Cresce, no Brasil, o espectro de uma segunda onda da covid, agigantada pelas aglomerações de fim de ano. País tem experiência e estrutura para imunizar toda a população. Mas será preciso atropelar a sabotagem do governo Bolsonaro
O Brasil está a um passo de sofrer, em silêncio, uma nova derrota humilhante [para a morte]. A segunda onda de covid-19 tornou-se nítida nos últimos dias. Iniciada no início de novembro, ela cresce aos poucos, como a vaga anterior. Mas já não se espalha a partir de um único ponto, como em março: a maré ergue-se simultaneamente na maior parte dos estados. Como as medidas de isolamento social são tímidas e frágeis, a ida às compras e as confraternizações familiares no final do ano abrem a perspectiva de um tsunami em 2021.
Um fato novo poderia, agora, afastar a perspectiva de tragédia. Duas instituições brasileiras reconhecidas por excelência em Saúde – a Fiocruz e o Instituto Butantan – firmaram, por iniciativa própria (no segundo caso, com apoio do governo de São Paulo), acordos para produção de vacinas. Butantan e Fiocruz têm condições para produzir, ao menos, 200 milhões de doses ao ano – e de começar já a fazê-lo. Esta capacidade pode, como se verá, ser ampliada. Além disso, pelo menos dois outros laboratórios (a Pfizer, dos EUA, e o Instituto Gamaleya, da Rússia) ofereceram grandes lotes da vacina ao governo brasileiro.
No entanto, estas perspectivas animadoras estão sendo destroçadas pela atitude do governo federal – de negligência profunda ou sabotagem ativa. Ao contrário do que ocorre em todo o mundo, o ministério da Saúde jamais se empenhou em sair em busca de vacinas. O ministro e seu chefe difundem continuamente falsas informações, para induzir parte da população a descrer da importância destes insumos. A Anvisa, em parte minada pelo bolsonarismo, age com ambiguidade. Muito pior: ao anunciar, em 1º de dezembro, um “plano” de imunização, o governo federal excluiu – por interesse partidário de Bolsonaro – a vacina do Butantan. No sonolento cronograma governamental, o movimento começa apenas em março, enquanto países com poder econômico semelhante ao do Brasil iniciarão já em dezembro. E o ministério não tomou, até agora, sequer providências comezinhas porém indispensáveis – como a encomenda (em certos casos, importação) das seringas, agulhas e vidraria necessárias para a vacinação.
A esta altura, parece só restar uma saída para vencer o boicote do governo: mobilizar a própria sociedade e pressionar as instituições. Há meios e precedentes para isso. A luta em defesa da Saúde foi capaz, mesmo em tempos sombrios de ditadura, de sensibilizar a população (em especial, as periferias). O SUS surgiu, em grande medida, como fruto deste combate. Mais recentemente, a garantia do acesso a medicamentos impulsionou reivindicações e conquistas memoráveis. O Brasil foi pioneiro na distribuição gratuita do coquetel de drogas que impede o adoecimento dos portadores de HIV. O próprio Poder Judiciário, em outros aspectos tão conservador, tem histórico de obrigar o governo a fornecer remédios necessários à preservação da vida. E desde 7/12, quando o governador de São Paulo confirmou o início da vacinação em janeiro, surgiram, para o bolsonarismo, um contraponto e um constrangimento graves.
Há uma proposta muito relevante em curso. Um conjunto de organizações sociais em defesa da Saúde prepara-se para lançar, em 15 de dezembro, uma Frente pela Vida. Os objetivos centrais são enfrentar a pandemia e defender o SUS. A iniciativa expressa uma característica marcante da vida política brasileira contemporânea. As reflexões e ações capazes de transformar a realidade são desencadeadas, cada vez mais, por movimentos e redes autônomas. Porém, para ter força real, a mobilização proposta pela Frente pela Vida precisa ser abraçada por um leque muito mais amplo de forças – que inclua, por exemplo, os partidos políticos, os sindicatos, uma constelação de outros movimentos e coletivos. O jornalismo de profundidade é, mais que tudo, um projeto de mudança do mundo. Será muito gratificante se as informações reunidas neste texto contribuírem para a mobilização nascente.
