do A Terra É Redonda
A escravidão que nos habita
por Jorge Luiz Souto Maior
Há tempos muitos têm destacado que, no Brasil, diante de seu legado escravista, ainda não devidamente superado, a exploração da classe trabalhadora não se dá apenas na lógica econômica da extração de mais-valor do trabalho assalariado, cuja formação, em termos de relações sociais, está fincada não apenas na submissão pela necessidade, como também no processo violento de uma “disciplinação” imposta pelas estruturas jurídicas criminais da vigilância e da punição.
No Brasil a exploração de classe não satisfaz às elites (classe dominante), é preciso também subjugar e humilhar os trabalhadores e, sobretudo, as trabalhadoras, por meio de diversas outras formas de opressão, como as de gênero e de raça, de modo a demonstrar, a cada instante, que as pequenas concessões concebidas no âmbito da racionalidade econômica pela qual se reconhece a necessidade de estimular, preservar e reproduzir a mercadoria força de trabalho não é capaz de alterar o “status” antropológico subalterno em que se circunscreve a classe trabalhadora.
É só a partir dessa chave de pensamento que se consegue explicar o fato de que, no Brasil, direitos historicamente concebidos para preservação e viabilização do modelo de sociedade capitalista, como limitação da jornada de trabalho, idade mínima para o trabalho, salário digno, proteção contra acidentes do trabalho, dentre outros relacionados à organização do modo de produção e melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras são, ainda que em sua forma limitada, vistos como empecilhos ao desenvolvimento econômico ou como privilégios injustificados de alguns poucos trabalhadores(as) que conseguem se inserir no mercado de trabalho, isto quando não são objeto da retórica pervertida pela qual empregadores se apresentam como vítimas oprimidas pelos custos impostos pelos direitos trabalhistas.
É por isso também que os intelectuais orgânicos da classe empresarial brasileira, em diversos campos de atuação, estão sempre de plantão para promover o esvaziamento do conteúdo dos direitos trabalhistas que, após um processo de luta, possibilitado como efeito colateral (não pretendido) do regime democrático, são normatizados. E quando o esvaziamento não é suficiente e um pouco de melhora efetiva das condições de trabalho e de vida é experimentado pela classe trabalhadora, a classe dominante reage para impor retrocessos explícitos na forma jurídica trabalhista, passando por cima, inclusive, se preciso for, dos preceitos garantidores da democracia e das liberdades civis que tanto defende para o desenvolvimento de suas atividades empreendedoras, de modo a deixar claro que nenhuma ascensão generalizada na estrutura estamental que caracteriza a sociedade brasileira será admitida.
E o momento que vivemos é exatamente esse: o da imposição de retrocessos, que não se disfarça e que, bem ao contrário, se pretende claro e até se expressa com escárnio e sarcasmo. É com esse conteúdo e propósito que não apenas se diz, como sempre se fez, que os direitos trabalhistas são responsáveis pela debilidade econômica do país, também se difunde que os(as) trabalhadores(as) que possuem direitos e os defendem são os culpados pelo desemprego e pelo sofrimento de quem não consegue trabalho, ou, ainda, se chega a expressar que as políticas de inserção e de minimização dos efeitos da exclusão e do preconceito historicamente concebidos representam fórmulas de discriminação contra os homens, os brancos e os ricos.
O interessante é que quanto mais à vontade para se manifestar as forças conservadoras se sentem, mais se revela a sua visão de mundo, carregada das marcas da sociedade escravista, caracterizada pela consideração do trabalhador como coisa, do negro como sub-raça humana e da mulher como elemento subalterno e submisso, a quem se reserva unicamente o papel de cumpridora das tarefas invisibilizadas e não remuneradas destinadas à reprodução.
Foi assim que, de agressão em agressão, se chegou ao dia em que a escravidão por dívida foi reativada e tornada alvo de uma homologação judicial, e apresentada como se fosse uma solução inovadora e, ao mesmo tempo, um ato de benemerência para com o devedor (um trabalhador, é claro).
O trabalhador propôs uma reclamação trabalhista pleiteando o reconhecimento do vínculo de emprego e o recebimento dos valores dos direitos daí decorrentes, mas sua pretensão foi julgada improcedente e, por aplicação (ou má aplicação) dos termos da Lei n. 13.467/17, da “reforma” trabalhista, foi condenado ao pagamento de honorários advocatícios do patrono da parte contrária, no importe de R$9.738,62 (em 17/04/19), mesmo sendo beneficiário da justiça gratuita.
