O setor automotivo vive uma crise sem precedentes no Brasil. A causa: uma perversa combinação entre o colapso da economia sob o governo Jair Bolsonaro, a segunda onda da pandemia e a escassez de componentes. Segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), 13 das 23 montadoras de automóveis no País optaram pela paralisação total ou parcial da produção. Ao todo, são 29 fábricas paradas, de um total de 58.
Especialistas no setor avaliam que, sem peças e com baixa demanda interna, até 300 mil veículos podem deixar de ser produzidos em 2021. Hoje, dos 105 mil empregados diretos do setor, de 60% a 70% estão em casa. Além do agravamento da pandemia, a o lento avanço da vacinação – outro fracasso da gestão Bolsonaro – pesa contra a indústria e os trabalhadores.
Não é a primeira vez que parte da indústria interrompe atividades no Brasil neste ano. Entre janeiro e fevereiro, durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, quatro fabricantes de motocicletas da Zona Franca paralisaram temporariamente a produção, segundo a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares). Outras indústrias da região reduziram turnos devido ao toque de recolher.
Agora, a paralisação atinge a cadeia automotiva, é mais ampla e tende a demorar mais. A Volkswagen foi a primeira montadora a decidir, em 19 de março, pela suspensão da produção no País. Nos dias seguintes, os anúncios de parada se sucederam. Enquanto a Volks falava em “preservar a saúde de seus empregados e familiares”, algumas das empresas apontaram a falta de componentes como motivo para redução da produção. A Volvo, por exemplo, citou “o alto nível de instabilidade na cadeia – global e local – de abastecimento de peças, principalmente semicondutores”.
No último levantamento da Anfavea (de 30 de março), as 13 montadoras paradas eram: Mercedes, Renault, Scania, Toyota, Volkswagen, Volkswagen Caminhões e Ônibus, BMW, Agrale, Honda, Jaguar e Nissan. Duas empresas, GM e Volvo, não pararam totalmente, mas reduziram substancialmente a produção.
As montadoras planejam voltar entre esta segunda-feira (5) e o final de maio. Muitos analistas avaliam, porém, que as paradas podem ser estendidas, dependendo do andamento das medidas de isolamento social nos estados e municípios. Em muitos deles, as concessionárias estão fechadas, impedindo as vendas.
Para Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics, consultoria especializada no mercado automotivo, dois motivos levaram à onda de paralisação nas fábricas brasileiras de automóveis. “O primeiro motivo é a falta de peças, decorrente de logística internacional, e problemas de suprimento, principalmente de semicondutores”, afirma o consultor.
Segundo ele, o déficit de produtos se deve à recuperação da economia da China, que é o maior produtor de chips do mundo e tem priorizado seu mercado interno na retomada. Além disso, semicondutores também são usados pela indústria de notebooks, computadores, consoles de videogame, televisores e celulares – produtos cujas vendas cresceram muito na pandemia, devido à permanência das pessoas em casa.
A segunda razão é a segunda onda da Covid, que provocou, segundo Kalume “a diminuição das vendas em função da paralisação dos grandes centros urbanos”. Conforme a Fenabrave – que representa as concessionárias –, foram emplacados cerca de 339 mil veículos (carros, comerciais leves, caminhões e ônibus) no Brasil de janeiro e fevereiro deste ano. É uma queda de 14% sobre os primeiros dois meses de 2020.
Cassio Pagliarini, consultor associado da Bright Consulting, cita ainda a preocupação social das montadoras em meio ao agravamento da crise sanitária. “Com o aumento no número de mortes e infecções, as montadoras decidiram, em conjunto com os sindicatos, parar atividades e fazer um plano de recuperação da produção mais à frente.”
Com a parada de produção, a Jato Dynamics revisou a expectativa de quantidade de carros que deve ser vendida no Brasil em 2021. De uma estimativa de 2,3 milhões a 2,4 milhões no início do ano, a consultoria agora projeta 2,1 milhões. Em 2020, foram vendidos 1,95 milhão de veículos. “Vamos ter que torcer muito para que atinja 2,1 milhões – vai depender muito de quanto a paralisação vai perdurar. A cada dia que as fábricas ficam fechadas, isso afeta as projeções”, diz Kalume.
Já a Bright Consulting cortou sua projeção de 2,45 milhões para 2,38 milhões. “Estamos na mão da pandemia”, diz Pagliarini. “Por causa dos lockdowns e medidas de isolamento, as concessionárias fecharam e o cliente ficou mais arredio. Aquilo que perder agora, não vamos conseguir recuperar – não por causa de capacidade da indústria, mas por causa da capacidade de compra.”
Pagliarini destaca que, em 2020, as vendas de veículos se recuperaram rapidamente porque elas competem principalmente com reformas de casa, cursos e viagens. Embora as reformas tenham continuado, cursos e viagens foram muito reduzidos – o que levou mais consumidores a investirem em carros, também diante da percepção de insegurança do transporte público.
Impacto no PIB
A paralisação temporária da indústria automotiva deve impactar a produção industrial e também o desempenho do PIB em 2021. É o que avalia o economista Claudio Considera, coordenador do Monitor do PIB do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Com base em dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2018, Considera destaca que a fabricação de automóveis, caminhões, ônibus e autopeças representa números expressivos para a economia: 0,9% do PIB brasileiro e 6,7% do PIB da indústria de transformação; 0,4% do emprego total do País e 4,1% do emprego da indústria; além de 1,4% dos salários da economia e 8,8% dos salários do setor industrial.