II. A segunda onda
Nas três capitais da região Sul, onde a segunda onda da pandemia despontou primeiro, o número diário de mortes já encostou no de junho e julho, picos anteriores da covid-19. Em Porto Alegre, Florianópolis e especialmente Curitiba já há episódios frequentes de superlotação de UTIs e até de falta de vagas, quando pacientes em estado gravíssimo são deixados à míngua. Mas, embora menos acentuada por enquanto, a sombra fúnebre já se espraiou por 18 estados. Na terça-feira (8/12), a média móvel de óbitos chegou a 617 a mais alta em dois meses. Nesse dia, o Brasil voltou a ser, segundo a Organização Mundial de Saúde, o país do mundo, entre os mais afetados pela covid, em que a pandemia progride mais rápido.
No Hospital Emílio Ribas (São Paulo), um centro de referência nacional em doenças transmissíveis, o epidemiologista Jamal Suleiman está alarmado. Ao saber que nos EUA o número de internações por covid é agora duas vezes maior que no pico anterior, e que as mortes diárias já voltaram a superar a marca das 2 mil, ele confessa temer que o mesmo cenário esteja se produzindo no Brasil.
Na propagação de doenças como a covid, EUA e Brasil registram similaridades inquietantes. As populações são grandes e os territórios, vastos. A eclosão de um surto, numa cidade ou região qualquer, tem relevância estatística limitada. Por isso, ao contrário do que ocorreu em muitos países europeus, a curva dos contágios e mortes sobe menos abruptamente. O índice diário de mortes por milhão de habitantes jamais chegou próximo dos estonteantes 29 (na Bélgica) ou 18 (na Espanha). O auge norte-americano foi 6,77; o brasileiro, 5,05. Em compensação, na Europa as ondas gigantescas desapareceram tão rápido quanto se formaram. Nos EUA e no Brasil, elas permaneceram num patamar alto durante longos meses. As marés, embora mais baixas, foram muito mais intensas. Nove meses depois, o resultado é desastroso. Embora o Brasil reúna apenas 2,8% da população do planeta, concentra 11,4% dos óbitos por covid — um índice de mortalidade quatro vezes maior que a média mundial.
Já na evolução geográfica e cronológica da pandemia, estamos várias semanas atrás da Europa. No Ocidente, as mortes por covid tornaram-se um fenômeno dramático a partir do início de março. Passaram-se 80 dias até que, no final de maio, o Brasil liderasse as estatísticas da morte. A segunda onda começou a se erguer, para a maior parte dos europeus, na primeira quinzena de agosto. Aqui, o platô só voltou a crescer em novembro.
O que mais assombra o doutor Jamal Suleiman são as largas avenidas abertas, agora, para que o coronavírus se espalhe. Em março, havia três pontos de difusão: São Paulo e, em menor medida, o Rio e Manaus. Partindo do zero, a pandemia matou 177 mil em nove meses. Agora, ela está instalada em todo o território nacional. Onde chegaremos se a segunda onda tiver a mesma virulência que a primeira – como já ocorre, em muitos países? Leve isso em conta quando observar, como agravante, as aglomerações que já se formam (e crescerão a cada dia, até a véspera do Natal) nos shoppings e nas ruas de comércio. Imagine, por fim, as festas de fim de ano, quando as famílias e os amigos se reunirão, muitas vezes partindo de cidades diversas e distantes, e o vírus encontrará, então, condições para um contágio inédito.
