Michele de Mello, no Brasil de Fato
Na Colômbia a paralisação se mantém por mais de 40 dias e parece estar cada vez mais longe de um acordo. No último fim de semana, o Comitê Nacional de Paralisação anunciou a ruptura da mesa de diálogos com o governo depois de uma sequência de incumprimento por parte do presidente Iván Duque. Nas ruas, a juventude assegura que não irá levantar os bloqueios enquanto não houver garantias de vitórias.
“Temos esperança com o fato de que a juventude começou a ocupar as ruas, acredito que a juventude sempre esteve muito presente. A juventude sempre foi precursora de movimentos sociais que impactaram o poder que se instituiu na Colômbia, que sabemos que é um poder permeado de corrupção e paramilitarismo”, afirma Juan González* membro da organização Escudos Azuis.
Depois de vencer duas reformas e provocar a renúncia de dois ministros, agora uma das principais demandas é uma reforma policial, que acabe com o Esquadrão Móvil Antidistúrbios (Esmad) e ofereça garantias do direito à manifestação pacífica.
A maioria dos jovens que compõem os atos relata que votaram em 2016 no plebiscito à favor dos Acordos de Paz, acreditando na promessa de um novo país. “Agora passaram os anos e falam em incumprimento dos acordos, isso é um eufemismo para dizer que permanecemos em guerra”, afirma María Hernández*, membro da organização Escudos Azuis de Bogotá.
Além do estado permanente de violência, os jovens também denunciam a falta de perspectiva de vida. Em 2021, cerca de 49,3% dos jovens colombianos haviam deixado a escola por falta de condições de permanência. Somente no ano passado, 102.880 abandonaram os estudos. A maioria (19,9%) sai da escola para trabalhar, segundo levantamento do Observatório da Juventude na Ibero-América.
No entanto também falta emprego. De acordo com o Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas (Dane), entre 14 e 28 anos, a taxa de desemprego é de 58% na Colômbia.
Por isso os pedidos são por uma reforma policial, mas também por um projeto de renda básica universal durante a pandemia e pela ampliação dos sistemas públicos de saúde e educação.
Brutalidade policial
Segundo o CNP, desde o dia 28 de abril, quando iniciou a greve geral, foram registrados 77 homicídios, 2800 prisões arbitrárias e mais de 1200 feridos pela ação policial.
Diante do contexto de violência, a juventude decidiu se organizar em coletivos de linha de frente, com escudos e outros equipamentos de segurança improvisados e a coragem para enfrentar com pedras os policiais que reprimem com armas.
“Esta paralisação não pode terminar, não antes de ter uma reforma policial, até que o governo formule as perguntas: “a quem estamos entregando as armas?” e “qual é o estado psicológico das pessoas responsáveis pelas armas e pela ordem?”. Isso é o mínimo, porque é a base para garantir o direito ao protestos pacíficos, de dignificar a vida e alçar as vozes nas ruas”, defende María Hernández*, membro da organização Escudos Azuis de Bogotá.
Inspirados nos grupos de primeira-linha do Chile, nas manifestações de outubro de 2019 e de Hong Kong, logo após o assassinato do jovem Dilan Cruz, baleado por um capitão do Esmad em novembro de 2019, durante manifestações em Bogotá, alguns jovens decidem criar a organização Escudos Azuis.
“Quando estou frente a eles sinto temor, mas não posso me render, porque sinto que o que estamos fazendo é histórico, estamos conquistando muitas coisas. Ainda que nos digam vândalos, que não nos escutem, que nos tratem mal, eu não me importo. Sinto que estamos fazendo o que é certo, estamos construindo assembleias populares, estamos falando com as comunidades e isso vai muito além de lançar uma pedra num policial”, afirma Luis Artigas*, outro jovem da linha de frente.
A maioria dos jovens da linha de frente precisa proteger suas identidades por medo da repressão. A missão internacional de direitos humanos coletou relatos de adolescentes que há mais de um mês não retornam às suas casas com medo de perseguição pela polícia ou pelo paramilitarismo, já que muitos adolescentes são capturados no retorno dos atos.
Ainda existem 346 desaparecidos durante os protestos na Colômbia, segundo organizações de direitos humanos. A essa altura quase todos os jovens têm algum relato de violência para contar.
“No dia 1º de maio estávamos numa marcha pacífica e o Esmad nos atacou. Com uma bomba de efeito moral atingiram um companheiro que acabou perdendo um olho. No dia 28 de maio também organizamos uma manifestação pacífica. Por volta das 5h da manhã chegaram os efetivos da polícia e do Esmad, que nos agrediram, mas nós continuamos a manifestação, e desse confronto levaram dois companheiros que até hoje não sei do seu paradeiro”, relata Luis Artigas.
Um relatório elaborado pelo Instituto de Desenvolvimento da Paz (Indepaz) e entregue à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que visita o país desde a última segunda-feira (7), elenca nove práticas sistemáticas da polícia e do Esmad contra os grevistas, entre elas: uso de armas de fogo; disparo de munições não letais nos rostos dos manifestantes, gerando lesões oculares; uso de tanque tipo Venom – capaz de disparar jatos de água e outros componentes químicos -, lançamento de bombas de gás lacrimongêneo dentro das casas na zona dos protestos, além de casos de violência sexual e a presença de agentes sem identificação durante os atos.
“Lançar uma pedra ou destruir um ônibus não é um ato violento. É dizer não à corrupção, ao domínio sobre os oprimidos, é dizer não a toda essa cadeia de poder. Nunca será equiparável. Se eles querem nos acusar de ser vândalos por tomar ações mais contundentes, pois podem nos chamar, mas isso não é vandalismo”, defende María Hernández.
Apesar do uso de táticas radicais e do rechaço de parte da sociedade colombiana, a resistência dos jovens de primeira linha também é vista com respeito pelas camadas populares.
“Sinto muita dor quando vejo uma criança dizendo que quer ser da primeira linha quando crescer. Nós não queremos ser mártires, nem ídolos de ninguém. Essa situação é circunstancial, nós lutamos pelo fim da violência”, conta María Hernández.
“Estamos fazendo o que é certo, estamos construindo assembleias populares, estamos falando com as comunidades e isso vai muito além de lançar uma pedra num policial. Isso não me interessa. Estamos criando consciência, estamos educando as pessoas a entenderem que a empatia com o próximo é o mais importante. As instituições não devem decidir pelo povo, o povo é que deve decidir pelo próprio povo. Esse é o horizonte popular pelo qual lutamos”, conclui Artigas.
* Todos os nomes são fictícios para proteger a identidade dos entrevistados
Fonte: Brasil de Fato
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