“Isso é só o peso direto”, pondera o economista. “A indústria automotiva compra plástico, laminados de aço, produtos químicos, produtos metálicos, produtos de borracha. Tudo isso deixa de ser demandado quando você para de produzir automóveis.” Em fevereiro, mesmo antes da paralisação das montadoras, a produção industrial brasileira já havia recuado 0,7%, em relação a janeiro, com queda de 7,2% da produção de veículos, conforme o IBGE.
Segundo o Ibre-FGV, o PIB do País deve cair 0,5% no primeiro trimestre e outro 0,5% no segundo trimestre. Ainda assim, o instituto projeta alta de 3,2% do PIB no ano, contando com o avanço da vacinação e reabertura gradual das atividades no segundo semestre.
A perspectiva de menor crescimento do PIB brasileiro neste ano deixa fabricantes do Polo Industrial de Manaus em estado de atenção. Algacir Polsin, superintendente da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), autarquia ligada ao Ministério da Economia que administra a Zona Franca, lembra que empresas do polo já tiveram a atividade afetada no início do ano, durante a crise de falta de oxigênio no Amazonas.
“Houve paralisação do período noturno, do terceiro turno das fábricas, em virtude das restrições”, diz Polsin. “Também houve paradas momentâneas de produção, por decisão de algumas empresas – por segurança, falta de peças ou até mesmo pela questão do oxigênio, que é usado na indústria e foi remanejado para a saúde.”
Segundo a Abraciclo – que representa a indústria de motocicletas –, as fabricantes Honda, Dafra, Triumph e J. Toledo (representante da Suzuki no Brasil) pararam temporariamente a produção em Manaus. Em janeiro, quando a produção industrial do Brasil como um todo avançou 0,4%, em relação ao mês anterior, a produção no Amazonas despencou 11,8%, conforme o IBGE. Ainda não há dados regionalizados para fevereiro.
“Nesse momento, já estamos com o polo industrial funcionando em ritmo normal. Mas estamos aguardando o que está acontecendo no restante do País”, diz Polsin. “É natural que qualquer redução da demanda de produtos acabados, em virtude de restrições de trânsito e de funcionamento do comércio no restante do país, possa afetar o Polo Industrial de Manaus.”
O desempenho da indústria automotiva também está sendo monitorado. “Temos peças de automóveis que são fabricadas aqui em Manaus e estamos acompanhando a situação, para ver se isso pode, com o passar do tempo, impactar o polo.” Porém, Polsin destaca que, em 2020, a Zona Franca registrou um crescimento de 14% no faturamento, em relação a 2019, mesmo em meio ao grave efeito do coronavírus sobre Manaus.
“A produção foi muito afetada em abril e maio do ano passado, em virtude da pandemia. Mas depois, voltou a crescer”, diz o superintendente. Segundo ele, isso foi possível devido à mudança de hábitos da população brasileira, que resultou em um aumento das vendas de aparelhos de ar condicionado e itens de informática, devido ao trabalho remoto e ensino à distância. Houve, ainda, forte crescimento na procura por motos e bicicletas, como resultado do avanço do delivery.
Diante de um ano que começou com o anúncio da saída da Ford do Brasil e que registra já em março paradas significativas na maior parte do setor automotivo, naturalmente surge a dúvida: outras montadoras podem seguir a americana e deixar o país? Para os especialistas, o cenário não pode ser descartado, mas não é o mais provável no curto a médio prazo.
Segundo Pagliarini, a saída da Ford está ligada à decisão da empresa de se dedicar à produção de pick-ups, vans e SUVs (veículos utilitários esportivos), veículos eletrificados e o modelo de luxo Mustang. Com isso, a companhia decidiu abandonar a produção de hatchs e sedans, os dois modelos mais populares no Brasil.
Além disso, a empresa foi contemplada por benefícios fiscais no país durante 15 anos, entre 2003 e 2018. Com o encerramento desses benefícios, a Ford não tinha rentabilidade na fábrica de Camaçari, na Bahia. “Veio a pandemia e acelerou tudo”, diz o analista da Bright Consulting. Diante da mudança de estratégia da empresa e da falta de rentabilidade e ociosidade de suas fábricas no Brasil, a queda de demanda causada pela pandemia acelerou o processo de tomada de decisão quanto à saída do País.
A capacidade instalada no Brasil é de 4,8 milhões de veículos por ano. Hoje, está sendo produzida praticamente a metade disso. “Tem mais de 2 milhões de capacidade ociosa no País”, diz Pagliarini. “Com a diminuição do mercado, existe sempre o risco de uma empresa acabar saindo, mas não está no horizonte nenhuma fábrica ser fechada no mercado brasileiro atualmente”, avalia Kalume Neto.
Quanto à manutenção do emprego nas fábricas, os analistas avaliam que tudo depende da extensão das paradas de produção. “Historicamente, antes da última crise, a indústria nacional trabalhava com 125 mil, 130 mil funcionários”, lembra Kalume. “Estamos hoje entre 100 mil e 105 mil. Então já houve uma diminuição – e isso é muito visível quando se visitam as montadoras.”
Segundo o analista, a segunda metade de 2020 foi de retomada da produção e do emprego – mas esse processo agora pode ser interrompido. “Com esse novo ciclo da pandemia, as empresas estão em espera. Não estão demitindo, mas estão examinando o mercado.”
FONTE: O VERMELHO