São Paulo – Duas canções de Caetano Veloso, ambas dos anos 1980, de certa forma resumem a participação do artista em live organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), ontem (23) à noite. Em Podres Poderes (1984), que ele cantou ao final, há o questionamento: “Será que nunca faremos senão confirmar/ A incompetência da América Católica/ Que sempre precisará de ridículos tiranos?”. E em Nu com a Minha Música (1981), citada indiretamente no programa, existe otimismo: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil/ Apesar da dor”.
“Eu tenho 78 anos. Eu já passei por muitos momentos no Brasil que parecia que você não tinha direito de ter esperança”, disse Caetano na mesma passagem em que ele fala do período autoritário e de suas consequências. O tema do programa era democracia e liberdade de expressão. Com moderação da vice-presidenta da ANPR, Ana Carolina Roman, a live teve participação dos procuradores da República Fabiana Schneider e Sérgio Pinel.
Medo do presente
Caetano falou do período de prisão e exílio, entre 1969 e 1972, retratado no recente documentário Narciso em Férias. Aos procuradores, disse recear que “coisas terríveis” aconteçam no momento atual. Um medo mais pensado do que sentido. “Não medo sentimento, medo preocupação. Tenho, e acho que a gente, como sociedade, poderá enfrentar coisas mais difíceis.”
A uma das perguntas, sobre o fato de alguns defenderem o retorno do regime de exceção, Caetano falou sobre a colonização brasileira e a dificuldade de enfrentar o passado. “É preciso que as pessoas, principalmente os jovens brasileiros, saibam quão restritivo e empobrecedor foi esse período. (…) Acho que estamos num momento difícil, muita gente fica iludida com o período autoritário como se fosse uma salvação. (…) Acho que é dificultoso para o Brasil não ter enfrentado o problema dos crimes da ditadura”, afirmou, lembrando que países vizinhos – Argentina, Chile , Uruguai – fizeram esse movimento.
“Ninguém no Chile se elege elogiando os torturadores. Nem na Argentina. Se você não enfrenta os sintomas mais gritantes de tudo isso, como crime de tortura, você fica atrasado no espaço que você necessariamente terá que dar. É um pouco doloroso que no Brasil não nós não tenhamos quanto a isso a clareza que nossos vizinhos de língua espanhola tiveram. Aqui, um deputado que elogiava os torturadores se tornou presidente da República”, comparou o cantor. Ele acrescentou que nesses outros países sul-americanos, mesmo os conservadores, “não arriscam dizer elogios a torturadores porque a sociedade está claramente informada a respeito dos crimes que eles cometeram”.
Ditaduras de opinião
As redes sociais contribuem em grande parte para isso, acredita. Caetano lembrou que, no surgimento da internet, discordou do otimismo de alguns amigos, que acreditavam em democratização da informação e discussão de ideias. “Eu temia um pouco o que está acontecendo muito. E que é apavorante”, comentou, mencionando “pequenas ditaduras de opinião que às vezes não são tão pequenas” e pessoas botzadas – menção a robôs.
Ele observa que há um “grande quantidade de pessoas sem acesso à informação política” ou com certa visão mítica sobre o tema, esperando um “salvador” ou alguém que seja “contra tudo”. A polarização torna muita gente “impermeável” ao debate. “O importante é que as pessoas saibam é que há muitas nuances e que há complexidade na vida social, para ser pensada”, ponderou Caetano. “Se eu pudesse convencer três jovens, tentaria convencê-los disso. Ou convencê-las.”
Considerado subversivo
Sobre o período da ditadura que antecedeu sua prisão, houve um episódio curioso. Segundo Caetano, a repressão começou a “prestar atenção nele” entre 1966 e 1967, por causa de um suposto disco – que ele nunca gravou e do qual constaria uma música chamada Che, que ele nunca cantou ou compôs. Na semana passada, ficou sabendo por um amigo da existência de um cantor chamado Cataneo, que gravou uma música assim. Para o compositor, a “semente” de sua prisão, já no final de 1968, está nessa falsa informação.
