“Bolsonaro é uma tragédia histórica”, afirma chanceler venezuelano Jorge Arreaza

Por Michele de Mello para o Brasil de Fato (Caracas – Venezuela)

Em uma entrevista coletiva com meios de comunicação internacionais, na última segunda-feira (7), o chanceler venezuelano Jorge Arreaza analisou o resultado das eleições legislativas do último domingo (6) e os desafios da integração latino-americana. 

Foram computados mais de 6 milhões de votos para um universo de 20,7 milhões de eleitores, o equivalente a cerca de 31% de participação. O governante Partido Socialista Unido da Venezuela (Psuv) ganhou a maioria do parlamento e se consolidou como força hegemônica no país. 

O ministro destacou que a prioridade da política exterior venezuelana no próximo período será a reativação da União das Nações do Sul (Unasul), a consolidação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a promoção da união entre os latino-americanos. “Integração é algo muito mais efêmero, necessitamos avançar na união dos povos, como algo mais profundo“, declarou.

Como a conformação da nova Assembleia Nacional pode ajudar a diplomacia venezuelana a diminuir a ingerência dos Estados Unidos e de outros polos de poder na Venezuela?

A Constituição estabelece que a diplomacia é responsabilidade do presidente da República, no entanto, há um princípio transversal que é a colaboração de poderes. 

Além disso, há um âmbito de diplomacia parlamentar, o Parlatino e Parlasul na América Latina, mas também outros em âmbito mundial, nos quais a Venezuela atuou, liderando vários processos.

No entanto, o que é importante destacar é que foi um resgate de uma instituição praticamente morta, porque o poder legislativo nos últimos cinco anos estava praticamente morto. Foi ganho por grupos venezuelanos que usaram esse espaço como plataforma para levar adiante um golpe de Estado

Agora temos um poder ativo, legítimo e que vai cumprir seu papel. Irá legislar com o povo, porque a imensa maioria vem dos espaços da revolução. Por mais que alguns andem dizendo que não irão reconhecer essas eleições, erros que seguem sendo cometidos. Logo mais veremos como os deputados eleitos ajudarão o presidente Nicolás Maduro a promover uma diplomacia de paz.

O que está acontecendo na Venezuela? Acompanhe cobertura completa 

As eleições na Venezuela marcam o fim de uma série de processos eleitorais na América Latina, com as eleições na Bolívia, o plebiscito no Chile e as municipais no Brasil. Podemos dizer que há uma reorganização da esquerda na região? Você acredita que a vitória contundente do Psuv contribui para os próximo processos eleitorais que virão, como eleições no Equador e no Peru? 

Estamos presenciando o que parece ser o final de um ciclo, que por um momento parecia que iria durar mais. Um ciclo que começou com a chegada de Donald Trump à presidência. Parecia que se gerava um governo no continente, mas que na verdade era uma grande corporação, na qual os presidentes da América Latina não eram nada mais que CEOs (presidentes de empresas). Quase todos eram empresários ou políticos de grupos empresariais. 

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Um momento chave foi o golpe de Estado de Honduras, em 2009, quando a administração de Barack Obama depois de ter gerado um caos no Norte da África, na Síria, com as guerras de Afeganistão, Iraque, quando voltou a ver o que eles dizem ser o seu quintal, pois tinham ali uma ebulição, liderada pelo presidente Chávez. 

Depois disso vieram os golpes de Estado contra Zelaya, Fernando Lugo, Dilma Rousseff. A ação dos povos deteve esse processo, considero, com humildade, que a resistência venezuelana teve muito a ver. 

 

Até hoje o império conosco tem sido o mesmo. Com alguns (governantes dos EUA) podemos tomar café, conversar, com outros não, mas no final fazem exatamente o mesmo

Todos os processos e ciclos são dialéticos. Tratemos de avançar, temos que fazer todo o possível para avançar. As condições são favoráveis, mas se não houver unidade dos processos de mudança em cada país, se o imperialismo consegue ter o controle de um processo eleitoral, com uso de big data, como fez com Bolsonaro, tudo se complica. 