III. A vacina
Em 10 de janeiro, poucas semanas após a eclosão da covid-19, as autoridades sanitárias chinesas decifraram e tornaram público o genoma do SARS-Cov-2 – a variedade específica de coronavírus que provoca a doença. Este ato permitiu que florescesse, em todo o mundo, a pesquisa de uma vacina contra a doença. Centenas de laboratórios envolveram-se na busca. Eles produziram, até o momento, 144 vacinas (há uma excelente página de rastreamento no New York Times), das quais 58 já estão sendo testadas em humanos e 7 obtiveram, em algum país, aprovação para uso emergencial. Este enorme esforço científico resultou num fato inédito, na história do combate às enfermidades infecciosas: em dez meses produziu-se uma imunização eficaz.
Dois fatos explicam esta conquista inédita. O surgimento da covid coincidiu com o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de vacinas, baseadas em manipulação genética. Para produzir a resposta imune, já não se introduzem no corpo humano vírus mortos ou atenuados. Em uma das modalidades, a mais recente, os pesquisadores constroem, em laboratório, uma partícula com estrutura genética semelhante a um fragmento do vírus. Basta que o sistema imunológico humano entre em contato com este corpúsculo para que produza os anticorpos que repelirão o SARS-Cov-2, quanto este invadir o organismo. Esta tecnologia está presente nas vacinas da Pfizer-Biontech, da Moderna e da academia militar chinesa, entre outras. Em outra modalidade (presente, por exemplo, na vacina de Oxford-Astrazeneca, na da Johnsonn e na Sputnik russa), pequenas partículas do próprio coronavírus (igualmente inertes) são injetadas em outros vírus, a partir dos quais se produz o imunizante.
Mas houve uma abordagem distinta, igualmente bem-sucedida. Laboratórios como os chineses Sinovac (que produziu a Coronavac) e o Sinopharm apostaram na técnica tradicional da inoculação de vírus atenuados. Puderam contar com sua experiência anterior no desenvolvimento de imunizantes contra outros tipos de coronavírus – os que causaram a SARS e a MERS.
Cada perspectiva tem sua vantagem. É provável que a manipulação permita produzir com mais rapidez novas vacinas, que enfrentem eventuais mutações do coronavírus. Porém, as doses são comparativamente caras (a Pfizer-Biontech e Moderna cobraram, do governo dos EUA, entre U$ 39 e U$ 50 por paciente – de R$ 200 a R$ 250) e precisam ser armazenadas a até -70ºC. Já a estimativa do Instituto Butantan, que produzirá no Brasil a Coronavac, é que as duas doses necessárias por paciente custem, juntas R$ 32. Além disso, o imunizante pode ser armazenado em geladeiras comuns, o que é essencial para que chegue a regiões remotas.
As duas abordagens têm, em comum, sinais de notável eficiência. Nos estudos de Fase 3 em humanos (a última etapa), a vacina da Pfizer revelou imunizar 95% dos pacientes; a da Moderna, 94,5%; a Sputnik V, 92%. A Coronavac, cujos resultados finais ainda estão em análise, produziu anticorpos em 97% dos que a receberam. Mesmo a de Oxford-Astrazeneca, cujos testes estão sendo em parte refeitos, por erro inicial de dosagem, revelou até agora proteção entre 62% e 90%. São índices altíssimos: acreditava-se, há meses, que com 50% já seria possível produzir imunidade coletiva (ou “de rebanho”) relevante. Tudo indica que as vacinas, uma vez aplicadas, salvarão milhões de vidas e aliviarão sistemas de Saúde hoje ultra estressados.
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Ao contrário da grande maioria dos países, vítimas de uma ordem internacional que impõe desigualdade sanitária – e vacinal – aguda, o Brasil tem condições muito satisfatórias para proteger sua população. A Fiocruz (Rio) e o Instituto Butantan (São Paulo) produzem, há mais de um século, vacinas contra muitas enfermidades [veja em detalhes: 1 2]. Seus laboratórios e pesquisadores são reconhecidos em todo o mundo. Em outras condições, em que houvesse apoio efetivo do Estado ao desenvolvimento científico, estariam eles próprios criando seu imunizante contra a covid-19. Não é o caso; porém, há meses as duas instituições firmaram, com a Sinovad (Butantan) e com Oxford-Astrazeneca (Fiocruz) convênios que lhes transferem tecnologia para produzir, aqui mesmo, as vacinas. É uma condição única na América Latina – com exceção de Cuba, que está desenvolvendo sua própria vacina.
