro de Khyber e avançou para socorrer Sale em Jalalabad. Alguns dias antes, Sale havia derrotado completamente o exército afegão que o cercava.
Lorde Ellenborough, governador-geral das Índias, ordenou a retirada das tropas, mas Nott e Pollock encontraram uma boa desculpa para não fazê-lo, alegando a falta de meios de transporte. Finalmente, no início de julho, a opinião pública na Índia obrigou lorde Ellenborough a fazer alguma coisa para restaurar a honra da nação e o prestígio do exército britânico; assim, ele autorizou o avanço sobre Cabul a partir de Candahar e Jalalabad.
Na metade do mês de agosto, Pollock e Nott chegaram a um acordo com relação a seus movimentos, e, em 20 de agosto, Pollock abriu caminho em direção a Cabul. Ele chegou a Gundamuck, derrotou uma tropa afegã no dia 23, tomou o desfiladeiro de Jugduluk em 8 de setembro, derrotou as forças inimigas reunidas em Tezeen no dia 13 e, no dia 15, montou acampamento sob as muralhas de Cabul.
Enquanto isso, Nott deixava Candahar e marchava para Ghazni com suas tropas. Após alguns combates pouco importantes, derrotou um grande exército de afegãos em 30 de agosto, tomou Ghazni, abandonada pelo inimigo em 6 de setembro, destruindo a cidade, derrotou novamente os afegãos na praça-forte de Alydan e, no dia 17 de setembro, chegou perto de Cabul, onde Pollock imediatamente comunicou-se com ele.
Xá Soojah tinha sido assassinado muito antes por chefes afegãos e, desde então, não havia governo real no Afeganistão. Futteh Jung, filho de Soojah, era rei apenas no nome. Pollock enviou um destacamento de cavalaria até os prisioneiros de Cabul, mas eles tinham conseguido subornar seus guardas, e estes o enfrentaram no caminho.
Em represália, o bazar de Cabul foi destruído, e, nessa ocasião, os soldados pilharam parte da cidade e massacraram grande número de seus habitantes. Em 12 de outubro os ingleses deixaram Cabul e retornaram à Índia, passando por Jalalabad e Peshawar. Temendo perder seu cargo, Futteh Jung os seguiu. Liberto do cativeiro, Dost Mohammed retomou seu reino. E assim terminou a tentativa dos ingleses de instalar no Afeganistão um príncipe fabricado por eles.