A sentença, no entanto, estabeleceu que os honorários em questão ficariam “sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade”. Em sede recursal, o Tribunal manteve a decisão. Iniciada a execução e sem indicação de bens do executado/trabalhador foi determinada a suspensão do processo por dois anos, mas os credores requereram a realização de uma audiência de conciliação e assim se fez.
O que veio na sequência melhor se expressa pela reprodução dos exatos termos constantes da ata de audiência produzida nos autos do processo 0001007-68.2018.5.17.0011, da 11ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, em 25 de junho de 2020, até porque a sua publicidade foi autorizada e incentivada pelos protagonistas do ato: “Às 15 horas, aberta a audiência, foram, de ordem do Exmo(a). Juiz do Trabalho, apregoadas as partes. Ausente o executado (….) Informa a Drª. (….) que seu cliente está tentando ingressar na sala de audiência mas enfrenta problemas com o link fornecido neste momento. As partes se conciliaram através da prestação de serviços comunitários pelo autor, em instituições assistenciais que serão indicadas pelo escritório exequente. No prazo de 5 dias o escritório e o autor apresentarão petição indicando a instituição beneficiária e os dias e horários para o cumprimento da obrigação. As partes informam seus e-mails para contato recíprocos: (….) Vindo aos autos a petição, venham os autos conclusos para homologação. As partes autorizam a divulgação desta forma de cumprimento da sentença pela assessoria de comunicação deste Regional, como forma de estimular as partes de buscar meios alternativos de se conciliarem. Audiência encerrada às 15h21”.
Dias depois, em 06 de julho, o acordo foi homologado por despacho: “Vistos, etc. Sendo as partes capazes e devidamente assistidas, o objeto lícito e determinado e não vislumbrando a existência de nenhum vício no negócio jurídico, homologo a transação instrumentalizada na petição de ID 0a8d0c0, para que surta seus jurídicos efeitos. Considerando-se a natureza jurídica das parcelas objeto da transação não há incidência de tributos. Intimem-se as partes. Ultimadas as diligências, arquive-se o feito, com baixa”.
O reclamante, que, inclusive, conforme decisão transitada em julgado tinha o direito de não ser executado, a não ser que fosse provado pelo credor que havia deixado de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade, foi submetido a uma audiência de conciliação. Na audiência, sem a presença do reclamante, a dívida não exigível foi transformada em prestação de serviços, não à comunidade, mas a uma instituição assistencial à escolha do credor, o qual, assim, se apresenta no ato e com a posse jurídica dos serviços futuros do reclamante, que poderá oferecer a quem bem entender (desde que seja uma instituição beneficente), como um bom samaritano, situação que nos remete, igualmente, à modalidade do “escravo de ganho”.
Preceitos jurídicos rudimentares não foram atendidos no ato, pois a dívida civil não se transfere para a pessoa e não há poderes “ad judicia” implícitos para que se imponha ao representado obrigações que ferem direitos fundamentais. Além disso, se o “objeto” do acordo foi prestação de serviços em prol de uma entidade assistencial, e não havendo nada na lei trabalhista que diferencie essas entidades na qualidade de entes empregadores, os tais serviços implicariam, por incidência dos dispositivos legais e constitucionais, a formação de uma relação de emprego, com as obrigações jurídicas consequentes. No entanto, sobre isso nada se falou, porque a hipótese vislumbrada foi a da realização de serviços como pena.
De tanto se admitirem renúncias à direitos nas conciliações trabalhistas, sob o falso argumento de que perante o juiz não haveria vício de consentimento, se chegou, então, ao ponto em que a “conciliação” foi utilizada para impor ao trabalhador/executado um autêntico trabalho forçado, como se sua dívida de natureza civil fosse equiparável à condenação penal onde incide, como forma substitutiva da privação da liberdade, a pena de prestação de serviços à comunidade, que é, ainda assim, de discutível constitucionalidade, dada a sua evidente natureza de trabalho forçado e tendo à vista a previsão do art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição Federal.
E cumpre destacar que essa obrigação foi fixada pela própria Justiça do Trabalho por meio da aplicação de preceito inconstitucional (§ 4º do art. 791-A da CLT, introduzido pela “reforma” trabalhista de 2017), que prevê a condenação dos trabalhadores mesmo reconhecidamente pobres e beneficiários da justiça gratuita e que, por enquanto, se mantém vigente (e por muitos aplicada) graças à inconcebível omissão do Supremo Tribunal Federal, que não pauta a ADI 5766).