Além disso, explica Paulo Capucci, ex-secretário de Saúde de Guarulhos (SP), o Brasil possui uma rede invejável para levar as vacinas ao conjunto da população. Chama-se Programa Nacional de Imunização. Criado em 1973 e hoje integrado ao SUS, é capilarizado e robusto. Suas Salas de Vacinas, presentes em cada Unidade Básica de Saúde, aplicam a cada ano mais de 300 milhões de doses, de 28 imunizantes distintos. Possuem pessoal especializado e seguem protocolos rigorosos. Permitiriam, em semanas, imunizar o conjunto dos brasileiros.
A capacidade de produção do Butantan e da Fiocruz, a princípio de 200 milhões de doses ao ano, é insuficiente para imunizar a população em prazo razoável. Mas por que não poderia ser ampliada? Em 2/12, o Butantan recebeu, da China, 300 litros de insumos. Segundo o site do governo de São Paulo, seriam necessários “de quatro a sete dias” para que “40 colaboradores” do instituto produzissem, com a matéria-prima, um milhão de doses. Um milhão de doses a cada quatro dias, com equipe de 40 pessoas. O Butantan detém a tecnologia. Quanto seria possível produzir, caso se desse o passo óbvio de constituir – por exemplo – uma equipe de 400 pessoas, dotadas dos equipamentos necessários?
O primeiro passo seria ter, em Brasília, a vontade política.
IV. Sabotagem
Além de não celebrar a fabricação das vacinas Sinovac-Butantan, e muito menos contribuir para que mais doses fossem produzidas, o governo Bolsonaro passou a agir, desde outubro, para sabotá-las. Em 21/10, ele humilhou seu próprio ministro da Saúde, mandando-o revogar decisão tomada na véspera e excluindo a Coronavac da lista de imunizantes a ser adquiridos pela União e distribuídos aos estados. Sua explicação foi previsivelmente rudimentar e precária. “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. Mas não se tratou de uma explosão. Basta olhar para o conjunto de atos do Palácio do Planalto e dos ministérios e agências para que sobressaia um padrão. Negligenciam-se as ações necessárias para imunizar a população. Quando isso parece não bastar, boicotam-se as iniciativas em curso. Eis alguns exemplos.
- Ao contrário de dezenas de governos [veja os casos do México, Argentina ou Turquia, de influência política e econômica inferior à do Brasil], não houve esforço algum para negociar compras de vacinas com laboratórios estrangeiros – supondo que Butantan e Fiocruz, devidamente financiados, não pudessem ampliar sua produção. Até o anúncio da vacinação própria em São Paulo, o ministério da Saúde esnobava até mesmo a vacina da Pfizer, que foi oferecida ao país. Em consequência, no Brasil, que dispõe de instituições científicas muito mais avançadas, o governo conformou-se em anunciar a vacinação em março, enquanto em todos os países anteriores ela começará efetivamente em dezembro.
- O corpo mole repetiu-se nas compras internacionais intermediadas pelo consórcio Covax (da Organização Mundial de Saúde). Cada país participante poderia encomendar um número de doses suficiente para vacinar 50% de sua população. O governo brasileiro optou por solicitar a quota mínima, de 10%.
- Outra janela de oportunidade foi deliberadamente fechada na Organização Mundial do Comércio (OMC). Um grupo de países liderado por Índia e África do Sul propôs que se aprovasse, devido à emergência pandêmica, o licenciamento automático das patentes relacionadas à covid. A medida, apoiada pela própria Organização Mundial de Saúde, teria permitido à Fiocruz e Butantan ter acesso a todas as tecnologias de imunização e produção de medicamentos. Mas o Brasil foi o único país emergente a votar contra ela.
