Digníssimos representantes das classes dominantes brasileiras, que também podem ser designados, como faz o jornalismo Altamiro Borges, de “a cloaca burguesa” (ricos e poderosos banqueiros e empresários), ladeados de economistas a soldo do mercado, assinaram recentemente uma carta criticando a gestão da pandemia pelo presidente Jair Bolsonaro.
Não é possível deixar de recordar que são os mesmos que urdiram o golpe de 2016, em subalterna aliança com os EUA, aplaudiram a prisão ilegal de Lula e a eleição do genocida fascista, cuja política econômica apoiam. Espera-se que a “carta tardia” possa conter os ímpetos assassinos do presidente, dado o poder dos seus subscritores, mas mereceu uma ácida e profícua crítica da jornalista e escritora Cristina Serra, cujo texto segue abaixo:
Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?
Por Cristina Serra, na FSP
Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.
São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.
Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma “chance de ouro de ressignificar a política”, seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo “repouso em berço esplêndido”.
O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam ? Ou a soma disso tudo?
Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhum palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.