Ele acabou sendo preso por uma denúncia também falsa, de que teria cantado uma versão desrespeitosa do Hino Nacional. Caetano recorda que nunca foi dito o porquê da prisão dele e de Gilberto Gil, pouco depois do Natal de 1968. Os dois moravam em São Paulo e foram levados para o Rio de Janeiro. Ficaram em duas unidades da Polícia do Exército e depois em um batalhão dos paraquedistas. Foram dois meses assim, quatro meses de confinamento em Salvador e, por fim, o exílio em Londres.
Carolina vira carabina
O procurador Sérgio Pinel contou que leu o processo e observou que, mesmo para um regime de exceção, a lei não foi cumprida. O que já mostrava a presença do AI-5, que entre outras arbitrariedades suspendeu o habeas corpus. Só depois de feita a prisão – que nunca foi comunicada a um juiz – é que se iniciaram diligências para tentar justificá-la. E citou outro fato curioso, que hoje ganha ar de anedota.
No processo, os acusadores reproduzem trechos de letras do compositor, entre as quais a da música Baby, de 1968: “Você/ Precisa saber da piscina/ Da margarina/ Da Carolina”. Mas no lugar de “Carolina” está “carabina”, o que mostraria mensagem subversiva subliminar. Caetano mostrou espanto ao saber da história. Ao falar do ato institucional, lembrou do ex-ministro Delfim Netto: “O cara assinou o AI-5. Não dá. Eu não consigo admitir. Admitir como uma coisa correta. Não é recuperável isso”.
Limites da democracia
Caetano contou ter composto algumas músicas recentemente, duas já no período da pandemia. “Algumas falam do Brasil, outras são mais pessoais.” Elogiou o cantor Thiago Amud (“Prosódia perfeita, muita instigante, arranjos com orquestração muito bem escrita”) e falou de seus interesse por fenômenos de massa, como o axé e o funk. E pelo próprio sertanejo, em sentido sociológico, quanto a um processo de interiorização do país.
Ele também foi questionado sobre como conciliar democracia e liberdade de expressão, tema da live, que está disponível nos canais de Youtube do artista e da ANPR. “Há limites intransponíveis. Você não pode fazer uma campanha genocida, ou de extermínio de uma raça ou de um grupo social”, comentou. Mas acrescentou que “não há ainda uma maneira de legislar que tenha se tornado eficaz”. Destacou a importância do Ministério Público, observando que “tem que ser independente na prática”.
Liberalismo e marxismo
Mais para o final, falou sobre sua “mudança de pensamento”, por influência do escritor e professor pernambucano Jones Manoel, marxista. Textos do autor chamaram a atenção de Caetano para o filósofo italiano Domenico Losurdo – interessado, o artista comprou e leu três livros dele. Disse continuar admirador “da tradição liberal”. Mas acrescentou: “Eu vinha vendo há algum tempo o liberalismo, com o apelido de neoliberalismo, fazer coisas com as quais eu não concordo”.
Ele disse ainda considerar “abominável” vigilância ao exercício profissional dos professores. Lembrou que, na época da faculdade, um professor foi detido por ser considerado subversivo. Quando os interrogadores perguntaram se ele era, afinal, “comunista” ou “filocomunista”, respondeu que era “kantiano”, referência ao filósofo Immanuel Kant. Deixou os agentes com cara de interrogação.
“As coisas andam”
Outro professor, que coordenava a área de filosofia da universidade, tornou-se censor. Caetano descobriu isso anos depois, quando tentava liberar a apresentação de um show. Foi convocado pela autoridade, o censor, que queria saber o significado da palavra “reggae”, incluída na letra da canção Nine out of ten. Acreditava que tinha caráter subversivo.
Ao citar o Ministério (hoje Secretaria) da Cultura, a Cinemateca Brasileira e Casa de Ruy Barbosa, Caetano observou que todos os ambientes de cultura estão sendo “minados”. Mas lembrou que a arte e o país conseguem avançar. “No ano em que eu cheguei (de volta ao Brasil), estourou Ney Matogrosso, estourou Secos&Molhados. As coisas andam, independentemente desses que pensam que controlam as coisas.”
Rede Brasil Atual