Por Valdete Souto Severo (Foto: Comunicação Amélias)
O movimento que reivindica o reconhecimento da dominação masculina em nossa história, como fator determinante de opressão das mulheres e de todas as pessoas que de algum modo se identificam com o feminino, alterou-se ao longo dos anos. Hoje, sabemos tratar-se de feminismos, assim mesmo no plural, linhas de pensamento que têm em comum o olhar crítico para uma cultura que nos associa à fragilidade, à destemperança, àquilo que não é racional.
Alguns desses movimentos, porém, especialmente se analisados historicamente, revelam uma visão parcial, branca e dominadora, da necessidade de colocar em questão a opressão de gênero. O dia 25 de julho, dia das mulheres negras, representa a intensa necessidade de luta para que a sujeição em razão da cor da pele seja também uma questão feminista. E mostra o quão distante estamos de uma realidade menos racista e misógina. De outro lado, nos relembra que infelizmente muitas mulheres brancas lutaram para entrar no mercado de trabalho e conquistar o direito ao voto, dando pouca ou nenhuma atenção às negras escravizadas ou “domesticadas” no trabalho invisibilizado de limpeza e cuidado de suas casas e de seus filhos e filhas.
É com esse tipo de reflexão que vi essa semana o vídeo da secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Tanto aquele em que ela depôs à CPI, quanto aquele divulgado nos últimos dias, em que revelada a reunião prévia, na qual ela pede para ser instruída sobre perguntas e respostas que deveria dar à CPI do Senado: “eles jogam para eu fazer o gol”. Ligada ao governo federal, essa mulher ocupa cargo público no Ministério da Saúde, durante uma pandemia que já vitimou 550 mil pessoas e contaminou 20 milhões. E segue defendendo o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19, ou seja, figurando como elemento central de uma política que aposta no desconhecido, em lugar de adotar estratégias recomendadas mundialmente para a contenção da contaminação e a preservação das vidas.
Um feminismo desavisado pode comemorar essa ocupação dos espaços de poder. O que o feminismo negro nos ensina é justamente que isso não é só insuficiente. Muitas vezes atua contra o processo de resistência e de re-existência feminista, que deve necessariamente, para que faça sentido, ser também antirracista e anticapitalista.
Se a atuação de Mayra me fez pensar sobre os diferentes feminismos e sobre o quanto mulheres também servem voluntariamente à dominação, é porque a revelação do vídeo contém em si outro desvelamento, ainda mais inquietante. Nele, a secretária pede uma “bala de prata”, alguma pesquisa ou estudo que revele, de forma incontroversa, a eficiência do remédio que prescreve. A resposta é de que esse estudo ou pesquisa não existe. Não há prova da eficiência, simplesmente porque a cloroquina trata malária, e não covid.
Isso, porém, não alterou seu discurso à CPI.
O que permite concluir, portanto, que não se trata de negacionismo.
Quem defende o “kit covid” sabe muito bem o que faz.
O ponto absurdamente cruel é exatamente esse: está descartada a possibilidade de equívoco ou de uma crença ingênua no milagre da cloroquina.
Então, o que há?
Das duas, uma: somos cobaias de um experimento, no qual o governo vem investindo muito dinheiro (quase 90 milhões de reais) e sobre o qual nem mesmo os defensores da cloroquina possuem certeza alguma, ou somos destinatários de uma deliberada política de morte?
Bia Kicis, outra mulher aliada ao governo federal, saudou recentemente a vice-presidente do partido nazista na Alemanha, tornando explícitas as semelhanças que já vêm sendo referidas e estudadas por filósofas e analistas políticos, entre o nazismo, o fascismo e o bolsonarismo.
Para completar o quadro, um documento obtido pela CPI prova que em janeiro de 2021, quando o povo do Amazonas agonizava em razão da pandemia, o governo federal, ciente da falta de oxigênio e da situação caótica lá enfrentada, enviou – através do Ministério da Saúde e sob o comando de Mayra – 11 médicos para que orientassem profissionais da saúde a receitar o “kit covid”. Houve inclusive sugestão de que fossem montadas tendas viabilizando o acesso das pessoas aos remédios e autorizando que fossem receitados por enfermeiros, quando os médicos se negassem a fazê-lo.
Eis aí, nesses dois fatos, talvez, a resposta à pergunta antes formulada.
Houve escolha política consciente, feita apesar ou mesmo em razão do absurdo humanitário vivido no Amazonas, por parte de quem detém o conhecimento científico necessário para saber exatamente o que salva e o que mata. À frente disso, estava uma mulher.
Talvez ela acredite, como tantas de nós, que ocupa posto de destaque porque merece, porque se esforça. Há muitas mulheres que se destacam em suas profissões e estão convencidas de que isso ocorre em razão de méritos individuais. Por isso mesmo, não carregam consigo outras mulheres, não colocam em xeque a opressão de gênero, nem sequer reconhecem que foram assimiladas e aceitas dentro do jogo da dominação apenas porque jogam no time dos opressores. Agem como aqueles que sujeitaram suas antepassadas, que lhes negaram o direito ao voto, ao estudo e à atuação política.
Servem, como servas, a esse sistema que oprime e mata.
O dia 25 de julho, dando visibilidade à luta e à história das mulheres negras no Brasil, nos convoca a refletir sobre esse papel feminino no descortinamento e no combate a todo tipo de opressão, inclusive aquele que – exatamente por ser estrutural – é reproduzido por quem deveria combatê-lo.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.