A estas decisões políticas desastrosas correspondeu, no interior do Ministério da Saúde, um vandalismo particular. Ele coincide com a ocupação da pasta por um conjunto de militares sem nenhum conhecimento sanitário, mas de fidelidade canina a Bolsonaro. Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a professora Gulnar Azevedo e Silva relata. “A partir da posse de Bolsonaro, foram liquidados diversos comitês internos. No Programa Nacional de Imunização, em particular, extinguiu-se um comitê de especialistas que reunia virologistas, pediatras e sanitaristas. Em seu lugar, formou-se uma ‘câmara técnica’ fatiada em dez grupos de trabalho. As consultas são feitas individualmente, sem debate coletivo, muitas vezes com pedido de sigilo”.
Este movimento, prossegue Gulnar, “avança em paralelo com o que houve no desmonte da atenção primária. É um dos programas mais atacados pelo corte de verbas do SUS. Equipes inteiras estão sendo desmontadas, já há problemas de distribuição de vacinas. Acabaram os horários estendidos de vacinação (aos domingos, por exemplo). Acabaram as campanhas de comunicação sobre a importância das vacinas”.
Seria a sabotagem das vacinas parte do esforço para privatizar o SUS – que o governo anunciou em 16 de novembro, para em seguida desmentir a si mesmo — porém, foi de modo inconvincente?
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No que diz respeito à imunização, algo mudou a partir de 7/12, quando o governador João Doria anunciou que os brasileiros de São Paulo terão acesso à vacina a partir de janeiro; e que os de outros estados serão bem-vindos para recebê-la também. Temendo forte desgaste, o Palácio do Planalto viu-se obrigado a uma mudança de discurso. Em fala feita às pressas, ao lado do ministro Paulo Guedes, Bolsonaro assegurou que “quando aprovadas” vacinas, o governo as oferecerá – e serão “gratuitas e não obrigatórias”. Não deu detalhe algum, porque meses de sabotagem deixaram-no sem trunfos na mão. Mas ordenou ao ministro da Saúde que mudasse novamente de posição e corresse agora atrás das vacinas da Pfizer. Aparentemente, Pazzuelo obteve minguadas 8,5 milhões de doses, suficientes para imunizar 4% da população.
De um presidente viciado em golpes baixos pode-se esperar muito. É provável que a estratégia do ex-capitão consista em ganhar tempo, produzindo factoides como o da Pfizer; e em, simultaneamente, tentar inviabilizar a vacina do Butantan. Um caminho para isso é a Anvisa. Formada por um corpo técnico de excelência, a agência foi aparelhada, no entanto, por uma súcia de negacionistas. O presidente, contra-almirante Antonio Barra Torres, chegou a participar (sem máscara) de uma aglomeração em favor do fechamento do STF. Outro diretor, o tenente-coronel Jorge Luiz Kormann, ocupa a área responsável pela aprovação de medicamentos, tendo experiência zero em Saúde ou vacinas.
Sua ação protelatória é clara. Em 7/12, por exemplo, a Anvisa pediu prazo de 30 dias para redigir um relatório essencial para a aprovação da Coronavac. Trata-se do documento de inspeção da equipe de técnicos que visitou, na China, as instalações da Sinovac. No dia seguinte, o próprio ministro Pazuello afirmou sem nenhuma base, em encontro com governadores, que a aprovação final desta vacina tardará “ao menos 60 dias” após a apresentação final dos testes de sua eficácia.
Felizmente, parece haver, por parte dos governadores, disposição de resistir. Em 8/12, tanto Flávio Dino (MA) quanto o próprio Dória anunciaram intenção de recorrer ao STF, caso os sinais de procrastinação infinita persistam. Os recursos seriam baseados na lei 13.979. Votada este ano, ela permite a autoridades estaduais ou municipais importarem insumos mesmo quando não aprovados pela Anvisa – desde que o sejam em outras agências sanitárias reconhecidas internacionalmente.
