Por Valdete Souto Severo (Foto: Deriva Jornalismo)
Em 16 meses de pandemia, mais de 500 mil vidas foram perdidas, algumas famílias inteiras dizimadas. Milhões de pessoas lidam com os sintomas da contaminação. Se as vacinas tivessem sido compradas quando foram oferecidas, esse número seria significativamente menor. Se não houvesse incentivo à aglomeração, deboche em relação ao isolamento social e ao uso de máscara, esse número seria menor.
Se houvesse um Parlamento que processasse os pedidos de impeachment, um Judiciário que apurasse os tantos atos apontados como criminosos em relação à gestão da crise sanitária, talvez esse número fosse menor. Se não houvesse insegurança alimentar, extrema pobreza, tanta gente sem trabalho, provavelmente esse número seria bem menor. Basta comparar com outros países, para perceber que a gestão pública faz diferença no número de infectados e mortos: 25% das mortes pela covid-19 no mundo ocorrem no Brasil.
Isso precisa ser dito. E precisa ser repetido, à exaustão.
Não há fatalidade. Existem opções políticas.
Houve uma escolha deliberada em não efetuar o controle das fronteiras quando a pandemia já era uma realidade mundial. Impedir a compra de vacinas quando já era possível investir em imunização. Comprar cloroquina quando era necessário garantir produção e renda. Aumentar a jornada de quem atua na área da saúde, quando era necessário contratar mais gente.
Facilitar as despedidas quando era preciso garantir emprego. Estimular a aglomeração, quando era indispensável realizar campanha pública pelo isolamento social. Privatizar empresas estratégicas, quando é urgente investir na soberania e na gestão pública dos recursos naturais.
Realizar a Copa América, quando é importante reduzir ao máximo a circulação dos corpos e das novas cepas.
O que mais impressiona é o quanto essa realidade é negada por tantas pessoas, que seguem agindo como se tudo não passasse de fatalidade. Talvez seja uma forma de sobreviver sem enlouquecer diante da tristeza e do horror da perda de mais de duas mil vidas, todos os dias, há tanto tempo.
Talvez, a explicitação de uma subjetividade essencialmente perversa, pautada na crença de que a felicidade é possível em um contexto de tanta dor. Mas isso não é real, pois nosso problema não é individual. Ainda que o discurso de que a covid-19 “é uma gripezinha ou resfriadinho”, que “brasileiro tem que ser estudado, não pega nada”, mesmo “pulando em esgoto” possa ser identificado a alguém, ele revela um drama social, que transcende indivíduos perversos.
“Alguns vão morrer? vão morrer! Lamento, é a vida”. “E daí, lamento, quer eu faça o quê? Eu sou messias, mas não faço milagre”. “Eu não sou coveiro”. “Infelizmente, acho que todos vocês vão pegar o vírus, tem medo do quê? enfrenta!”
Parece estímulo, mas é agressão. Foram tantas as pessoas que morreram escravizadas, mutiladas em guerras desnecessárias, torturadas, desaparecidas nos regimes autoritários que permeiam a nossa história. Elas nunca tiveram direito ao medo, nem os seus tiveram direito ao luto.
Em agosto de 2020, 6 meses depois da chegada da pandemia ao Brasil, atingimos a marca de 100 mil pessoas mortas e a manifestação do governo foi: “vamos tocar a vida”. No mês seguinte, reclamou da “conversinha mole de ficar em casa”, “isso é para os fracos”.
Sobre as vacinas, em outubro, disse: “já mandei cancelar, o presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. Repetiu, em novembro: “eu, que sou o governo, não vou comprar vacina não, procura outro para pagar a tua vacina”.
Em outra oportunidade, no mesmo mês, falou: “aqui todo mundo vai morrer um dia, não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”. Em dezembro, mencionou: “se você virar um jacaré (ao tomar vacina) é problema de você”; “a pandemia está chegando ao fim, a pressa da vacina não se justifica”.
Em janeiro deste ano, 5 meses depois das 100 mil, atingimos a triste marca de 200 mil mortes e o presidente limitou-se a dizer: “a vida continua”. Em fevereiro, declarou: “temos que enfrentar as adversidades, não adianta ficar em casa chorando, não vai chegar a lugar nenhum”.
Quando, em março, o Brasil atingiu a marca de 300 mil mortos, imitou uma pessoa se asfixiando e disse: “chega de frescura, de mimimi, vão ficar chorando até quando?”, “tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa”. Já em abril o número de mortos subiu para 400 mil e o presidente declarou: “é como num campo de batalha, não vamos aceitar a política do fica em casa, fecha tudo, lockdown, o vírus não vai embora, esse vírus, como outros, vieram para ficar”.
Esse discurso de assédio que culpa os que sofrem, atribuindo-lhes a condição de fracos, exigindo-lhes que suportem e sigam adiante, é parte importante do processo de destruição do que somos como sociedade. Faz esquecer que temos um destino compartilhado. A violência que essa banalidade do mal representa não pode ser minimizada, pois nos fere também como Nação.
É importante perceber, portanto, que o ventríloquo apenas explicita as características históricas de um sistema perverso. Desde as pessoas escravizadas às desaparecidas, há muita banalização na violência estrutural a que temos sido sistematicamente submetidos.
Uma violência que também se materializa no silêncio.
No dia 19, o presidente ficou em silêncio. Nada disse às famílias em luto. Nada disse à sociedade em luta. Muitas cidades registraram um impressionante número de pessoas nas ruas. As vidas perdidas também estavam lá, homenageadas em cartazes e performances que materializaram um pouco do luto que tanto nos falta. O início, quem sabe, de um processo coletivo de cura, que nos permita compreender a necessidade de mudanças profundas, que nos conduzam à superação da naturalização da morte.
Esse dia entrará para a história: a marcha pela vida, em honra as mais de 500 mil pessoas que, fisicamente ausentes, estavam conosco, impedindo que esquecêssemos o que estava em jogo.
Há um país a ser refundado, sob a premissa essencial de que todas as vidas importam.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.