Thiago Rabelo e Leonardo Sakamoto
Os 38 anos de exploração causaram marcas profundas em Madalena Gordiano. No UOL Entrevista, a mineira de São Miguel do Anta relembrou o período em que viveu sob controle da família Milagres Rigueira e vislumbrou o futuro. Além dos danos físicos, há também as sequelas de uma vida solitária, sem voz, de alguém que teve tudo roubado, inclusive os sonhos. A conversa foi conduzida pelo colunista Leonardo Sakamoto e pelo repórter Thiago Rabelo.
“Eu não podia fazer nada. Minha cabeça estava explodindo querendo falar com alguém que me ajudasse e resolvesse esse problema para mim. E trabalhando… Trabalhando, sabe? Igual escrava. Trabalhava e eles [família Milagres Rigueira] falando que nada estava bom. Arrumava e nada estava bom. Dava uma raiva. Isso não estava certo”, declarou em entrevista por vídeo gravada na última sexta-feira (8).
“Eu levantava cedo, passava um monte de roupa, depois fazia café, arrumava a casa e limpava banheiro. Eu ficava até de noite arrumando as coisas, até a hora de deitar. Não parava um minuto. Minhas costas até doíam. Dói ainda. Tudo era eu. É complicado, muito complicado… Quando tinha serviço eu trabalhava. Como tomo remédio controlado, eu deitava às 8 da noite e acordava 2 da manhã. Acho que era efeito do remédio. Eu já acordava e começava a trabalhar e ficava acordada até 8 da noite. Eu ficava um bagaço”, relatou sobre como era sua rotina.
Aos 47 anos, Madalena pela primeira vez está livre para viver uma nova vida, algo bem diferente do que aconteceu nas últimas quatro décadas quando foi explorada por Maria das Graças Milagres Rigueira e o filho Dalton César Milagres Rigueira, que a mantiveram sob regime análogo à escravidão, sem remuneração, férias, direitos trabalhistas e ainda fizeram uso integral de suas duas pensões no valor total de R$ 8,4 mil nas cidades de São Miguel do Anta, Viçosa e Patos de Minas.
Mesmo em liberdade, Madalena ainda tem receios sobre como será o futuro e relata medo dos antigos patrões.
“Eu não sinto mais nada. Não quero mais nada com eles. Não quero nem saber. A gente fica tão angustiada. O tanto que chorei. Tem hora que eu choro um pouquinho, as pessoas chegam perto de mim e eu começo a chorar. Mas isso está tirando a angústia. Eu choro muito. Nossa! Medo dos homens me seguirem, de sair, medo de morar sozinha. É difícil. Tenho medo de eles mandarem alguém para me perseguir. É medo”, explicou.
Não bastasse a vida de exploração, Madalena também teve um casamento arranjado pela família Milagres Rigueira. Em 2001, ciente da saúde debilitada de Marino Lopes da Costa — 78 anos, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial e tio de Valdirene Lopes da Costa, esposa de Dalton —, Maria das Graças organizou o casamento de Madalena com o homem que veio a falecer dois anos depois. Desde então, Madalena tem direito a R$ 8,4 mil de pensão, valor que ela nunca teve acesso e que também desconhecia possuir.
“Eu não sabia desse dinheiro. Não sabia não, não sabia mesmo. Sabia que eles [família Milagres Rigueira] faziam na cara dura, que estava acontecendo alguma coisa, mas eu não podia falar nada. Eu não morei com ele [Marino] não. Só casei mesmo. Casei por casar. Ele era idoso, não aguentava andar. Eu não cheguei a morar com ele não.”.
O silêncio de Madalena era por medo dos patrões, principalmente de Valdirene, a quem ela faz os piores relatos da relação.
“Eu não podia falar nada. Tinha de chegar caladinha, sem falar nada. Minha patroa dizia que eu ia para a igreja só para fofocar. Falava desse jeito! Minha patroa, mulher mais chata do mundo. Nossa! Aborrecida!”, desabafou.
Além da repressão, também existia a falta de compreensão. Mesmo que de forma retraída, Madalena relatava a pessoas próximas o que vivia, principalmente na igreja, mas sem sucesso.
“Eu pedia a Deus para me dar uma luz, um lugar para eu sair, pedia distância desse povo. Eu não aguentava mais. Eu pedia muito. Falei até com o padre “padre, o que eu faço? Todo dia a mulher [Valdirene] está nervosa, o homem [Dalton] está nervoso”. O padre disse para eu entrar no quarto, rezar uma Ave Maria, um Pai Nosso e deixar para lá que isso vai acalmar. Mas era todo dia. Eu não ia aguentar. Mas minha casa era a igreja”.
Madalena parou de estudar aos 8 anos de idade, período em que se mudou para a casa da família Milagres Rigueira. Neste recomeço de vida, disse que quer voltar a estudar e fez um questionamento aos antigos patrões Maria das Graças e Dalton, dois professores que a proibiram de ir à escola.
“Eles me tiraram da escola para eu trabalhar. Eu estava grande, minha madrinha falou. Disse que eu não precisava estudar porque eu já estava mocinha. Mas mocinha estuda, velho, novo estuda. Todo mundo estuda”.
Ironicamente, os três anos de estudos salvaram a vida de Madalena, já que as cartas que ela enviou a vizinhos foram a base para as denúncias enviadas ao MPT (Ministério Público do Trabalho).
Como será a nova vida de Madalena ainda é uma incógnita. Em Uberaba (MG) desde o fim de novembro, quando foi retirada da casa de Dalton, ela está inserida em um programa de ressocialização feito pela Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com auxílio de assistentes sociais e psicólogos.
A nova cidade também é um mistério, mas Madalena tem algumas preferências. “Eu ainda não escolhi a cidade. Mas sabe onde quero morar? Rio Grande do Sul, Uberlândia, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Florianópolis”, brincou sobre o futuro.
O que Madalena já sabe é que ela quer uma vida cheia de comemorações. Diferente do passado, quando era excluída de todas as datas festivas da família Milagres Rigueira, ela celebrou o Natal com a assistente social que está a auxiliando nesse momento.
“Ela me trata muito bem, graças a Deus. O Natal foi muito bom. Eu montei uma árvore sozinha. Foi a minha primeira vez. Agora eu quero montar todo ano”, garantiu.
Mais do que comemorar datas importantes, Madalena também quer uma vida calma. Os anos de exploração tiraram dela a capacidade de ter grandes sonhos. Por isso, ela tem apenas um objetivo: ter um novo lar.
“Eu quero ter o meu lugar. É hora de arrumar o meu lugar. Eu quase não tenho sonho de nada. Eu não sonho com muita coisa não. Só mudança de casa. Eu não sonho mais. Não sonho nem com minha mãe e com meu pai”.
Fonte: UOL em Patos de Minas (MG) e do UOL em São Paulo