Essa é uma batalha. Marx tinha razão ao dizer que tudo pode ser explicado através da luta de classes. O império contra os povos e os povos tentando tomar o poder. É isso que estamos vivendo. 

 

As distintas matizes dos movimentos de esquerda e populares devem aprender a trabalhar juntas 

É necessária muita coordenação entre os movimentos revolucionários e de esquerda. As distintas matizes dos movimentos de esquerda e populares devem aprender a trabalhar juntas. 

Creio que a eleição de domingo é um passo a mais da resistência venezuelana. Venezuela e Cuba são mais uma referência para os povos do nosso continente. Se essa revolução realmente estivesse em risco eu sei que muitos latino-americanos viriam defender nosso processo.


Não irá variar muito para a América Latina se quem governa é Biden ou Trump. No caso da Venezuela, sua importância está baseada na fragmentação do quadro nas relações exteriores no âmbito regional / PR Venezuela / Fotos Públicas

Quais são as perspectivas para o próximo ano sobre a construção de um mundo multipolar? Como a presidência de Joe Biden poderá impactar nesse cenário? 

Com o imperialismo não há conversa. Nós pensamos que em uma situação como a atual de pandemia, o imperialismo norte-americano e europeu deveriam ao menos flexibilizar as sanções. Não só não atenderam o chamado da ONU, como intensificaram as sanções.

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No caso da Venezuela impondo a terceiros países, a provedores, a qualquer empresário que se atrevesse a comercializar conosco. 

Durante a pandemia vimos o pior rosto do imperialismo.Nos seus próprios territórios vimos situações que podemos qualificar até mesmo de genocídio, como nos casos de Donald Trump ou de alguns governos europeus, como o do Reino Unido, que geraram mortos e dor. 

 

Nós pensamos que em uma situação como a atual, de pandemia, o imperialismo norte-americano e europeu deveriam ao menos flexibilizar as sanções, mas as intensificaram

A história e o povo os julgará com votos ou com a justiça. Mas definitivamente o imperialismo, o capitalismo, não são o sistema que a humanidade merece e com o qual pode contar.

O mundo multipolar já existe, o que temos que fazer é conectar alguns polos, consolidá-los. 

É possível um mundo equilibrado, agora precisamos trabalhar para que os governos desses polos atendam os interesses dos povos. 

Já em relação a Biden, dependerá dele mesmo. Até hoje o império conosco tem sido o mesmo. Com alguns podemos tomar café, conversar, com outros não, mas no final fazem exatamente o mesmo. A estratégia permanece sendo a mesma.

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Durante a administração de Bolsonaro o governo brasileiro adotou muitas ações hostis em relação à Venezuela. Qual é o seu balanço sobre essa gestão e como pretende atuar se ele for reeleito? 

Acredito que nem vale a pena avaliar o governo de Bolsonaro. É uma tragédia ideológica, institucional, em todos os âmbitos. 

Eu descarto a possibilidade dele voltar a ganhar. Passará a ser uma mancha na história.

Nessa grande empresa dirigida por Trump em que ele (Bolsonaro) era mais um CEO, quem mais ataca a Venezuela mais rápido ascendia.

 

Confio plenamente no povo brasileiro para reverter essa tragédia histórica que está sendo o governo Bolsonaro 

Nós nunca tivemos relação de hostilidades, que no Brasil fossem organizados planos militares contra a Venezuela, que dessem refúgio a venezuelanos militares que atentaram contra a institucionalidade, refúgio a pessoas que tentaram matar o presidente Maduro ou que participem da conspiração junto à Colômbia. 

Temos que ter paciência histórica. Dependerá do povo brasileiro. Agora se o povo não se organiza, se não é capaz de encontrar a unidade, será doloroso. 

Confio plenamente no povo brasileiro para reverter essa tragédia histórica que está sendo o governo Bolsonaro.

Edição: Rogério Jordão