Por Valdete Souto Severo (Foto: Jorge Leão)
O título desse artigo, parafraseando a música de Lenine, é uma homenagem a quem se arriscou pela mudança e as mais de 462 mil pessoas que já não podem lutar.
O ato do dia 29 de maio, que lotou ruas em praticamente todas as capitais brasileiras, desafiou o medo da contaminação e da morte. Quem participou das manifestações sabe que a covid-19 não é uma gripezinha; ceifa vidas, deixa sequelas, destrói famílias e sonhos. Mesmo usando máscara e buscando distância, quem saiu às ruas sabe que correu risco.
Há quem reprove essa atitude, especialmente diante da previsão real da “terceira onda”, que se anuncia pior do que as anteriores, numa realidade em que falar em ondas perde o sentido, pois o nível de contaminação, internação e mortes não foi reduzido de modo significativo ao longo desses trágicos 15 últimos meses.
A questão é que não há escolha, pois mesmo diante do caos em que estamos, seguimos assistindo a um Parlamento que finge indignar-se. Finge, pois não age. Assistimos a um teatro macabro em que todos os dias novas provas são apresentadas, revelando o que já sabemos: muitas pessoas que perdemos durante a pandemia deveriam estar vivas.
Ainda em 2020, o governo negou-se a comprar vacinas CoronaVac e negligenciou propostas da Pfizer, enquanto investia na compra de pó de cloroquina. Foram pelo menos dois carregamentos de R$ 652 mil cada, para aquisição de um produto ineficaz contra a covid-19, cujo valor sofreu aumento de 495%, entre 2019 e 2021.
Não é só o efeito da covid-19, com suas mais de 462 mil mortes prematuras, o legado de 37 mil benefícios previdenciários a mais por auxílio-doença em 2020 e as tantas pessoas desamparadas, porque perderam quem as sustentavam, nutriam e amavam, que impõe a reação coletiva.
Há um aprofundamento assustador da desigualdade. São 61,1 milhões de pessoas pobres, 19,3 milhões devolvidas à extrema pobreza; 14,8 milhões de desocupadas; 6 milhões desalentadas e uma taxa de subutilização de 29,7% da população economicamente ativa. Ao mesmo tempo, em abril de 2021 o Brasil passou a contar 10 novos bilionários. Os 65 brasileiros mais ricos somaram, então, um patrimônio de US$ 219,10 bilhões.
Há um aumento expressivo do desmatamento. Foram 216 km2 da Amazônia desmatados apenas em dezembro/2020, um aumento de 14% em relação ao mesmo mês do ano anterior (INPE). Até julho de 2019, a Amazônia havia perdido 5.879 quilômetros quadrados, 40% a mais do que um ano antes. Essa política de desmanche implicou a perda de fundos de mais de R$ 300 milhões, oferecidos por países como a Alemanha e a Noruega. Um aporte que, caso permanecesse sendo fornecido de modo anual, implicaria investimento de quase 1 bilhão de reais em reflorestamento e controle das áreas protegidas.
É expressivo, também, o recrudescimento da violência estatal. Em 2019, 113 indígenas foram assassinados. Em 2020, 159 pessoas no campo foram ameaçadas de morte; 35 sofreram tentativas de assassinato; houve um aumento de mais de 30% nas ocorrências de conflitos por terra. No primeiro semestre de 2020, 3.148 pessoas foram mortas por policiais, 7% a mais do que o registrado no mesmo período do ano anterior. Há poucas semanas, 27 pessoas moradoras do Jacarezinho foram mortas em uma única ação policial.
A censura também se aprofunda, com a utilização política de demandas administrativas e judiciais para silenciar jornalistas, professora(e)s, juíza(e)s e cientistas.
Ainda assim, nada acontece. Nada muda. Não há movimento efetivo para que os tantos pedidos de impeachment sejam processados. Não há investigação criminal, não há afastamento imediato.
O Brasil sangra. 2022 está longe demais e sabemos que não há solução mágica, especialmente quando a receita parece ser repetir algo que já se revelou insuficiente. Por isso, foi necessário ir às ruas. Para deixar claro que a situação está insuportável.
O ato do dia 29 foi, portanto, também movido pelo medo. Medo de que essa catástrofe social e humanitária prossiga e se aprofunde ainda mais.
Muitos cartazes traziam a frase: “se o povo protesta em meio a pandemia, é porque o governo é mais perigoso que o vírus”. Se a exposição ao risco do contágio parece um preço a pagar para fazer cessar o tenebroso avanço do discurso e da prática fascista, genocida, autoritária e desumana; se reconhecemos que há tanto ou mais perigo na inércia, do que na exposição de nossos corpos, é porque chegamos a um ponto de não retorno.
A história mostra que em sociedades de tradição autoritária como a nossa, as forças do Estado reagem mal a esses levantes populares. Quando não conseguem cooptá-los, respondem com violência.
Por isso e porque apenas o tempo dirá o efeito que o movimento produzirá em nossos corpos e mentes, não há como saber se 29 de maio de 2021 inaugurará uma nova fase da vida política no país. Mas há como afirmar sua potência: ocupar as ruas em plena pandemia, mesmo diante do medo da morte, movidas pela esperança que se nutre do que coletivamente podemos ser, é um ato revolucionário de amor à vida.
Valdete Souto Severo é juíza do Trabalho, professora universitária e escritora.