Mesmo que se diga que não houve obrigatoriedade na “solução alternativa” fixada, o fato de sequer cogitar sobre o respeito aos direitos trabalhistas na execução dos serviços já configura, por si, trabalho forçado, ainda que “espontaneamente” realizado. E, concretamente, diante da espada coercitiva e do vício determinado pela necessidade não há espaço para manifestação livre de vontade. A coação, sobretudo quando institucionalizada, é evidente.
De todo modo, não havendo legalidade no ato de se submeter a trabalhar gratuitamente para pagar uma dívida, a vontade expressa neste sentido, ainda que efetivamente livre fosse (e jamais será), não tem valor jurídico, não podendo, pois, ser corroborada.
Fato é que, traduzindo em outras palavras, a propositura de reclamações trabalhistas restou criminalizada, servindo o exemplo como forma de amedrontar ainda mais o(a) trabalhador(a) que ouse pensar em processar o seu ex-patrão, até porque, como essa “inovação” incentiva, nem mesmo a miséria será fundamento para se eximir de qualquer responsabilidade perante a dívida para com o advogado da reclamada, caso perca a ação, pois, afinal, terá sempre como pagar trabalhando, mediante serviços forçados, retoricamente vislumbrados como “consensuais”.
O curioso, mas nem tanto assim, dada a realidade histórica cultural brasileira, é que nos 79 anos de história da Justiça do Trabalho, onde milhões de reclamações trabalhistas com créditos trabalhistas devidos aos reclamantes, em razão da insolvência ou falência do reclamado, foram arquivados sem o efetivo recebimento dos valores correspondente e ninguém nunca teve essa percepção inovadora de propor que os empresários inadimplentes fossem varrer as ruas da cidade.
O interessante, se é que algo se possa nominar de interessante nesta história, é que em todo acordo se traz uma cláusula penal, vislumbrando a hipótese do não cumprimento por parte do devedor, e, no caso, tal cláusula não foi fixada, restando estabelecida, meramente, na petição de acordo posteriormente protocolada (sem assinatura do reclamante/executado), que “Em caso de descumprimento do presente Acordo, a execução voltará a correr no valor atualizado”.
Não se pode, no entanto, ver nesta situação algum tipo de fato positivo, pois do jeito que a onda vai, com algumas (embora ainda bem poucas, é verdade) pessoas considerando razoável e ponderada a solução dada, daqui a pouco alguém haverá de aprimorar a fórmula e fixar a única “cláusula penal” compatível com a obrigação fixada: “100 chibatadas no pelourinho da praça” (que será reinaugurado pelo governante de plantão, com financiamento privado).
Extrapolando os limites negociais, alguns mais auspiciosos, aderentes da ideia e atentos à história nacional, podem até ter a “luz” de se socorrerem de precedentes legislativos vigentes no Brasil no século XIX, que previam a prisão do trabalhador “livre” (empreiteiro) que abandonasse a fazenda sem prestar o serviço que havia se comprometido “por contrato”.
A Lei de 13 de setembro de 1830, por exemplo, tratando, indistintamente, do trabalho por empreita ou por tempo determinado, previa que: “Art. 5º. O prestador de serviços, que evadindo-se ao cumprimento do contracto, se ausentar do lugar, será a elle reconduzido preso por deprecada do Juiz de Paz, provando-se na presença deste o contracto, e a infracção. Art. 6º. As deprecadas do Juiz de Paz, tanto neste caso, como em qualquer outro, serão simples cartas, que contenham a rogativa, e os motivos da prisão, sem outra formalidade mais, que a assignatura do Juiz de Paz, e seu Escrivão”.
E a Lei n. 108, de 11 de outubro, de 1837, que regulava os contratos de locação de serviços firmados pelos colonos, estabelecia que: “Art. 9º O locador, que, sem justa causa, se despedir, ou ausentar antes de completar o tempo do contracto, será preso onde quer que fôr achado, e não será solto, em quanto não pagar em dobro tudo quanto dever ao locatario, com abatimento das soldadas vencidas: se não tiver com que pagar, servirá ao locatario de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contracto. Se tornar a ausentar-se será preso e condemnado na conformidade do artigo antecedente.”
O mais triste e deprimente de tudo isso não é ouvir alguém aplaudindo a iniciativa, considerando-a uma saída eficiente para melhorar os dados estatísticos das Varas, abarrotadas que estão de processos com condenações de reclamantes, parados à espera de que pobre fique rico; o pior é não poder dizer que de tanto retroceder chegamos ao ponto de retomar a época da escravidão, pois esse episódio, somado a tantos outros, só evidencia que da escravidão, de fato, nunca nos desgarramos.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (estúdio editores).