Por Valdete Souto Severo (Foto: MPT)
“As vezes eu falo com a vida
As vezes é ela quem diz
Qual a paz que eu não quero
Conservar para tentar ser feliz”O Rappa
Faz muito tempo que o tema da conciliação nas relações de trabalho me ocupa. Estou completando 20 anos de magistratura. Incontáveis, portanto, as audiências que realizei ao longo desse tempo. Em grande parte delas, houve conciliação. E efetivamente o ajuste entre as partes traduziu-se como o melhor caminho para aquela situação. Com isso, pretendo deixar claro que a conciliação não é um problema em si. O uso que dela fazemos, entretanto, tem permitido que empresas que promovem adoecimento, acabem livres da mira da fiscalização ou da atuação do Ministério Público do Trabalho. Sim, porque a conciliação invisibiliza o descumprimento de direitos que a Constituição reconhece como fundamentais.
Não é raro estarmos diante de situações de racismo, de assédio sexual, de exigência de jornadas exaustivas; danos coletivos que se resolvem por acordos que desconsideram todo o drama envolvido nessas situações, assim como todas as consequências sociais desses danos. E mais: desconsideram que a ausência de instrução e decisão em casos como esses, muitas vezes, implicam a formação de uma cultura, pela qual torna-se não apenas possível, mas inclusive vantajoso, atuar em contrariedade à ordem jurídico-constitucional.
Desde que reconhecida a fundamentalidade dos direitos trabalhistas, iniciou-se um movimento de incentivo à conciliação que, no limite, impede a atuação judicial, no sentido de fazer valer tais direitos. É possível afirmar, sem exagero, que a ode à conciliação têm atuado nas últimas décadas como um dos principais mecanismos de neutralização da força transformadora do texto constitucional. Em lugar de garantir a efetividade dos direitos, constrói-se a falsa noção de que a razão da existência do Poder Judiciário é conciliar, mediar, arbitrar. O objetivo está explícito no site do CNJ: “a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos tem por objetivo”, “em última análise, a mudança de mentalidade dos operadores do Direito e da própria comunidade em relação a esses métodos, com a finalidade de alcançar a pacificação social”.
Afinal, quem não quer paz?
Ocorre que paz sem voz, como diz a música do Rappa, não é paz, é medo.
O estímulo à conciliação, a avaliação da magistratura a partir da produtividade quantitativa, a informatização do procedimento (PJe) e as regras que permitem condenação de trabalhadora ou trabalhador pobre ao pagamento de custas e honorários formam uma rede da qual é bem difícil escapar. Somam-se às campanhas de conciliação, às semanas dedicadas à composição dos litígios e seus números sempre festejados; aos prêmios oferecidos aos tribunais e aos juízes e juízas que batem recorde em conciliações ou desenvolvem técnicas de persuasão eficazes. Tudo isso desconsiderando que a entrega da prestação jurisdicional na sua forma mais plena emerge da decisão judicial, e não de um ajuste de vontades.
O Direito do Trabalho se justifica historicamente pelo reconhecimento de que nessa relação não há livre manifestação de vontade. Nem durante o vínculo, nem muito menos depois que ele acaba, quando o desemprego e a fome influenciam decisivamente as escolhas, por vezes trágicas, de quem depende necessariamente de um trabalho para sobreviver. Direitos trabalhistas não se reduzem aos créditos que representam. Envolvem tempo de vida; saúde física e emocional. Se há inegável vantagem na pacificação do conflito social, é certo que essa pacificação deve implicar a realização de justiça social, sob pena de simplesmente afastar o conflito, sem resolvê-lo. Afinal, a própria segurança jurídica constitui ideal que se sustenta na ideia de um Poder Judiciário forte, que faça valer os direitos, que não se submeta a pressões nem seja assediado pelo cumprimento de metas.
Um que não é cego à realidade social.
O movimento que justificou a existência da Justiça do Trabalho e a correspondente aposta em um processo mais célere e efetivo e que acabou sendo substituído pela aposta na conciliação em lugar da decisão judicial, teve, a partir do início deste Século, nova mudança de curso.
Hoje, todas as forças, inclusive do Poder Judiciário Trabalhista, parecem estar direcionadas à aposta na conciliação extrajudicial. Para isso, porém, o Poder Judiciário é desnecessário. Essa é a grande emboscada.
Todo o movimento que o Poder Judiciário tem feito, de incentivo à conciliação, com a criação de núcleos e centros, a afetação de estruturas, o aporte financeiro em campanhas e a preparação de conciliadores é um movimento autofágico. O Documento 319 do Banco Mundial, há quase 30 anos, já falava nos mecanismos privados e alternativos de resolução de conflitos. A Lei 9958, que alterou dispositivos da CLT no ano 2000, estimulava a realização de acordos extrajudiciais, com a pretensão, inclusive, de que a sua realização implicasse vedação do acesso à Justiça, o que só não se consolidou em razão de uma atuação comprometida e combativa da advocacia trabalhista. A Resolução 288 do CNJ trata de mediação pré-processual, passível de ser feita inclusive sem a presença de advogada(o)s, e a Lei 13.467 estimula a realização de acordos extrajudiciais.
Qual é o próximo passo? Câmaras privadas de conciliação, mediação e arbitragem já existem, oferecendo celeridade e eficiência, esses dois mantras da gestão liberal. E os direitos de quem vive do trabalho, quem os garante?
Trata-se de um movimento que desvirtua e impede a verdadeira conciliação, enquanto sabota os objetivos de uma justiça social, materializando-se, talvez, como a forma mais eficaz de extinguir a Justiça do Trabalho: desidratando-a.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.