V. Nova Revolta da Vacina?
Candidato mais surpreendente nas eleições municipais recém-realizadas, Guilherme Boulos aproveitou entrevista ao Valor, publicada em 7/12, para reflexões que merecem, da esquerda, leitura atenta. Embora surjam desde já, neste campo político, incontáveis polêmicas sobre o pleito de 2022 – muitas vezes com caráter francamente autofágico – o líder do MTST não parece se encantar com tais querelas. “Sair de uma eleição pensando em outra não é apropriado”, diz ele. E explica: “Me preocupa saber como vai ser 2021. (…) Meu papel como uma liderança política da esquerda, como militante do movimento social é muito mais do que ficar só pensando planos para 2022. É pensar em como organizar a luta diante desse cenário tão difícil”.
Quem acredita (como o autor destas linhas…) que se trata de um atitude sábia; que uma esquerda digna deste nome precisa superar um ultra-eleitoralismo de décadas, e se reaproximar das lutas sociais – quem pensa assim terá, na Frente pela Vida, a ser lançada em 15/12, uma oportunidade rara de agir.
A ação é, em primeiro lugar, em favor da vacina – pela sobrevivência de centenas de milhares de pessoas; de seres humanos, que, como aqueles que conhecíamos, admirávamos – e pereceram –, têm projetos, sonhos, desejos, amores. Rechaça a indiferença, o “e daí?”, o crer que apenas os mais fortes têm lugar. Repele às lógicas do individualismo, do lucro máximo e do salve-se-quem puder. Choca-se com estes sentimentos e valores ásperos propondo o cuidado, a generosidade, o Comum. Aí começa seu caráter pós-capitalista.
Mas estas intenções não são etéreas. Materializam-se na defesa de uma conquista histórica: o SUS. Este sistema que, construído pelas lutas sociais de duas décadas, foi em seguida sabotado por uma sucessão de governos e difamado incessantemente pela mídia. Mas que ressurgiu, no afeto e na compreensão das maiorias, quando estas enxergaram a diferença que fazem as políticas públicas; as portas abertas; os equipamentos em que todos contam – não apenas os que podem pagar faturas gordas.
Pois este mesmo SUS, que tantos acolheu, está de novo ameaçado de sucateamento ou de privatização. Em 2021, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias apresentada pelo governo, pode perder R$ 47 bilhões – um corte que se sobrepõe aos já sofridos, nos anos anteriores, como consequência do congelamento de gastos sociais. Um corte bilionário em meio à pior crise sanitária em um século…
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Mas como esta luta poderá evoluir, nos próximos meses?
O infectologista Gastão Wagner, professor da Unicamp e presidente da Abrasco entre 2015 e 2018, aposta na força do tema da vacina. Ele tem ideias práticas a respeito. Sugere articular uma proposta concreta de suplementação de verba para a aquisição das doses, a remuneração da Fiocruz e do Butantan, a garantia da logística (negligenciada pelo governo até agora), a campanha de esclarecimento popular. Imagina a Frente pela Vida cobrando do Congresso os recursos, debatendo a reivindicação com a sociedade, recorrendo eventualmente ao Judiciário.
Basta imaginar o cenário das próximas semanas para pensar que Wagner pode ter razão. Na mídia, as imagens (que já começaram a surgir) das populações imunizando-se em muitos países. Nas estatísticas, a queda muito provável dos índices de contágio e mortes, onde há vacinação. No Brasil, as populações cruzando fronteiras dos estados, para buscar proteção onde ela estiver disponível. Em meio a tudo isso, a caracterização do descaso do pior governo brasileiro de todos os tempos – e os sinais de uma esquerda mais sensível aos dramas da população do que mergulhada em cálculos eleitorais.
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Para sair da pasmaceira, talvez o Brasil precise de uma nova Guerra da Vacina.
Fonte: Outras Palavras